quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão* - Marco Temporal: Livrando a cara do presidente

Os 34 vetos do Presidente Lula ao projeto de lei do "marco Temporal”, aprovado pelo Congresso, e com opinião formalizada, por antecipação, no Judiciário, não impede a exploração do gás e do petróleo na Amazônia, muito menos a mineração do potássio (95% importado) em reservas indígenas (11%).   Além disso, o PL 490-07 chegou ao Planalto cheio de jabutis:  interesses privados ou coletivos embutidos no último momento, como a indenização pela devolução aos índios da terra invadida e apropriada; e para as benfeitorias feitas. Não é uma decisão fácil. Coloca-se a cabeça a prêmio.

Todas as políticas públicas tem poderosas interfaces incidindo sobre o centro de sua configuração (caput). É aí que entram os jabutis. Há pelo menos seis temas que atravessam transversal e politicamente todos os projetos de lei - energia, trabalho, equidade, multiculturalidade, saúde, educação e meio ambiente - com reflexos diretos no PIB- Produto Interno Bruto: R$ 9,9 trilhões, ou US$2,6 trilhões, em 2022.

Daí que legislar ou gerenciar as políticas setoriais no campo energético, por exemplo, é uma das coisas mais complexas. Envolve a exploração interna dos combustíveis fósseis (petróleo e subprodutos), com efeitos imediatos sobre todo parque industrial brasileiro. 

Explorar as imensas reservas de potássio dentro de uma terra Indígena para produzir fertilizantes agrícolas, envolve todo campo agropecuário dentro da balança comercial (1/3), impactando a vida de populações indígenas tradicionais. A política de mineração (2,5% do PIB), afeta as grandes empreiteiras da construção civil (9,7 % do PIB) e da siderurgia, inclusive as exportações (18 milhões de toneladas e perto de US$ 10 bilhões). O Brasil conta com 1/3 das reservas mundiais de grafite e 97% do nióbio, que junto com o grafeno, ampara à revolução mundial dos chips nas áreas da eletrônica e da medicina., da construção civil e outros, ajudando lá fora a traçar um novo destino para a humanidade.

Por razões como essas nunca existe no Brasil unanimidade para aprovação de leis, nem para a Constituição. Os políticos divergem, os empresários divergem, a sociedade diverge. É a democracia: o direito de divergir. Cada parte tem um ponto vista, às vezes apenas ideologizado (“O ópio dos intelectuais": R. Aron), mas que confundem  as opções de quem está com a responsabilidade de governar o País. A política é um instrumento de adequação das diferentes opiniões, e supostamente pretende facilitar a governabilidade, amparando a alavancagem dos diferentes segmentos públicos. Mas pode atrapalhar, conduzidas no mundo dos partidos, com seus programas voltados para    interesses próprios.

O “marco temporal" (PL 490/07) é um tema relacionado com a Política Indigenista, mas entre os interessados diretos estão, não apenas as populações indígenas (800 mil indivíduos), também os políticos, empresas de mineração, a indústria siderúrgica, de papel e celulose, a automobilística, o agronegócio, os ambientalistas, segmentos culturais, e outros que cobrem um universo superior a dez milhões de trabalhadores.   Vivido nesse meio, o Presidente parece aceitar o princípio da propriedade da terra das comunidades indígenas ou pessoas que nelas habitam. Correção de uma injustiça realmente com comunidades indígenas desaparecidas como os charruas e guaranis mbya, no Rio Grande do Sul; kaigangs e xoclengs do Paraná e Santa Catarina, expulsos de suas terras, apropriadas por estranhos. No mesmo caso estão os parakanãs e dezenas de outras nações atropeladas pelos grandes projetos rodoviários e agropecuários na Amazônia e no Mato Grosso, na década de 1970. No Nordeste dizimaram-se os grupos tupinambás que habitavam a costa, e tomaram suas terras.  

No cenário de hoje, o projeto do “marco temporal” atravessa, entretanto, interesses de segmentos produtivos que dão corpo ao PIB, e que se consideram vitimizados pela Lei.  Mas, ao mesmo tempo, os vetos deixam, entretanto, em aberto a possibilidade de exploração econômica em terra indígena - evidente que em acordo com eles -  que, para antropólogos e ambientalistas, são áreas de preservação natural e sagradas para os índios. Existem trinta e seis reservas indígenas regularizadas (cerca de 64,5 mil ha); 15 em processo de regularização (60 mil ha) e o dobro disso engatinha dentro do Governo. A maioria foi ocupada, total ou parcialmente, por empreendedores privados na área da agricultura. Por outro lado, institucionalizar o "marco temporal" significa legitimar um grande número de terras indígenas invadidas. Populações inteiras ficariam mesmo, em definitivo, sem as terras de origem.

Com esses vetos parciais ao projeto de lei do "marco temporal" aprovado no Congresso, o Executivo traz, para o cenário econômico, a possibilidade de o Brasil não apenas aprovar a exploração de matérias primas importantes dentro das terras indígenas, como o potássio, o petróleo, o ouro, o nióbio, a hematita e outros. Ganha, entretanto, em soberania ao possibilitar ao País adotar posições mais coerentes no campo internacional, e   libertar-se das amarras de dependências políticas incômodas como os fornecimentos de fertilizantes da Rússia (Mais de 60 % para a agricultura). Fica-se desimpedido eticamente para condenar as ditaduras e   guerras fratricidas e covardes iniciadas por essas nações contra outras populações amigas. A Índia tenta fazer isso.

Há tempos foi detectado na Amazônia, em terra indígena (11%), enormes reservas de potássio, um mineral do composto NPK (nitrogênio, fósforo e potássio) para fertilizantes agrícolas, de que o Brasil importa 95%. Do mesmo modo, o Brasil, com grandes reservas de petróleo e gás natural, não apenas nas costas do Rio de Janeiro, mas também na Bahia, no Nordeste é obrigado a importar sistematicamente uma grande quantidade desses produtos (8 milhões de toneladas), parte vem dos árabes, em guerra eterna com o estado de Israel (1948), instalado naquela faixa do Oriente Médio pela ONU para contornar os males do nomadismo e o holocausto do povo judeu. 

O governo do Brasil que, nos últimos meses, assumiu a presidência de algumas organizações internacionais, alega preocupação com a descarbonização da economia e em introduzir um novo modelo energético, capaz de dispensar os combustíveis fósseis e a exploração econômica na Amazônia. Lula tergiversa, contudo - e não está sozinho: China, Portugal e outros. Sabe-se que, por acordos externos, o País é obrigado a manter suas reservas naturais inexploradas   em benefício do comércio e da vida no Planeta, o que resulta na punição de suas populações internas: fome, desemprego, e políticas   sociais deficientes. Daí a democracia relativa ser aparentemente negociável, inclusive o petróleo, o gás e o potássio amazônicos. Os vetos presidenciais ao PL 490/07 retornam ao Congresso para nova votação. Os defensores do PL original têm a maioria. Há muita confusão ainda aí pela frente.  Desta vez, contudo, quem decidirá em definitivo é o Parlamento e os interesses que os sustentam. Se assim for, livram a cara do Presidente.

* Jornalista e professor

 

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