Valor Econômico
Fragilização de lei por Ricardo Lewandowski
abriu flanco para reaparelhamento político das estatais
Severino Cavalcanti era um político do baixo
clero que, por um desatino da política brasileira, assumiu a Presidência da
Câmara dos Deputados em 2005. Segundo os relatos da imprensa na época, o
deputado teria pressionado Lula, então em seu primeiro mandato, a lhe dar o
direito de nomear um apadrinhado para “aquela diretoria da Petrobras que
fura poço e acha petróleo”.
Eduardo Cunha, outro célebre presidente da
Câmara, acreditava que indicar um aliado para a diretoria ou a vice-presidência
de um banco público, como a Caixa Econômica Federal, lhe daria mais poder e
influência do que obter um Ministério.
Diante de tanto interesse no controle das decisões de bancos públicos e estatais, que têm orçamento e flexibilidade de contratação e despesas muito maiores que os órgãos da Administração Direta, não causa surpresa a ampliação do corpo diretivo dessas companhias nos últimos anos. Para se ter uma ideia, em 1994 a diretoria da Caixa era composta por seis integrantes - mesmo número de membros de seu Conselho de Administração. Hoje, além do presidente, são doze vice-presidentes e 25 diretores-executivos; já o conselho tem oito assentos.
Com uma carteira de crédito de mais de R$ 1
trilhão, no caso da Caixa, e um orçamento de investimentos de US$ 78 bilhões
para o ciclo 2023-2027, que deve der ampliado em breve pela Petrobras,
empresas públicas e de capital misto despertam a cobiça da classe política. Não
foi à toa que o maior caso de corrupção de nossa história teve as duas estatais
como palco, protagonizando operações que desviaram bilhões para grandes grupos
privados, como Odebrecht e JBS.
Como resposta à devassa que havia levado
diversos executivos e políticos para a prisão, em meio ao processo de
impeachment de Dilma, o então presidente em exercício Michel Temer (ele próprio
investigado por ser beneficiado pelo esquema nas estatais) sancionou a Lei nº
13.303/2016, que reforçava as regras de governança corporativa desses entes.
Entre as medidas prudenciais previstas na Lei
das Estatais estava a vedação de indicações para o Conselho de Administração e
a diretoria dessas empresas de detentores de altos cargos nos Poderes Executivo
e titulares de mandatos legislativos, ainda que licenciados, assim como
dirigentes de partidos políticos e qualquer pessoa que tenha participado com
poder decisório em campanhas eleitorais nos 36 meses anteriores. O objetivo era
blindar as estatais da influência política nos seus processos decisórios.
Na última semana, duas decisões mostram como
as boas ideias não prosperam no Brasil, diante dos interesses políticos.
Primeiro, a Petrobras decidiu
fragilizar sua política de governança corporativa, sinalizando uma intenção de
voltar a permitir a nomeação de dirigentes partidários e políticos para sua
diretoria e Conselho de Administração. Dois dias depois, Lula decidiu demitir a
então presidente da Caixa, Rita Serrano, e nomear Carlos Vieira Fernandes,
atendendo a pedidos de Arthur Lira e do Centrão.
Como muito bem lembrou Malu Gaspar na sua
última coluna n’O Globo, a classe política deve a Ricardo Lewandowski esse
presente. Em um dos últimos atos de sua passagem pelo Supremo Tribunal Federal,
o ex-ministro concedeu uma liminar suspendendo os dispositivos da Lei nº
13.303/2016 que restringiam a nomeação de políticos para a cúpula de estatais.
Apesar de reconhecer que as exigências da Lei
das Estatais representam “inovações altamente moralizadoras”, contribuindo para
“conferir mais transparência, controle, previsibilidade e imparcialidade às
atividades das empresas estatais” e assegurar que sua administração “seja
levada a termo com o mais elevado grau de profissionalismo e eficiência”, o
ministro Lewandowski deixou mais uma vez sua lealdade política prevalecer em
seus julgados.
Num exercício argumentativo que choca pela
fragilidade, o ex-ministro considerou que a vedação temporária de indicação de
políticos para posições estratégicas das estatais (válidas durante o exercício
de seus cargos e no máximo até 36 meses de sua participação na vida partidária
ou em disputas eleitorais) seria uma medida inconstitucional por ferir os
direitos à isonomia e à igualdade dos políticos, pois a lei lhes impõe uma
condição mais restritiva do que a válida para os demais cidadãos.
Citando parecer da Procuradoria-Geral da
República, Lewandowski ainda reiterou que as regras contra o aparelhamento
político das estatais seria “uma espécie de punição pela participação
partidária, com privação de direito em face de convicção política”.
Na lógica de Lewandowski, em vez de se agir
preventivamente limitando a possibilidade de captura política das estatais, o
ideal seria confiar no espírito republicano dos dirigentes partidários - como
se nossa história não tivesse inúmeros exemplos demonstrando justamente o
contrário.
O fortalecimento da governança corporativa
das estatais deveria receber o apoio da população brasileira, independentemente
das preferências políticas de cada um.
Afinal, da mesma forma que não foi saudável o
forte aparelhamento dos postos estratégicos de grandes estatais com militares
indicados por Bolsonaro, a perspectiva de que políticos do PT ou do Centrão
voltem a ocupar o comando de bancos e empresas públicas pode ser a reprise de
uma velha história que, sabemos, não tem final feliz.
*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”.
O pior é que é verdade.
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