sexta-feira, 13 de outubro de 2023

César Felício - Terror do Hamas acua esquerda no Brasil

Valor Econômico

Barbárie do Hamas dificulta o discurso pacifista que está na raiz da tradicional postura diplomática brasileira

A dificuldade em distinguir a causa palestina da condenação clara ao terrorismo do Hamas acua a esquerda nas redes sociais e na opinião pública. Do ponto de vista político, essa é a principal consequência doméstica da barbárie desencadeada pelos extremistas palestinos em Israel em 7 de outubro, estopim de uma guerra com desdobramentos ainda imprevisíveis.

Para ficar nas manifestações oficiais: o PT lamentou “a escalada de violência envolvendo palestinos e israelenses”. O PCdoB disse condenar “os ataques realizados por determinação do premier de Israel, Benyamin Netanyahu, contra a Palestina, como resposta ao contra-ataque organizado pelo Hamas”. O Psol deplorou “o apartheid sionista de Israel que vem empobrecendo o povo palestino”. O Rede disse condenar o terrorismo e o fundamentalismo de Netanyahu e do Hamas. O PDT não se manifestou. O PSB é a exceção, com o presidente da sigla, Carlos Siqueira se solidarizando com Israel em postagem nas redes. Salvo Siqueira, não se fez diferenciação entre culpados e vítimas.

Política externa não costuma ser citada como assunto relevante no debate doméstico, mas esse é um conceito que precisa ser revisto. Tem se tornado cada vez mais importante, como constata o professor do Instituto de Relações Internacionais da USP Feliciano Sá Guimarães, orientador da pesquisadora Anna Mello em uma tese de doutorado sobre o tema que será apresentada também no Kings College de Londres.

Mello monitorou 5 milhões de tuítes brasileiros sobre 50 temas de política externa entre 2018 e 2023. “Os temas internacionais são motivadores de engajamento e coesionam campos ideológicos, que constroem uma visão de política externa consistente”, comenta Feliciano. E a balança pende com força para a direita. Eles observaram que a causa palestina tinha praticamente sumido desse debate.

Uma pesquisa de monitoramento nas redes sociais feito pela empresa Torabit, a pedido desta coluna, mostra a mescla da agenda internacional com a nacional. A plataforma analisou 85.192 postagens da data do começo dos ataques até as 11 horas de 11 de outubro no Facebook, Twitter e Instagram. Desse total, apenas 13% foram de caráter informativo, sem juízo de valor. Uma maioria de 68,6% das postagens foram de solidariedade ao Estado de Israel, 20,8% a causa palestina e apenas 10,6% deram apoio à solução de dois Estados, que é a tradicionalmente apoiada pela diplomacia brasileira. Hamas e terrorismo aparecem em 33% das menções. Citações ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e à esquerda partem do bloco solidário a Israel. Essas menções em geral ligam o atual governo e seus apoiadores ao Hamas.

 

A guerra em Israel e Gaza não é um conflito comum. Não se trata apenas de uma guerra discutida por especialistas, que buscam compreender razões de Estado que levam o Itamaraty a emitir comunicados serenos, mesmo com a existência de vítimas brasileiras.

Esta guerra move o imaginário nacional de uma forma mais intensa do que outro enfrentamento em curso, o da Ucrânia. E com facilidade maior na tomada de posições. A guerra no Leste Europeu divide a direita e a esquerda. A do Oriente Médio coloca a esquerda na defensiva e a direita no desafogo, depois da ressaca golpista de 8 de janeiro.

O conflito entre árabes e israelenses há muito tempo nucleia a esquerda em torno do primeiro polo e a direita em torno do segundo. Isso se dá em duas camadas. A primeira é a política: de um lado há uma luta antiimperialista, contra a discriminação transformada em política de Estado; a favor da autodeterminação dos povos. Do outro, a defesa do Ocidente, em uma perspectiva de choque das civilizações.

A segunda camada é a cultural e religiosa. Ainda que entre israelenses e árabes haja fundamentalismo dos dois lados, esta não é a realidade brasileira. A esquerda é em sua maioria laica e cada vez mais voltada para políticas identitárias, com pautas que conflitam com a visão religiosa. O Brasil é um país que se torna mais evangélico, e dentro do segmento evangélico, mais pentecostal. Esse é um dos pilares da direita no País.

Não raro se vêem manifestantes cobertos pela bandeira da estrela de Davi em atos conservadores. É o sionismo cristão, que se alimenta do milenarismo. Guerras em Israel apontam para o fim dos tempos, a volta de Cristo. “Israel é visto como um relógio escatológico”, comentar o pastor batista Kenner Terra, do Rio de Janeiro. E também é a Terra Santa é o que os evangélicos têm de mais perto com a ideia de santuário, como aponta o pastor presbiteriano Valdinei Ferreira. Como observou o pastor batista Ed Kivitz, não se difencia o Estado de Israel moderno com o judaísmo do Velho Testamento. “Falta letramento à realidade”, afirmou.

A barbárie do Hamas também dificulta o discurso pacifista que está na raiz da tradicional postura diplomática brasileira e complica o estabelecimento da equivalência entre os atos terroristas e o torpedeamento da solução de dois Estados arquitetada por Netanyahu. É difícil, para não dizer impossível, relativizar o episódio de agora como mais uma consequência da ocupação de territórios palestinos por Israel, condenada pela ONU desde 1967.

Atos de agressão como o do Hamas legitimam guerras. Desta forma se legitimaram a Primeira Guerra Mundial, cujo estopim foi um ato terrorista, ou a Guerra contra o Talibã, em 2001, depois da queda das Torres Gêmeas. O desenrolar desses conflitos, com toda sua sucessão de infâmias, recoloca posteriormente o apelo pela paz.

 

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