segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Demétrio Magnoli - Israel, depois de Netanyahu

O Globo

Não há saída fora da política

Num só dia, o dia do terror, desmanchou-se no ar o conceito estratégico que norteou os governos israelenses de Netanyahu desde 2009. A ilusão da segurança sem paz foi destroçada pela maior carnificina da história do Estado judeu. Agora, Israel definiu o objetivo de desmantelar militarmente o Hamas. É outra ilusão: não há saída fora da política.

A segurança sem paz apoiou-se sobre três pilares. O primeiro, militar, materializado no rígido controle das fronteiras da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, esfarelou-se em poucas horas. O segundo, político, baseado no estímulo à divisão dos palestinos em governos rivais, destinava-se a enfraquecer a Autoridade Palestina e a justificar a sabotagem permanente de negociações de paz. No fim, acabou nutrindo o terrorismo do Hamas.

O terceiro pilar, diplomático, representado pelos Acordos de Abraão, de reconhecimento mútuo entre Israel e os países árabes, seria coroado pelo acordo com a Arábia Saudita. A finalidade era congelar, para sempre, a questão dos direitos nacionais palestinos. A guerra em curso desenrola-se entre as ruínas do edifício estratégico erguido por Netanyahu — e sobre os escombros políticos do governo de Netanyahu.

O meio século de ocupação dos territórios palestinos envenenou Israel, gerando o governo atual, pontilhado de extremistas, que se entregou à aventura autoritária de subordinar a Suprema Corte à maioria parlamentar. As falhas dramáticas de inteligência na Guerra do Yom Kippur (1973) cortaram as carreiras políticas de Golda Meir e Moshe Dayan. As desastrosas vulnerabilidades evidenciadas pelo ataque do Hamas assinalam o ocaso de Netanyahu. A guerra e, sobretudo, o pós-guerra exigem um governo de unidade nacional — e um novo conceito estratégico.

A crise humanitária que se agrava deixa uma janela limitada para a ação militar israelense. Bombardeios aéreos não desmantelarão o Hamas. Só a invasão terrestre de Gaza, um pesadelo tático que envolve guerra em área urbana, é capaz de assestar golpes profundos na organização terrorista. Contudo nem isso impedirá a reconstrução de suas estruturas de poder no território.

A invasão do território palestino, em 2014, com operações terrestres de 19 dias, não evitou a reconstituição do Hamas. A reocupação permanente de Gaza, uma hipótese em cogitação, transformaria as forças de segurança israelenses em alvos fixos de ataques sem fim. Não é por acaso que Israel retirou unilateralmente suas tropas do território palestino em 2005.

O Estado judeu enfrenta um dilema histórico. O desmantelamento do Hamas solicita a combinação de operações militares com uma iniciativa política de reabertura de negociações com o que resta da Autoridade Palestina. A era da fantasia terminou: no fim das contas, a segurança de Israel depende da paz com os palestinos.

Os palestinos da Cisjordânia desprezam o governo cleptocrático de Mahmoud Abbas, mas não seguiram o chamado do Hamas por um levante popular armado. Segundo a mais recente pesquisa do Jerusalem Media & Communication Centre, de 2022, a organização terrorista só conta com o apoio de 13,5% dos palestinos.

A mesma pesquisa revelou que 64% dos palestinos de Gaza preferem o caminho das negociações, ante 16% que defendem ações militares do Hamas. Para separar em definitivo o povo palestino da organização terrorista, Israel precisa oferecer esperança — e, portanto, restabelecer negociações substanciais com a Autoridade Palestina.

O ataque do Hamas teve a finalidade principal de destruir as sementes do acordo Israel/Arábia Saudita. Os terroristas triunfarão se, conduzido pelos deuses da ira, Israel devastar a Faixa de Gaza na tentativa impossível de eliminar o Hamas por meios exclusivamente militares. A saída política exige a conclusão do acordo histórico, cujo alicerce seria a afirmação do paradigma da paz em dois Estados.

Há 50 anos, a Guerra do Yom Kippur destravou a paz entre Israel e Egito. Num cenário novo, depois do Hamas e de Netanyahu, a guerra desencadeada pelo terror do Hamas pode destravar a paz entre Israel e os palestinos. As vítimas, dos dois lados, merecem a perseguição desse ideal.


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