Revista IHU On-Line
23 outubro 2023
Jerusalém "Não
é impossível que o conflito se alastre, abrangendo e incendiando uma
nação após outra. Há que se temer o pior", escreve o filósofo e sociólogo
francês Edgar Morin, em
artigo publicado em La Repubblica,
20-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Os monstruosos massacres cometidos pelo Hamas contra
os judeus israelenses em 7
de outubro causam-me profundo horror. Nada justifica esses ataques
fanáticos, muito menos a questão
do povo palestino, cuja justa causa é dissimulada por esses atos bárbaros.
O terrorismo do Hamas ocultou e está ocultando para muitos o terror
de um Estado que respondeu a esses impiedosos fanáticos de forma impiedosa
contra dois milhões de habitantes de Gaza,
causando já três mil mortes. E como Netanyahu anunciou,
isso é apenas o começo.
O ódio não é novo. Mas agora está vindo de
ambos os lados. Gera o delírio da culpa coletiva do povo inimigo, que conduz às
piores crueldades e aos massacres, atingindo também mulheres, idosos e
crianças.
A contextualização dos horrores do 7 de outubro, indispensável para qualquer entendimento, coloca-os, em primeiro lugar, na longa história do povo israelense, vítima milenar do antijudaísmo cristão, depois do antissemitismo racial que visava o seu extermínio, e cuja pátria israelense viu-se por muito tempo ameaçada por Estados hostis. Israel não foi um oásis de refúgio, mas uma cidadela em guerra.
Essa história trágica criou a tragédia
do povo palestino. Depois da Guerra da Independência de Israel (1948),
o povo palestino foi parcialmente expulso de suas terras e acabou em campos de
refugiados no Líbano, na Jordânia e na Cisjordânia, onde
ainda está estacionado. Depois da Guerra dos Seis Dias de 1967, toda
a Cisjordânia,
chamada por Israel de Judeia-Samaria, viu-se ocupada e colonizada não
apenas por um Estado, mas ainda hoje por centenas de milhares de colonos
israelenses.
A consequência do Holocausto,
palavra que significa catástrofe, foi a Naqba, palavra palestina com o
mesmo significado, que foi de fato a catástrofe da Palestina árabe.
Assim como é necessário manter viva a memória
dos milhões de vítimas do nazismo, também é necessário o respeito por essa
memória que não pode justificar o domínio de Israel sobre
o povo palestino, que é inocente em relação aos crimes de Auschwitz.
A maldição de Auschwitz deve ser o
privilégio que justifica toda repressão israelense?
A colonização da Cisjordânia, que começou
precisamente no século da descolonização em África e na Ásia, assemelha-se em
muitos aspectos àquelas em que as revoltas e as repressões multiplicaram
sangrentos assassinatos de civis entre os opressores e os oprimidos. A
diferença não é apenas no agravamento da colonização, mas também no
conflito originário entre duas sacralizações antagônicas em relação a Jerusalém e
à Palestina.
Séculos de antijudaísmo cristão, depois
antissemitismo racista e três anos de extermínio nazista alimentaram o mito
sionista do retorno à pátria original.
De fato, Israel mudou a condição judaica.
A humilhação secular do judeu sem-terra, submisso e medroso, deu lugar ao
orgulho judaico pelas façanhas militares do povo judaico e pelos
empreendimentos agrícolas dos kibutzim. Os
intelectuais judeus universalistas diminuíram a favor de intelectuais
essencialmente sensíveis ao destino de Israel, e para alguns deles a Torá substituiu
o Manifesto Comunista.
A noção de "confissão israelita",
uma pertença puramente religiosa, foi substituída pela noção de povo judeu,
presente tanto na França como em Israel.
Esse apego radical, que deve ser
compreendido, levou à justificação incondicional de todas as ações de Israel,
incluindo a opressão
dos palestinos. Os ocidentais, principalmente os europeus, sentindo-se
culpados pelas devastações genocidas do antissemitismo, mostraram-se
favorável à nação judaica.
Israel, filho do antissemitismo europeu e
ocidental, tornou-se o posto avançado privilegiado da presença ocidental num
perigoso mundo árabe. O recente pró-judaísmo (que reduziu, mas não eliminou o
antigo antissemitismo) favorece Israel, enquanto ao mesmo tempo a existência de
Israel despertou um imenso antijudaísmo no mundo árabe-muçulmano. A isso
se somaram, a partir de 1948, considerações estratégicas e militares. Israel obteve
a independência graças à vitória sobre os estados árabes que tentavam
aniquilá-lo pela raiz e desenvolveu uma força militar superior àquela dos
estados vizinhos que há tempo se mantinham hostis. Impôs-se um Israel
imperioso, que ignora inúmeras resoluções da ONU para a criação de um Estado
palestino. Houve um momento privilegiado em que Arafat e Rabin apertaram
as mãos e foram assinados os acordos de Oslo, que previam os dois estados.
Mas o assassinato de Rabin por um fanático judeu é o desaparecimento da
esquerda israelense levaram ao domínio de uma coalizão nacionalista-religiosa
que visa a anexação de toda a Cisjordânia e segue por seu caminho.
Nessas condições, é difícil ver a
possibilidade de um Estado palestino com centenas de milhares de
colonos israelenses que lhe são radicalmente hostis e é difícil imaginar
que Israel retire seus assentamentos. As perspectivas são sombrias;
as violências tendem a se intensificar de ambos os lados, com ataques
indiscriminados e repressões em massa igualmente indiscriminadas. As verdades
unilaterais triunfam, mascarando as verdades contrárias. Ódios e medos dominam
os espíritos.
Não é impossível, mas é duvidoso, que uma
ação conjunta das Nações Unidas e dos Estados Ocidentais e árabes possa levar a
um resultado decisivo.
Não é impossível que o conflito se alastre,
abrangendo e incendiando uma nação após outra. Há que se temer o pior.
Que pelo menos as nossas mentes possam
resistir aos delírios. A nossa missão não é apenas rejeitar o ódio, mas fazer
todo o possível para chegar a um início de compreensão mútua, não só
entre Israel
e Palestina, mas também entre os apoiadores franceses de ambos os povos,
sem abandonar ao esquecimento uma causa justa.
Aos 102 anos, o Mestre mantém sua lucidez! Com metade da idade, alguns colunistas brasileiras nunca a tiveram e nem vão tê-la...
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