terça-feira, 10 de outubro de 2023

Entrevista | Rubens Ricupero: ‘Conflito amplia temor de recessão’

Por Daniela Chiaretti / Valor Econômico

Gaza é prisão a céu aberto. Eles não têm muito o que perder. Querem uma solução definitiva”

“São crimes de guerra que devem ser condenados de maneira inequívoca. Não é uma guerra contra o Estado de Israel apenas, mas contra a população israelense”, diz o embaixador Rubens Ricupero, condenando o ataque do Hamas a Israel no sábado. “O que está acontecendo no Oriente Médio ocorre no pior momento possível. O mundo já está com muita angústia. O medo de uma nova recessão, que não estava afastada agora aumenta”, continua o jurista, que foi ministro do Meio Ambiente e também da Fazenda.

“Não se pode esquecer que a economia mundial não tinha se recuperado da covid. Em cima disso ocorreu a guerra da Ucrânia e agora, que se tenta superar a inflação sem cair na recessão, vem uma nova guerra”, continua. Ricupero lembra que os países poderosos, com assentos permanentes no Conselho de Segurança da ONU, têm posições distantes. “Mas mesmo que o Conselho de Segurança concorde com uma resolução, o poder dela é simbólico”, diz ele.

Na entrevista ao Valor, o ex-embaixador do Brasil nos EUA dá ideia da complexidade do quadro - a fragilidade de Israel nos últimos anos, o ressentimento dos palestinos, o impacto da guerra no Brasil. “O problema é que o vem depois”, diz.

A seguir trechos:

Valor: Como o senhor vê o desdobramento dessa guerra?

Rubens Ricupero: Quero deixar claro uma condenação absoluta aos atentados contra civis em Israel. Não é uma guerra como a do Yom Kippur, feita por exércitos regulares com a conquista de objetivos militares. É uma invasão com o objetivo de matar o maior número de pessoas indiscriminadamente, e fazer reféns. São crimes de guerra que devem ser condenados de maneira clara e inequívoca. Não é uma guerra contra o Estado de Israel apenas, mas contra a população israelense. O maior número de vítimas foi o massacre feito na rave, com 260 mortos jovens, desarmados e que estavam festejando. É um crime inominável e deve ser repelido de maneira veemente.

Valor: O que pode acontecer com o petróleo e commodities?

Ricupero: É cedo para dizer, irá depender da duração e da envergadura das operações militares. Antes da guerra o preço do petróleo estava caindo, e a Arábia Saudita tinha decidido cortes adicionais na produção. O primeiro efeito da guerra foi fazer aumentar os preços de novo. É difícil dizer agora até que ponto vai. Se a guerra se prolongar muito tempo, o efeito será muito negativo e o preço do petróleo deve aumentar por várias razões.

Valor: Quais?

Ricupero: Se Israel transformar a Faixa de Gaza em um monte de ruínas, vai ser mais difícil a Arábia Saudita voltar à produção normal de petróleo. A medida seria interpretada como favorável aos interesses dos americanos e ocidentais, aliados de Israel. Se houver um aumento de sanções contra o Irã, a mesma coisa. A Rússia, outro grande produtor, está com uma posição neutra na guerra. As autoridades russas se pronunciaram de maneira diferente do que fizeram no passado. Sempre condenavam atentados contra civis e manifestavam condolências. Vladimir Putin falava com o líder de Israel. Dessa vez, adotaram uma distante neutralidade. Fizeram comunicado mostrando apreensão, mas não entraram em condenações específicas, não expressaram condolências nem deram nenhum sinal de interesse de Putin em mostrar que ainda é uma influência no Oriente Médio.

Valor: Qual o motivo?

Ricupero: Está sendo interpretado de duas maneiras. Uma em função da guerra na Ucrânia, que é o foco dele. E o segundo é o Irã, que se tornou um aliado estreito da Rússia, é quem fornece drones a eles. No domingo houve reunião do Conselho de Segurança da ONU, a portas fechadas. As agências dizem que o Conselho não chegou a nenhum acordo porque as posições dos países com poder estão muito distantes.

Valor: Pode explicar?

Ricupero: Em um extremo, os Estados Unidos, que pressionavam pela aprovação de uma resolução que concentrasse o foco na condenação do Hamas, da maneira mais forte possível, mas sem mencionar negociações de paz, as raízes da guerra, a necessidade que a resposta israelense não seja exagerada. Os EUA não queriam colocar nada disso nas resoluções. Outros países, que não se sabe exatamente quais, mas se entende que sejam a Rússia, a China e outros, querem uma resolução mais ampla, que não fique apenas na condenação ao Hamas, mas que aponte um caminho - um cessar-fogo imediato, iniciar negociações, procurar uma solução definitiva para o problema palestino-israelense. Não houve consenso e as consultas vão continuar. Mas tem que se ter em mente que isso não afeta muito a conduta do conflito.

Valor: O Conselho de Segurança não pode fazer muito?

Ricupero: Mesmo que o Conselho de Segurança concorde com uma resolução, o poder dela é simbólico. Pode condenar o Hamas, mas dificilmente terá algum poder sobre o desejo dos israelenses de fecharem as operações. As operações mal começaram. Na manhã de hoje (segunda-feira), o Ministério da Defesa de Israel decretou o cerco completo da Faixa de Gaza. Não vão deixar entrar água, comida, eletricidade. É o prelúdio de um ataque. Vai se desfechar um ataque muito grande, que não se sabe exatamente se será um ataque aéreo ou se farão também uma operação terrestre. Vai haver muitas mortes, sobretudo do lado palestino, mas também do lado dos invasores. A Faixa de Gaza é um território muito pequeno com dois milhões de habitantes, uma das áreas de maior densidade de população do mundo. E eles não têm para onde correr. Em uma operação terrestre haverá um custo humano muito alto também do lado israelense. O problema é o que vão fazer depois disso.

Valor: Depois?

Ricupero: Tudo isso é ainda obscuro. Estamos naquilo que se chama “the fog of war”, o nevoeiro da guerra. O que se sabe apenas é o desencadeamento do que foi um ataque do Hamas, agora vem o outro lado. E tem mais de uma centena de reféns israelenses. É mais uma incógnita: Israel vai negociar ou atacará sem levar em conta o destino dos reféns?

Valor: Qual é a causa disso?

Ricupero: Os israelenses estavam convencidos há anos que o Hamas não despejaria mais um ataque. Que já havia sofrido um impacto tão grande na retaliação israelense que havia se contentado em dominar a Faixa de Gaza. O fato é que o Hamas estava armando uma grande operação que deve ter sido montada com semanas de antecedência sem que os israelenses percebessem. O lançamento de mísseis foi uma cortina de fumaça

Valor: Uma cortina de fumaça?

Ricupero: Para que não percebessem a invasão terrestre. No passado, toda vez que o Hamas tentou entrar em Israel foi através de túneis cavados, que os israelenses destruíram depois e ergueram barreiras. Só que o Hamas derrubou as barreiras e invadiu o território por terra enquanto jogava os mísseis. O dano maior que fizeram foi matando as pessoas nas ruas, nas casas, na rave. Os mísseis disfarçaram uma invasão terrestre. Como disse o embaixador de Israel na ONU foi um “Pogrom”, mataram as pessoas por serem judeus. Agora, o Hamas sabe que com isso não irá derrotar Israel.

Valor: Qual é o objetivo deles?

Ricupero: O primeiro é demonstrar que eles é que representam a causa palestina e não a Autoridade Palestina, do Mahmoud Abbas, que controla a Margem Ocidental (do rio Jordão, ou “West Bank”). Ele já estava desmoralizado porque os israelenses cada vez mais estavam permitindo novos colonos. O Hamas indica agora que ele é quem representa a resistência contra os israelenses. Um segundo objetivo visa a estratégia que tem sido seguida pelos Estados Unidos desde Donald Trump. A política de Trump para o Oriente Médio era apoiar totalmente Israel e estimulava a desconhecer os direitos dos palestinos. Segundo, procurava normalizar o relacionamento de Israel com países árabes mais sujeitos às relações americanas. E o terceiro objetivo era levar a Arábia Saudita a imitar esse exemplo. Joe Biden continuou essa política.

Valor: Há um terceiro objetivo?

Ricupero: Têm esperança de sobreviver, graças aos reféns, e forçar uma solução definitiva. A Faixa de Gaza é uma prisão a céu aberto. Vivem uma vida muito difícil, não têm muito o que perder. Querem algo que acabe com o cerco e querem garantias. Imaginaram que esse ato de violência é a maneira de chamar a atenção para o destino deles, que é preciso encontrar uma solução para os palestinos. Li no domingo o Haaretz, o melhor jornal de Israel. No editorial, coloca a culpa em Benjamin Netanyahu, o primeiro-ministro de Israel.

Valor: Qual o argumento?

Ricupero: Porque exerceu o poder há 14 anos com o grande título de ser o homem que ia garantir segurança aos cidadãos israelenses. Mas perseguiu uma política que alimentou esse tipo de ataque, porque não deu esperança nenhuma aos palestinos. Ultimamente, quando voltou ao poder, agravou a situação porque retornou com uma coligação de extrema direita. Segundo o jornal, sua preocupação é salvar a própria pele porque está sendo processado pela justiça criminal de Israel por corrupção. Ao voltar ao poder, deu atenção basicamente à reforma do Judiciário. Em vez de resolver o problema pendente com os palestinos, que ignorou, desencadeou essa crise que dividiu Israel pela metade e enfraqueceu o país. Israel está dividido como o Brasil e os Estados Unidos, em duas metades.

Valor: Qual seria a reação dos outros?

Ricupero: No passado, a fonte da resistência a Israel era o Egito e a Síria. Em determinado momento também foi o Iraque. Com as mudanças históricas estes países foram sendo neutralizados. Só o Irã, que não é árabe, é o único país que o Ocidente não controla, tem força militar própria, recursos do petróleo e é a grande força dessa região.

Isso nunca teria acontecido na época em que os Estados Unidos tinham um poder incontestável naquela região.

A situação mundial hoje é muito pior do que foi quando houve outros acontecimentos desse tipo. Hoje estamos em um mundo em que a guerra da Ucrânia inaugurou novamente a guerra na Europa, o mundo em que os Estados Unidos e a China se encontram como dois polos de um antagonismo crescente em todos os setores. É um mundo muito deteriorado, em que a possibilidade de um consenso mundial é mínima -e isso se vê até nas negociações climáticas. O mundo de hoje é um sistema internacional com enorme dose de conflito.

Valor: E para o Brasil?

Ricupero: O impacto para o Brasil em termos de petróleo é negativo, mas o país é um grande exportador de petróleo. O Brasil ganha e perde. Mas o que está acontecendo lá ocorre no pior momento possível. O mundo já está com muita angústia. O medo de uma nova recessão, que não estava afastada agora aumenta. Não se pode esquecer que a economia mundial não tinha se recuperado da covid, em cima disso a guerra da Ucrânia e agora tentar superar a inflação sem cair na recessão, agora vem uma nova guerra, no Oriente Médio.

Valor: Qual o cenário?

Ricupero: A política de Netanyahu de encostar os palestinos na parede criou condições para uma reação até suicida, como a do Hamas. Agora, confrontado com tudo isso, vai querer mostrar que pode reverter a situação. A chance de um banho de sangue é imensa. Isso irá agravar mais o ressentimento dos palestinos.

Um comentário:

  1. Estaria Pútin assim tão quietinho, mesmo? Nada melhor para ele que ser criada uma nova frente de batalha fora da Ucrânia. Só lhe falta a China engrossar o caldo em Taiwan...
    Os EUA, sem presidente no Congresso, vai ter que dividir esforços em duas frentes (por enquanto). E isso prejudica Zelensky e AJUDA Pútin. O caldo de cultura para um novo conflito mundial está se formando celeremente.

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