Folha de S. Paulo
Toda isenção ou desconto estendido a um grupo
é pago pelos que ficaram de fora
Eu era um membro conformado do grupo dos
otários que pagam inteira no cinema.
Sim, otário: graças ao desconto concedido a estudantes, idosos e outros, gente
como eu pagava mais caro. Mas eis que, neste fim de semana, vim para o lado
vantajoso da força: minha operadora de celular tem um convênio com uma rede de
salas, o que me valeu o direito à meia. Muito em breve, absolutamente todo
frequentador de cinema terá sua meia entrada.
O resultado disso, é claro, não será uma economia para todos, e sim uma entrada que simplesmente custará o dobro. Toda isenção ou desconto estendido a um grupo é pago por aqueles que ficaram de fora. Se ninguém ficar de fora, o benefício se extingue.
Se já conquistei a meia entrada no cinema,
ainda pertenço a outro grupo de otários: os que, sem lobby em Brasília,
não terão alíquota especial na Reforma
Tributária, e portanto pagarão um IVA mais alto para custear o
desconto amigo dos demais.
Justificativas não faltam, a começar pela
social: vamos desonerar, por exemplo, os itens da cesta básica. O primeiro
sinal de que isso não era uma boa ideia foi a voracidade com que resolveram
adicionar produtos à cesta básica, colocando até capacete e tijolo entre os
itens necessários para alimentar uma família. A solução foi
criar duas cestas, cada uma com sua alíquota especial. Definir qual
produto entra em qual cesta promete muita judicialização futura.
A segunda distorção é que o benefício
da isenção nunca vai inteiro para o público-alvo, o povo pobre que
precisa comer. Uma parte fica com as próprias empresas, que não abatem a
isenção completa do preço final do produto. Outra parte vai para a classe média
e o rico, que também consomem arroz, feijão e farinha. Isso reduz a parte que
sobra ao pobre.
E quem paga a
conta desse benefício mal focalizado? Todos os outros setores,
que arcarão com um IVA mais alto, além, é claro, de seus consumidores. Seria
socialmente mais eficaz arrecadar o imposto da cesta básica normalmente e daí
transferir essa arrecadação aos consumidores pobres. Algo me diz, no entanto,
que isso não interessaria tanto aos lobistas empresariais.
Até aqui estamos falando das isenções que ao
menos têm um verniz social. Outras não
têm nem mesmo isso —são a defesa aberta de privilégios
corporativistas.
Médicos e
advogados com faturamento milionário, o sofrido agro. Será uma boa
ideia o Estado criar uma bolsa especial para eles? Depositar todo mês um extra
na conta bancária dos médicos que já faturam acima do Simples?
É o que vai ocorrer, embora com menos transparência para a opinião pública,
posto que não haverá uma transferência do Tesouro para a conta deles.
É deprimente defender a Reforma Tributária
nos termos de que "mesmo
assim será melhor do que a situação atual". Isso só indica que
ainda há espaço para outros cavarem sua boquinha. Insatisfeitos com a isenção
de 60%, representantes do agro já pleiteiam 80%. E se deixarmos, não vão parar
até tornar a reforma inócua.
Não se engane: toda vez que o representante
de um setor ou classe defende uma alíquota especial para si, o que ele está
dizendo é que ele quer tirar seu dinheiro e te tratar como otário, ainda
tornando toda a economia menos eficiente e a legislação tributária mais
complexa, contrariando a razão de ser da reforma. Reconhecer isso com clareza
é, quem sabe, o primeiro passo para impedi-lo.
É...
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