sexta-feira, 20 de outubro de 2023

José de Souza Martins* - No Brasil, velhice é uma categoria econômica, e não etária

Valor Econômico

O conceito de velho ficou claro quando uma economista do governo anterior comentou que os velhos causavam prejuízo à Previdência Social

Neste mês de outubro, completo 85 anos de idade. Sou de uma classe social de origem em que meus avós não sabiam a própria idade nem sabiam para que servia sabê-la. Preocupei-me pela primeira vez com idade no dia em que o médico olhou os exames que eu havia feito e comentou: “Pra sua idade, você está muito bem!”. O acento em “na sua idade” parecia indicar uma anomalia e, nesse sentido, não estava bem.

O conceito de velho ficou claro quando uma economista do Ministério da Economia, no governo anterior, comentou, e vazou, que os velhos causavam prejuízo às contas da Previdência Social. Ou seja, um trabalhador viver mais e melhor não é um prêmio por uma vida de trabalho, é um crime de lesa-economia. Velho é, portanto, quem se aposenta e prejudica o sistema previdenciário. Senhor de escravos tinha mais generosa concepção da velhice de seus cativos.

Não é de agora que, no Brasil, velhice não é uma categoria etária, mas uma categoria econômica. Por aí, os seres humanos não devem ser definidos por sua humanidade, mas por sua lucratividade, o ser humano como matéria-prima da linha de produção.

Nasci e cresci no subúrbio operário de São Paulo, no meio de fábricas, numa família de trabalhadores. Meia hora depois do meu nascimento, a parteira me colocou nos braços de meu pai, que sentenciou: aos 7 anos eu iria para a escola primária, terminaria o curso com 10 anos de idade e aos 11 anos ingressaria na carpintaria de seus primos, meus tios, para aprender o ofício de carpinteiro, o de quase todos os membros homens de minha família paterna. Com 30 minutos de vida eu já estava empregado.

Só fui conhecer uma pessoa desempregada na vizinhança quando já era adulto. O desemprego só se tornou um problema social em meados dos anos 1950, com a multinacionalização da economia que nos trouxe técnicas de criação de superpopulação relativa no mercado de trabalho, como a reestruturação produtiva e a substituição cíclica de operários mais velhos e mais caros por operários mais moços e mais baratos.

Chegar aos 40 anos de idade era chegar à velhice decretada, não a do tempo vivido. Mais gente procurando emprego do que emprego procurando gente. Uma técnica laboral para diminuir a competência reivindicativa da classe operária e diminuir os custos do salário na contabilidade das empresas.

Há uns 40 anos, na fila do banco para pagar uma conta, descobri que a velhice se transformara numa profissão, a dos velhos que, por terem preferência no atendimento, furavam fila. Eram contratados para ir ao banco pagar as contas de diferentes empresas. Velhice em tempo parcial.

Diante da variedade de significados da palavra idade e da palavra velhice tentei descobrir o verdadeiro critério da pós-modernidade brasileira para definir o que é nascimento, o que é aniversário, o que é idade e o que é velhice. Na verdade, tomei de empréstimo uma definição de Florestan Fernandes, meu professor e meu catedrático de sociologia na Universidade de São Paulo.

Filho de uma lavadeira pobre, morara num porão e começara a trabalhar com 7 anos de idade. Como, em princípio, no Brasil, as pessoas são de fato consideradas aptas ao trabalho com 18 anos, ele acrescentava os 11 anos da antecipação laboral de sua maioridade à idade biológica.

Fiz o mesmo para ver no que dava. Nascido em 1938, comecei a trabalhar com 11 anos de idade. Sou uma do 1.319.182 crianças trabalhadores do censo de 1950. Acrescentei, portanto, aos 85 anos que estou fazendo, 7 anos à minha idade biológica e cheguei aos 92 anos de minha idade social.

Olhei no espelho e nunca vira nenhuma mudança. Até o dia em que um idiota, quando eu ainda dirigia, buzinou várias vezes, me ultrapassou, me chamou de velho e xingou minha mãe que nada tinha a ver. Desde então, tento entender o que a definição de velho quer dizer.

Aposentei-me depois de 38 anos como docente da Universidade de São Paulo. Com registro em carteira, eu já havia trabalhado sete anos em diferentes empresas e contribuíra para a Previdência Social em todos esses anos. Portanto, 45 anos de contribuição previdenciária, dez anos mais do que o necessário.

O sistema econômico do país roubou-me parte da infância e a adolescência inteira. Servidor público aposentado, o governo roubou-me também a velhice porque, mesmo inativo, ainda tenho que fazer a contribuição previdenciária. O Estado lembra-se todas os meses de me mandar essa conta, mas nem uma única vez lembrou-se de me devolver os valores dos dez anos de minha contribuição previdenciária acima da que eu estava obrigado.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, 2021).

 

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