quarta-feira, 25 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Rio carece de nova estratégia para segurança

O Globo

Governo tem procurado agir, mas medidas adotadas não têm sido suficientes contra crime organizado

A urgência de o Rio adotar uma nova política de segurança pública ficou evidente na noite de segunda-feira. Depois da morte de um miliciano em confronto com agentes da Polícia Civil no bairro de Santa Cruz, Zona Oeste da capital, pelo menos 35 ônibus, um trem e quatro caminhões foram incendiados. A tensão atingiu sete bairros, onde moram mais de 1 milhão. Escolas fecharam. A população sofreu para chegar em casa.

Outubro já havia trazido más notícias. No último dia 5, quatro criminosos executaram três médicos e feriram outro num quiosque da Barra da Tijuca. Menos de 24 horas após a execução, os assassinos foram encontrados mortos na Zona Oeste, provavelmente por ordem da facção a que pertenciam. Em todo o episódio, a polícia foi mera espectadora. Na última quinta-feira, equipes da Polícia Federal e do Ministério Público do Rio prenderam quatro agentes da Polícia Civil, sob a acusação de tráfico de drogas e corrupção.

A sucessão de reveses foi concomitante a duas trocas sucessivas de comando na secretaria de Polícia Civil, promovidas pelo governador Cláudio Castro para atender a interesses da Assembleia Legislativa (Alerj). Desde que Castro assumiu o governo em 2020, o estado anunciou a compra de 21 mil câmeras portáteis, a construção de um centro de treinamento e a inauguração da Agência Central de Inteligência da Polícia Civil. Ao mesmo tempo, o governo criou uma força-tarefa contra as milícias e colheu frutos: afirma ter prendido mais de 1.500 milicianos, apreendido produtos ilegais e fechado fábricas, depósitos clandestinos e centrais de pirataria.

O resultado dessas políticas, porém, tem ficado aquém do desejado. Castro manteve a separação entre as secretarias das polícias Civil e Militar estabelecida pelo antecessor. Embora o governo afirme que ambas trabalham em coordenação, a realidade tem sido outra. Pelos dados oficiais, entre janeiro e setembro deste ano, as mortes violentas cresceram 15,2% na capital na comparação com o mesmo período do ano passado, ante queda de 1,9% no estado. Na região que foi foco dos ataques desta semana, elas subiram 83,3%. É verdade que houve queda nas mortes por intervenção da polícia na capital (10,5%), mesmo assim elas ainda respondem por quase 27% do total.

Operações contra lideranças da milícia ou do tráfico são vitais em qualquer planejamento contra o crime organizado e estarão sempre suscetíveis a reações. Mas as investidas contra o comando do crime precisam fazer parte de uma estratégia com começo, meio e fim. As autoridades devem estar prontas para fazer frente a represálias.

Sem planejamento, as ações serão inócuas. A estrutura criminosa se mantém inabalada, e o líder morto é logo substituído por outro. Em vez de enfraquecer a milícia, operações a esmo expõem sua força. É certo que o governador tem procurado agir, mas as medidas adotadas têm sido insuficientes. O estado precisa de uma política de segurança pública com maior integração entre as polícias Civil e Militar. O planejamento deve incluir objetivos, como reocupação do território ou estrangulamento financeiro das quadrilhas. É um trabalho difícil, mas a cada dia mais necessário.

Retorno de indicações políticas na Petrobras representa retrocesso

O Globo

Mudança no estatuto deteriora a governança da estatal ao tornar postos de comando objeto de barganha

Não surpreende a reação negativa do mercado à comunicação da Petrobras de que retirará de seu estatuto barreiras contra nomeações políticas de diretores e conselheiros. Em questão de horas, a empresa perdeu quase 7% do valor de mercado, ou mais de R$ 32 bilhões. A mudança, segundo a empresa, se deve à necessidade de adequação à liminar do ministro Ricardo Lewandowski que considerou inconstitucionais exigências estabelecidas pela Lei das Estatais. É um argumento difícil de aceitar. A medida piora a governança da Petrobras, permitindo que seus postos de comando voltem a ser objeto de barganha política.

Promulgada em 2016, na esteira da descoberta de um esquema de corrupção sem paralelo com eixo na Petrobras, a Lei das Estatais estabeleceu diversas regras para disciplinar a governança das empresas públicas e evitar escândalos comparáveis. Passou a exigir dos indicados à diretoria um tempo mínimo de experiência em cargo relevante em companhia do mesmo ramo e outros requisitos usuais para a alta gerência no setor privado. Também impôs quarentena de três anos para a nomeação de dirigentes partidários ou responsáveis por campanhas eleitorais a postos de comando.

PT e outros partidos — entre eles o PCdoB, cujo pedido de liminar foi feito numa Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela legenda contra a Lei das Estatais — jamais apoiaram o estabelecimento de regras de mercado para balizar a indicação de dirigentes nas empresas públicas. A tentativa de emendar a lei para facilitar as indicações políticas não prosperou no Congresso (está parada no Senado). Mas a liminar de Lewandowski resolveu o problema para os políticos. Com ela, o Planalto pôde abrigar indicados na presidência de órgãos públicos e passou a distribuir ministros pelos conselhos de empresas públicas. Agora, a Petrobras abriu também a oportunidade de indicações políticas à diretoria.

No auge do “petrolão”, recursos de projetos superfaturados aprovados pela Petrobras financiavam o pagamento de propinas. A própria empresa reconheceu desvios de R$ 6,2 bilhões em seu balanço. Eles só ocorreram porque os diretores eram, com o beneplácito de Brasília, apadrinhados pelos políticos de diferentes partidos que se beneficiavam dessas propinas. O desmonte da Operação Lava-Jato tem ensejado recuo em vários mecanismos de combate à corrupção, como constatou na semana passada relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O plenário do Supremo Tribunal Federal tem o dever de analisar a liminar de Lewandowski quanto antes para evitar que, com o enfraquecimento da Lei das Estatais, se consolide mais um retrocesso.

Mudanças abrirão caminho a loteamento da Petrobras

Valor Econômico

Como o passado mostra, em vez de ampliar sua base, o governo estará contratando imensos problemas

O escândalo bilionário de corrupção na Petrobras, no qual petistas e partidos do Centrão se uniram para desviar recursos, trouxe de imediato reforços na legislação e nas instituições de investigação e vigilância. A maré virou e os ventos revisionistas procuram desfazer limites levantados para evitar repetições do petrolão. A lei das estatais (a 13.303, de 30 de junho de 2016) disciplinou a escolha de diretores e membros dos Conselhos das empresas públicas, mas um de seus pontos principais, o da qualificação para ocupar cargos de direção, foi fulminada por uma liminar do ministro Ricardo Lewandowski antes de se aposentar. A Petrobras informou ontem que pretende “atualizar” seu estatuto social para se adequar à liminar.

O presidente Jair Bolsonaro já tinha feito letra morta das vedações constantes da lei para fazer as indicações que bem quisesse na estatal. A lei proíbe a indicação de ministros e secretários de Estado, dirigentes estatutários de partidos políticos e titulares de mandato no Poder Legislativo para os cargos. Ela acrescenta no rol dos impedimentos pessoas que atuaram nos últimos 36 meses em estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a campanhas eleitorais, além de pessoas que possam ter ou tenham qualquer tipo de conflito de interesses com a companhia. Bolsonaro atropelou a proibição e, entre outros, indicou Jonathas Assunção, secretário executivo de Ciro Nogueira, líder do PP, e Ricardo Soriano, da Procuradoria Geral da Fazenda, para o conselho da Petrobras.

O governo Lula fez a mesma coisa. Pietro Mendes e Efrain Cruz, secretários do Ministério de Minas e Energia, foram eleitos para o conselho e são agora objeto de questionamentos em processo da Comissão de Valores Mobiliários, que também instaurou outro para as indicações do governo anterior. Em ambos os casos, a forma de burlar a lei foi a mesma. As instâncias de governança da Petrobras apontaram a inconformidade das indicações com os preceitos legais. Como as recomendações dos comitês não são “mandatórias”, a assembleia com maioria governista as aprova. Os pareceres, no entanto, baseiam-se no fato de que a lei é mandatória e deveria ser cumprida.

Ávidos por cargos na estatal, o Centrão e o PT embutiram um artigo em um projeto votado nos últimos dias de 2022, que aumentava os limites de publicidade e patrocínio das empresas públicas. Nele foi reduzido de 36 meses para 30 dias o período mínimo para que dirigentes de partidos políticos ou os que trabalharam em campanha eleitoral pudessem assumir cargos de direção nas estatais.

O Senado, entretanto, não aceitou a manobra e não votou o projeto, que, no entanto, recebeu decisão liminar monocrática do ministro Ricardo Lewandowski em ação do PCdoB. Ele considerou os limites impostos a parlamentares e líderes partidários “desarrazoados, desproporcionais”, além de consistirem em “discriminação odiosa e injustificável”, e derrubou-os.

A toda indicação imposta de Bolsonaro e Lula para a Petrobras, argumentava-se que para atendê-las seria preciso mudar o estatuto social da empresa. Isto não aconteceu, e a lei é que foi, pelo menos provisoriamente, emasculada. Agora a Petrobras se propõe a concluir a obra e submeter à próxima assembleia três mudanças no estatuto: o fim das vedações para ocupação de cargos de direção e conselho, a revisão da política de indicação de membros da alta administração e do conselho fiscal e a criação de uma reserva de remuneração de capital. Todas desagradaram aos investidores, e a estatal perdeu em um dia R$ 32,3 bilhões em valor de mercado.

O esclarecimento da Petrobras ao fim do dia não esclareceu nada. “O objetivo é tão somente manter o Estatuto Social da Petrobras atualizado, quaisquer que venham a ser as decisões judiciais sobre o tema”, registra a nota. Como liminar, por definição, é uma decisão temporária, que requer confirmação por sentença de mérito, ou a estatal transformará seu estatuto em obra em progresso ou, o que é provável, prepara-se para trazer para seu centro decisório indicações partidárias que atendam mais a conveniências políticas do governo do que a necessidades de gestão da companhia.

O momento em que a Petrobras toma a iniciativa é delicado para o governo. A protelação da distribuição de cargos da administração exigidos pelo Centrão está atrasando votações de interesse do governo no Congresso. Ao mudar o estatuto da Petrobras e mostrar-se disposto a abrir cargos de direção para políticos na companhia, eles serão objeto imediato de cobiça do centrão fisiológico. Foi para atender ao PP e a Severino Cavalcanti, presidente da Câmara filiado ao PP (como Arthur Lira), que Paulo Roberto Costa foi indicado diretor de Abastecimento. Costa foi um dos primeiros delatores da Lava-Jato e revelou em detalhes a extensa rede de corrupção na estatal. O PT jamais admitiu ter participado do esquema de pilhagem da estatal e pode até considerar a barganha política por cargos na Petrobras adequada a seus interesses. Como o passado mostra, em vez de ampliar a base governista, estará contratando imensos problemas.

Rio em chamas

Folha de S. Paulo

Caos é prova da falência da política de segurança das autoridades fluminenses

Ao menos 35 ônibus, um trem e veículos de passeio foram incendiados na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro na segunda (23), resultando em um dos dias mais caóticos na história do estado.

Seja pela ampla extensão geográfica dos ataques ou pelo prejuízo causado às empresas, na casa dos R$ 38 milhões, além do dano inestimável à população mais pobre, os atos de terror marcam, a fogo, o fracasso da política de combate ao crime organizado fluminense.

O caos na capital ocorreu em resposta à morte de um dos líderes da maior milícia do estado, Matheus da Silva Rezende, o Faustão, atingido por tiros durante confronto entre criminosos e agentes policiais na comunidade Três Pontes. Considerado o número dois da organização criminosa, Faustão era sobrinho do atual líder, Luís Antônio da Silva Braga, o Zinho.

Apesar do episódio sem precedentes, milícias já dominam parcela do estado a partir de forte crescimento na última década.

Em 16 anos, estes grupos armados, e com profunda relação com o Estado, cresceram 387% em áreas sob seu domínio, totalizando 256,3 km², segundo dados do Instituto Fogo Cruzado com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense. São 64 Copacabanas nas mãos dos milicianos.

O investimento em combate primordialmente ostensivo a esses grupos ignora sua complexidade e penetração estatal, como ficou demonstrado nesta semana.

Diante de conflitos territoriais violentos do tráfico, em especial entre 2016 e 2018, milícias aproveitaram a oportunidade para angariar espaço no Rio de Janeiro, com expansão territorial, inserção nas forças políticas e armadas do estado e penetração no mercado ilegal de drogas, hoje operado muitas vezes em parceria com traficantes.

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), parece resumir a questão a uma política de caça a bandidos, como se o gelo do crescimento das milícias pudesse ser facilmente enxugado sem o desmantelamento, com monitoramento preventivo, do controle territorial destas facções.

Igualmente é ingênuo supor que apenas o plano federal de envio de homens, viaturas e blindados da Força Nacional —sem metas claras— vá gerar resultados diferentes em relação ao passado.

Hoje, o estado fluminense é marcado, de um lado, pelo investimento em enfrentamento armado seletivo, em vez de inteligência. De outro, pela tolerância com o crescimento das milícias. Oferecer soluções fáceis para a questão não é somente ineficiente, mas leviano.

Para que funcione a política de segurança pública no Rio de Janeiro, ela primeiro precisa existir.

Mais controle

Folha de S. Paulo

Deve-se melhorar coleta de dados e fiscalização para dirimir fraudes com Fundeb

Os indícios de fraudes no uso de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) apurados por esta Folha revelam a necessidade de se criar mecanismos mais robustos de fiscalização e controle dessa fonte de recursos.

A reportagem verificou que, em 108 cidades do país, houve inflação expressiva no número de matriculados no Ensino de Jovens e Adultos (EJA) —modalidade destinada à população com 15 anos ou mais de idade que não teve acesso ou interrompeu os estudos antes de concluir a educação básica.

Esses municípios tiveram, em média, um crescimento de 14,4% de matrículas no EJA entre 2021 e 2022. Contudo, segundo o Censo Escolar, a inserção de novos alunos no programa durante o mesmo período teve queda de 6,3% no país.

Em Santa Quitéria do Maranhão (MA), por exemplo, o número de matriculados no EJA saltou de cerca de 500 em 2020 para mais de 6 mil em 2022, o que representa 23,2% da população da cidade —enquanto as médias brasileiras são de 498 e 1,6%, respectivamente.

Os dados apontam para a possibilidade de que prefeituras tenham inflado artificialmente seus dados para conseguir mais recursos do Fundeb, que os distribui de acordo com a quantidade e o tipo de matrículas em estados e municípios. Estima-se que, se a média fosse similar à nacional, elas teriam recebido cerca de R$1,2 bilhão a menos de verba pública.

A maioria das 108 cidades consta no Mapa de Risco do Ministério da Educação, que lista 520 com indícios de problemas nas informações repassadas ao Censo Escolar. O MEC disse que denúncias são investigadas, mas que não é responsável por fiscalizar municípios.

A educação básica no Brasil já sofre com disparidade crônica no direcionamento de verbas, com US$ 3.583 de gasto por aluno (a média da OCDE é de US$ 10.949), enquanto no ensino superior é de US$ 14.735 (US$ 14.839 na OCDE). Fraudes contribuem ainda mais para aumentar distorções e desigualdades na alocação de recursos escassos em área sensível.

É preciso incrementar a base de dados nacional, agilidade na identificação de discrepâncias e no acionamento dos órgãos de controle nas três esferas de poder, como o Ministério Público e a Controladoria Geral da União. É o mínimo para tapar ao menos esse vazamento de dinheiro público.

O Rio de joelhos

O Estado de S. Paulo

Não foi da noite pra o dia que as milícias acumularam o poder de parar a cidade quando lhes dá na veneta. Isso é decorrência de anos de promiscuidade entre criminosos e agentes do Estado

A morte do miliciano Matheus da Silva Resende, vulgo “Teteus”, parou o Rio de Janeiro no fim da tarde de segunda-feira passada. Como isso foi possível, é dever do governador Cláudio Castro explicar. Em represália à operação da Polícia Civil que culminou na morte do criminoso, o segundo na hierarquia de uma das milícias mais poderosas do Estado, seus comparsas atearam fogo a ao menos 35 ônibus, deixando milhares de cariocas a pé e em pânico na volta do trabalho. Ademais, o bloqueio de vias públicas deu um nó no trânsito da capital fluminense, violando o direito de ir e vir inclusive de quem estava a quilômetros da zona oeste da cidade, epicentro dos atos que Castro classificou como “terroristas”.

Se essa desabrida afronta ao poder estatal e a violência praticada contra gente inocente a bordo dos ônibus ou não podem ser classificadas como terrorismo, o Ministério Público e o Poder Judiciário vão dizer. O fato é que, seja qual for a tipificação dos crimes, os cariocas vivem aterrorizados com essa guerra por domínio territorial que há décadas tem formado zonas de exclusão no Rio, como se fossem enclaves dos quais não se entra ou sai sem a anuência dos barões do crime organizado – sejam eles das milícias ou do tráfico de drogas, quando não das “narcomilícias”.

Não poderia haver evidência mais cabal de que o Rio está de joelhos diante do crime organizado do que o inferno em que se transformou a vida dos cariocas naquele dia, e simplesmente porque um bandido morreu em confronto com a polícia. A declaração de Cláudio Castro, à guisa de justificativa, de que o serviço de inteligência da polícia não anteviu os ataques dos milicianos porque “não foram ações coordenadas” só ilumina esse quadro lamentável de absoluta falência do Estado para exercer uma de suas atribuições fundamentais, detentor que é do monopólio da violência.

Um dos sinais mais fortes da falência do poder público é o fato de que menos de 2% do território da cidade do Rio está fora do domínio do tráfico ou das milícias, segundo o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF). Isso não apenas coloca em risco a vida dos cidadãos, mas também macula a imagem do Brasil no cenário internacional, minando a percepção de segurança e comprometendo investimentos.

A bem da verdade, em se tratando do Rio, é pertinente refletir: está-se diante de incompetência propriamente dita, isto é, de incapacidade do Estado para agir, ou, é forçoso dizer, de leniência, quando não cumplicidade entre setores do Estado e as organizações criminosas? Afinal, reação de bandidos a investidas da polícia contra seus negócios sempre houve. O que parece ser novo, no caso em tela, é a escala inaudita dessa resposta da milícia à operação da Polícia Civil que acabou por eliminar um dos seus.

Não é desarrazoado pensar que houve algum ruído nessa espécie de pacto de convivência entre alguns agentes do Estado e a milícia a que pertencia o tal de “Teteus”. Pois é disso que se trata, de um mutualismo pernicioso que faz dos cariocas reféns da promiscuidade entre criminosos e agentes públicos que, em tese, deveriam combatê-los. Não é por acaso que, na origem da formação das milícias, estão justamente servidores do Estado – policiais e bombeiros – que, exatamente como faz a Cosa Nostra siciliana, se organizaram para “proteger” a população contra traficantes e outros tipos de delinquentes – e cobrando caro pelo “serviço”.

Ora, um bando com o poder de parar uma das capitais mais importantes do País, cuja paisagem é a imagem mais representativa do Brasil no exterior, não nasce da noite para o dia nem tampouco prospera nos negócios ilegais sem contar com a cumplicidade de agentes públicos. Esse acúmulo de poder do crime organizado – seja o tráfico de drogas, sejam as milícias – decorre de um processo de degradação do poder estatal que vem de décadas. Esse problema não será superado até que, entre outras medidas, policiais voltem a ser policiais, e bandidos voltem a ser bandidos. Hoje, os cariocas são incapazes de fazer essa necessária distinção.

O bom combate à corrupção

O Estado de S. Paulo

Relatório da OCDE critica a decisão de Toffoli que anulou as provas da Lava Jato, mas é preciso apontar também os vários erros do Ministério Público e da polícia que levam à nulidade

No dia 19 de outubro, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou um relatório no qual reconhece diversos avanços do Brasil no combate à corrupção, mas também indica algumas preocupações da entidade quanto às perspectivas futuras. Em concreto, menciona o risco de um retrocesso com a decisão do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou as provas decorrentes do acordo de leniência da Odebrecht no âmbito da Operação Lava Jato.

A decisão de Dias Toffoli tem diversos equívocos e foi severamente criticada por este jornal (ver o editorial O dever do STF de respeitar o cidadão, 10/9/2023). Em um momento em que o País precisa de estabilidade e segurança jurídica, um ministro do STF se pôs a fazer revisionismo histórico, lançando as piores suspeitas sobre a Corte constitucional, como se fosse órgão instável, parcial e submisso aos ventos políticos de ocasião.

De toda forma, é equivocado atribuir as dificuldades na prevenção e punição da corrupção no País exclusivamente ao Supremo ou à legislação brasileira, excluindo dessa responsabilidade o Ministério Público e a polícia. Segundo uma visão que se tornou bastante frequente, o problema estaria no Judiciário e na lei – leia-se, no Congresso –, que não deixam o Ministério Público e a polícia atuarem como desejariam. Haveria excessivas amarras legais, que precisariam ser removidas ou simplesmente desconsideradas.

Mencionando processos em que a Justiça reconheceu a prescrição de crimes de corrupção, a OCDE critica os prazos prescricionais previstos na lei brasileira. Segundo o Código Penal, a prescrição é regulada pelo máximo da pena privativa de liberdade estabelecido para cada crime. Por exemplo, um crime prescreve em 20 anos se o máximo da sua pena for superior a 12 anos de prisão; e em 16 anos se a pena máxima for superior a 8 anos. O menor prazo prescricional é de 3 anos, nos casos de pena prevista inferior a um ano.

Como se vê, não são prazos pequenos. Quando um crime prescreve – isto é, quando em razão do decurso de tempo, o Estado perde o direito de punir determinado crime –, a responsabilidade não é da lei, e sim de quem não realizou seu trabalho a tempo, dentro do prazo que a legislação prevê.

A prescrição é uma garantia do cidadão, uma vez que limita o poder do Estado. E também é estímulo para que os órgãos públicos funcionem adequadamente. Para prevenir e punir com eficiência a criminalidade, em vez de permitir que o Estado investigue e puna supostos crimes cometidos há 40 anos, o caminho é estimular que os crimes sejam investigados e punidos o mais rápido possível, sem atrasos desnecessários.

Em diversas situações, o STF proferiu decisões que geraram insegurança e instabilidade na jurisprudência. Tudo isso é extremamente prejudicial ao País e merece contundente reprovação. No entanto, é preciso reconhecer que, em muitas outras situações, a Corte agiu bem ao assegurar o respeito à Constituição e às leis brasileiras. O combate eficiente contra a corrupção não significa aplaudir ou ser condescendente com tudo o que o Ministério Público ou a polícia fazem.

No Estado Democrático de Direito, a lei é o critério. Se os órgãos públicos não agem dentro da legalidade, cabe ao Judiciário assegurar o cumprimento da lei. Nessas hipóteses, infelizmente bastante frequentes, o problema não foi causado pela Justiça – reconhecendo, por exemplo, uma nulidade processual –, e sim por quem gerou a nulidade com a atuação fora da lei.

A entrada do Brasil na OCDE é um objetivo que merece ser buscado seriamente, uma vez que pode trazer muitos benefícios ao País. No entanto, isso não significa abdicar da soberania nacional, condescender com práticas que violam a legislação brasileira ou ignorar as diferenças existentes nos sistemas jurídicos.

Não basta reclamar do STF e do Congresso. O necessário avanço na prevenção e punição da corrupção deve se dar também por uma melhora no trabalho do Ministério Público e da polícia, no sentido de plena aderência ao que a Constituição e a lei dispõem.

Hora da prudência

O Estado de S. Paulo

Na Argentina, o presidente Lula não deve confundir seus desejos pessoais com questões de Estado

Pode ser lida como natural a expressão de entusiasmo de expoentes do governo Lula da Silva, entre os quais o próprio, diante dos resultados do primeiro turno das eleições presidenciais na Argentina. O pleito do último dia 22 trouxe alívio no Palácio do Planalto ao indicar o favoritismo do atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa, na disputa do segundo turno de novembro contra o candidato “antissistema” Javier Milei. O jogo ainda indefinido, entretanto, requer do Brasil a contenção de ânimos e de iniciativas que possam ser consideradas, no país vizinho, como intervenções em seu processo eleitoral. A bem do interesse nacional, convém preservar o diálogo com o vencedor, seja qual for sua identidade políticoideológica.

No primeiro turno, setores políticos antagônicos do Brasil imiscuíram-se em diferentes graus, como se a eleição, do lado de lá da fronteira, replicasse automaticamente a polarização do lado de cá. A caravana de apoio de parlamentares direitistas brasileiros a Milei, liderada pelo notório deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), foi uma expressão dessa desajustada visão transnacional da disputa argentina. A presença na campanha de Massa de especialistas em marketing político, que no passado prestaram seus serviços ao PT, igualmente gerou ruídos. Ao ser conhecido o resultado de domingo, ministros de Lula ultrapassaram o limite da cautela nas redes sociais.

Além da camaradagem com o peronismo, o governo Lula tem um rol de motivos para torcer pela vitória de Massa. Uma parte deles coincide com o interesse nacional, uma vez que o adversário do peronista, não por acaso apelidado de “El Loco”, defende a saída da Argentina do Mercosul, vê como problema o comércio bilateral e trata o Brasil como tão “comunista” quanto a China. Mais graves, na perspectiva brasileira, são suas propostas de governo para a correção do rumo da economia do país. Mesmo abrandadas na campanha, as promessas de Milei de dolarização total, de implosão do Banco Central e de ajuste fiscal extremo sinalizam para um colapso nunca antes visto em um país calejado no caos econômico.

Faz-se necessário ponderar que a firme relação Brasil-Argentina foi construída a partir de elos de confiança que encerraram uma corrida nuclear nos anos 1980. Da construção do Mercosul, com compromissos que vão muito além da integração comercial, ao enfrentamento de crises locais e internacionais, ambos os países sobrepuseram juntos a paz, a democracia e a integração como valores inalienáveis. Ao Brasil, interessa uma Argentina sustentável do ponto de vista econômico e socialmente justa. A recíproca é verdadeira do outro lado – salvo na retórica de Milei.

O cenário de incertezas na Argentina até 19 de novembro exige ponderação do Brasil, mesmo ao custo do atraso de medidas para a desobstrução do comércio bilateral e outras emergências. Qualquer suspeita de interferência do Executivo e da oposição no processo eleitoral argentino, mesmo inconsistente, resultará em potencial prejuízo às relações. A razão demanda prudência neste momento e, sobretudo, a preservação dos laços Brasil-Argentina.

É preciso conter o crime organizado com inteligência

Correio Braziliense

O Brasil tem de encarar a questão da segurança pública como prioridade, assim como a educação e a saúde, sob pena de termos cidadãos educados e saudáveis, mas reféns da violência

Os atos praticados na Zona Oeste do Rio de Janeiro são uma afronta não só ao governo do estado como também a todo o Brasil. Há anos, o país assiste, passivamente, ao aumento da violência no lugar que já abrigou a sede do governo brasileiro e que é o cartão-postal do Brasil no mundo, seja por suas belezas naturais, por seus carnavais que se candidatam à maior festa do mundo ou pela Garota de Ipanema, a bela canção de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, que ganhou mais de 500 versões em todo o mundo. Basta. Não é mais possível que, depois do que ocorreu segunda-feira, se busque as mesmas soluções que foram ineficientes até agora. O Brasil precisa encarar a questão da segurança pública como prioridade, assim como a educação e a saúde, sob pena de termos cidadãos educados e saudáveis, mas reféns da violência.

No Rio de Janeiro, apesar da intervenção federal entre 2018 e 2019, exatamente para combater o crime organizado, não se chegou a uma proposta para equacionar o problema das milícias, que surgiram como grupos paramilitares criados em comunidades, com o argumento de oferecer segurança e combater o tráfico de drogas. O que pareceu ser um "remédio", aceito passivamente pelas autoridades e por moradores, sendo que estes estão sempre acuados e no meio do tiroteio. Um levantamento feito pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), as milícias formam o maior grupo criminoso do estado, com um aumento de 387% nas áreas sob domínio de grupos paramilitares, entre 2006 e 2021.

Hoje, o domínio desses grupos ilegais corresponde a 256km², o que equivale, praticamente, à metade do território do crime organizado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, que chega a 510km². Nada menos do que 4,4 milhões de cidadãos vivem em áreas controladas por milicianos ou traficantes no Rio de Janeiro. Na prática, operando quase que "livremente", milicianos e traficantes estão juntos em muitos locais, formando o que é chamado de "narcomilícias".

Com a omissão do poder constituído, que muitas vezes é integrado por criminosos, esses bandidos agem quase que impunemente, e apenas reagem de forma terrorista — afronta ao estado e temor nas pessoas — quando veem seus interesses contrariados. A reação à morte de Matheus da Silva Rezende, o Faustão, bandido acusado de mais de 20 homicídios, levou à queima de 35 ônibus e um trem, causando um prejuízo de mais de R$ 35 milhões, deixando milhares de trabalhadores sem transporte, alunos sem aula e obrigando o comércio a fechar as portas.

O governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro, anunciou a prisão de 12 pessoas que teriam colocado fogo nos veículos. Seis delas foram soltas. É uma resposta pequena e insignificante do poder público estadual. De ataque em ataque, o Rio vai se transformando em um campo de guerra e os governos vão se esforçando em adotar medidas que não atacam de frente o problema do crime organizado. No meio político, volta-se a discutir a criação do Ministério da Segurança Pública, como se a existência de uma estrutura isolada fosse suficiente para resolver o problema da violência.

Mais do que burocracias é preciso modernizar a legislação criminal para endurecer as penas, modernizar e rever a estrutura carcerária brasileira, que com raras e honrosas exceções ressocializa detentos, e combater o fluxo financeiro dessas organizações, para sufocá-las e ter uma forma de usar esse dinheiro da atividade criminosa na reparação de prejuízos causados pelos atos terroristas que promovem. É preciso mais do que discursos e estruturas burocráticas, é preciso inteligência para tornar efetivas as ações contra o crime organizado.

 

 

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