segunda-feira, 23 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Recuo do Brasil no combate a corruptos tem efeito global

O Globo

OCDE manifesta preocupação com decisão do STF que anulou provas do acordo de leniência com Odebrecht

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) publicou na semana passada um relatório específico sobre o combate à corrupção no Brasil. Não é um relatório qualquer. Faz parte da avaliação do Grupo de Trabalho Antissuborno (WGB, na sigla em inglês) sobre o cumprimento da Convenção Antissuborno do organismo multilateral, a que o Brasil aderiu em 2000. Foi o quarto escrutínio a que o país se submeteu para avaliar a implementação de mecanismos de prevenção e combate à corrupção, em especial praticada por estrangeiros. A OCDE registrou preocupação com a impunidade e constatou o retrocesso nos últimos anos, marcados pelo recuo dos processos vinculados à Operação Lava-Jato.

Em dez anos, as autoridades investigaram, segundo o relatório, apenas 28 de 60 alegações de corrupção envolvendo estrangeiros. Oito de nove réus foram absolvidos por prescrição de crimes. Ninguém recebeu condenação final, necessária para cumprir pena. “O grupo de trabalho está preocupado que o Brasil não seja capaz de sustentar o nível de combate à corrupção atingido nos últimos anos”, diz o documento.

Uma das causas centrais dessa preocupação, depreende-se da leitura, é a decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulou as provas obtidas por meio do acordo de leniência feito pelo Ministério Público com a empreiteira Odebrecht, homologado em 2017. Mesmo tomada depois de os avaliadores da OCDE deixarem o país, o WGB cita a decisão, destacada como principal tema sobre o qual o Brasil terá de prestar esclarecimentos na próxima rodada de avaliação, daqui a dois anos.

Além de anular as provas, Toffoli determinou que Procuradoria-Geral da República, Tribunal de Contas da União, Conselho Nacional de Justiça e Conselho Nacional do Ministério Público apurassem responsabilidades de todos os que praticaram atos relacionados ao acordo. Juristas preveem um “efeito dominó” com a suspensão de vários processos e ressarcimento de multas impostas a cidadãos e empresas. O STF divulgou nota afirmando que o acordo de leniência com a empreiteira continua “válido e eficaz”. Disse que a anulação das provas já fora decretada e sancionada pela Segunda Turma da Corte e que Toffoli apenas estendeu os efeitos, “tudo na forma da reiterada jurisprudência da Corte”.

O relatório da OCDE manifesta preocupação com várias outras deficiências jurídicas brasileiras que favorecem a corrupção. Primeiro, os prazos de prescrição de crimes, considerados “inadequados para coibir suborno”. Segundo, o arcabouço jurídico que cerca as delações premiadas, tido como insuficiente para proteger delatores, em particular no setor privado. Por fim, diz o documento, “o Brasil precisa enfrentar com vigor as questões de independência que podem deter policiais e procuradores”. É necessário, segundo os autores, evitar a “politização” da Procuradoria-Geral da República e a “interferência indevida” na Polícia Federal e em outras agências de investigação.

O relatório é um revés inequívoco para o desejo do Brasil de ser integrante pleno da organização que reúne os países mais desenvolvidos do mundo. Deve, portanto, ser analisado pelas autoridades com atenção. Elas precisam demonstrar que o desfecho da Lava-Jato não significou que o Estado brasileiro tenha se tornado leniente no combate ao desvio de dinheiro público.

Furto em arsenal do Exército para abastecer tráfico não é caso isolado

O Globo

Fontes de armas do crime incluem empresas de segurança e, desde Bolsonaro, os registrados como CAC

O desvio de 21 metralhadoras de grosso calibre do arsenal do Exército em Barueri, na Região Metropolitana de São Paulo, foi o maior furto de armas de um quartel desde março de 2009, quando sete fuzis foram levados de um posto de sentinela de Caçapava, no Vale do Paraíba, também em São Paulo. Na ocasião, a Polícia Civil recuperou o armamento e prendeu suspeitos, entre eles um militar. Parece lógico que só é possível driblar o sistema de segurança de um quartel com ajuda interna.

No caso de Barueri, o Exército já manteve aquartelados no local 480 militares. Quando foi constatado o desaparecimento das armas, na última terça-feira, eram 160. As investigações se concentram em três, mas não surpreenderá se houver mais gente envolvida no transporte para fora do arsenal de armamentos que pesam ao todo meia tonelada. Sobretudo se levarmos em conta onde foram parar: 13 metralhadoras do lote furtado foram oferecidas à maior facção criminosa do Rio de Janeiro por R$ 180 mil cada (ou R$ 2,3 milhões o lote), segundo noticiou o portal g1. Na quarta-feira, oito das 21 armas foram resgatadas na comunidade Gardênia Azul, na Zona Oeste do Rio, numa área controlada pelo tráfico, mas disputada com milicianos. Outras nove foram encontradas num lamaçal em São Roque, perto de São Paulo.

O furto de armas para oferecer a traficantes e milícias não é caso isolado. A mais importante fonte de abastecimento dos paióis do crime são empresas de segurança privadas. Em 2019, uma delas, instalada nas cercanias da favela Caixa d’Água, no Cangaíba, Zona Leste de São Paulo, registrou queixa do furto de 41 revólveres e espingardas. A empresa funcionava nas proximidades de uma comunidade de onde saíram chefes de uma organização criminosa. Os policiais suspeitam que as armas foram simplesmente repassadas ao crime.

A CPI sobre armas instalada em setembro de 2015 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) constatou que, entre 2005 e aquele ano, haviam sido desviadas quase 19 mil armas: 700 saíram de quartéis da PM, 900 de delegacias da Polícia Civil e 17 mil de empresas de segurança que atuavam no estado. Cerca de 30% do armamento dessas empresas foi parar nas mãos do crime. Mesmo diante do descalabro, menos de 3% dos inquéritos instaurados pelo Ministério Público foram concluídos.

A partir de 2019, as armas em circulação aumentaram devido ao afrouxamento da regulação no governo Jair Bolsonaro, com destaque para a distribuição sem critérios de registros de Colecionadores, Atiradores Desportivos e Caçadores (CACs). A aquisição de armas e munições de forma legal para fornecer ao crime também se tornou um negócio. O novo governo baixou um decreto em julho para restringir o acesso a armas e limitar os CACs. É preciso que as novas normas sejam cumpridas, não fiquem apenas no papel. Por fim, é necessário haver também controle efetivo dos arsenais das Forças Armadas, das polícias e das empresas de segurança. Essa também é uma forma de combate ao crime organizado.

Ações políticas aproximam Brasil dos Estados Unidos

Valor Econômico

Se não alienar sua independência no Brics, o Brasil pode construir parcerias econômicas com os EUA

A rivalidade entre Estados Unidos e China, as duas maiores economias do mundo, provocará mudanças geopolíticas em escala global. Há um ensaio de redirecionamento diplomático não só dos dois principais adversários, mas também de potências médias, que tentam obter vantagens mantendo relações de interesse político e econômico com os polos da disputa. Depois de décadas sem uma política estratégica para a América Latina, os EUA voltam a dar alguma importância para a região. O primeiro objetivo é seu interesse nacional, que se complementa com o rápido avanço da China em toda a região.

A primeira ação clara americana nessa nova era de tensões foi a retirada provisória e parcial das sanções contra a Venezuela, estabelecidas por Donald Trump em 2019. O alvo foi os limites impostos para impedir a compra de petróleo e gás provenientes do país, eliminando a proibição de empresas e traders de negociarem com Caracas. O veto à compra de novos títulos da dívida da Venezuela permanece, mas abriu-se uma fresta para que os títulos em mercado possam ser transacionados no mercado secundário. Estima-se que a produção venezuelana saltará dos 800 mil barris diários para um pouco mais de 1 milhão de barris, reduzindo um pouco o hiato de oferta deixado pelo corte de 1 milhão de barris de Opep e Rússia.

A contrapartida exigida dos EUA é que haja eleições democráticas e limpas em 2024, quando o ditador Nicolás Maduro, no poder há 10 anos, concorrerá novamente. Os chavistas concordaram com um recadastramento eleitoral - 7,3 milhões de pessoas deixaram o país, ou 25% da população, cifra mencionada pelo Fundo Monetário Internacional -, com autorizar “todos os candidatos presidenciais e partidos políticos, desde que cumpram os requisitos estabelecidos na lei” e garantir a presença de observadores internacionais. Depois do acordo, foram liberados 5 dos 273 presos políticos encarcerados na Venezuela.

O Brasil já vinha participando das negociações para que governo e oposição venezuelanas chegassem a um acordo sobre as eleições. A ação americana, ao colocar interesses comerciais na mesa, foi decisiva para o acordo que, no entanto, ainda precisará ser executado na prática - os anteriores foram solenemente ignorados ou boicotados pelos chavistas. O presidente Lula, que apoia Maduro, disse em entrevista, referindo-se à Venezuela, que o “conceito de democracia é relativo” (29 de junho), fazendo pouco caso das jogadas autoritárias do governo venezuelano para manter os chavistas no poder e aniquilar qualquer chance de a oposição um dia ocupar o Palácio de Miraflores. Mas é preciso reconhecer que seus esforços diplomáticos começam a dar frutos. Objetivamente, o acerto com os EUA se alinha com o interesse da diplomacia brasileira de obter concessões de Caracas por meios pacíficos e pelo diálogo.

Há ainda certa convergência de interesses entre os dois países diante da grave crise econômica argentina. O FMI empenhou sua reputação ao fechar com o país o maior pacote de empréstimos da história da instituição (US$ 56,3 bilhões no formato original), quando o conservador Mauricio Macri governava. Os peronistas, críticos contumazes do Fundo, renovaram em melhores condições o acordo, mas não cumpriram nenhuma das principais metas.

No entanto, diante da aguda escassez de dólares, as eleições de domingo poderiam ocorrer em meio ao caos se não houvesse novos desembolsos do FMI. Nos bastidores, sabe-se que os EUA, que detêm a maior porcentagem dos votos no FMI, intercederam favoravelmente aos desembolsos antecipados, mesmo com o descumprimento flagrante do acordo. O ministro Fernando Haddad intercedeu a favor do governo peronista junto à secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, e Lula fez o mesmo junto ao banco do Brics. O jogo pode ser outro, dependendo do resultado das eleições, mas Washington tem em mente a dependência já avançada da Argentina em relação a linhas de financiamento da China, que produziu um inusitado episódio - o pagamento de débitos com o FMI pela Argentina com a utilização de yuans resultantes da ampliação de uma linha de swap com Pequim.

Assim, por motivos diferentes, há confluência de interesses entre o governo federal e os EUA, com direito a ironias da história. O governo apoia chavistas e peronistas, que detestam os EUA, e Washington, que despreza ambos, sai em seu socorro porque um inimigo maior surgiu no horizonte, a China, hoje principal destino do petróleo venezuelano.

Essa aproximação defensiva entre Brasil e EUA, ainda que por caminhos distintos, abre algum espaço para um acercamento positivo. Ao privilegiar a estratégia de substituir as importações da China por produção regional, de países confiáveis, os EUA abrem espaço para o Brasil e demais nações do continente. Essa brecha ainda não está sendo aproveitada pelo Brasil. Como membro do Brics, ao lado de Argentina, Rússia e China, o país tenderia a ser hostil à política externa americana. Mas, se não alienar sua independência, o Brasil pode construir parcerias econômicas com os EUA, cuja diplomacia prefere muito mais a linguagem comercial que a ideológica.

Sonhos navais

Folha de S. Paulo

Lula traz de volta lobby por estaleiros, sem plano contra desastres do passado

A volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) fez reviverem planos de incentivo à indústria naval do país.

Há uma frente parlamentar de apoio a esse setor; a Petrobras diz que vai novamente fazer encomendas em massa aos estaleiros nacionais; o BNDES estuda meios de facilitar o reerguimento das empresas; o Sinaval, entidade que as representa, mostra esperança de obter ajuda do poder público.

Há, pois, um conjunto de pressões para fazer com que o governo restabeleça uma política industrial para o setor —em crise desde meados da década passada, como se pode constatar em uma série recente de reportagens da Folha.

A dúvida maior é se há motivos bem estudados para que o erário volte a destinar recursos à indústria naval. No mínimo, a experiência assustadora dos programas de incentivo do regime militar e das administrações petistas anteriores deveriam elevar às alturas as exigências para retomar tal projeto.

Nessas tentativas passadas, houve subsídios em excesso, sem proporcionar ganhos de produtividade ou capacidade de competição internacional. Os programas terminaram, de resto, em meio a escândalos de corrupção.

Políticas industriais podem, em tese, dar resultado. No entanto a gama de instrumentos para levá-las a cabo, a diversidade de situações geográficas, históricas e políticas e a variedade de problemas a serem resolvidos é tão grande que não é possível aceitar como virtuosas, a priori, ações desse tipo.

Decerto a indústria naval foi adiante também, mas não apenas, devido à pesada intervenção estatal no Japão, na Coreia do Sul e na China, países que se tornaram sucessivamente dominantes no setor. No Brasil, a experiência dos estaleiros terminou em desastres.

Aqui, políticas de incentivo estatal obtiveram sucessos em áreas como petróleo, agricultura, etanol e indústria aeronáutica. No caso da agricultura, havia vantagens naturais e comparadas; no dos aviões, não —vantagens foram desenvolvidas por meio de ensino e pesquisa.

O risco maior nessas iniciativas é não atentar para questões básicas como escassez de capital ou mão de obra, deficiência de infraestrutura ou distorções tributárias.

Outro perigo é o de falta de planejamento, avaliação e meio seguro de encerrar o programa, em caso de fracasso. Os lobbies dos favorecidos se entrincheiram a fim de viver de rendas do Estado.

Nada se ouve ainda sobre a possibilidade de a indústria ser capaz de apresentar ganhos de produtividade ou sobre o custo social de desenvolver capacidades produtivas. Inexiste diagnóstico público do desafio a ser enfrentado. Por ora, há apenas lobby e fantasias desenvolvimentistas.

Prioridades paulistas

Folha de S. Paulo

Remanejar verbas da educação para a saúde exige compromisso com qualidade

É racional, embora politicamente delicado, o projeto do governador de São PauloTarcísio de Freitas (Republicanos), que permite um remanejamento de verbas entre as áreas de educação e saúde.

A proposta de emenda à Constituição estadual recém-enviada pelo Executivo à Assembleia Legislativa reduz, de 30% para 25% das principais receitas paulistas, a destinação mínima obrigatória de recursos ao ensino público.

Conforme o texto da PEC, a diferença de 5% poderá permanecer na educação ou ser direcionada à saúde —nesta, o estado aplica a regra nacional que estabelece piso correspondente a 12% da arrecadação de impostos e outras fontes.

A justificativa apresentada pelo Bandeirantes se ampara num diagnóstico correto e conhecido: com a tendência demográfica de queda das taxas de natalidade e de envelhecimento da população, crescerá a longo prazo a necessidade de recursos para a atenção médica.

Ao mesmo tempo, seguirá caindo o número de estudantes matriculados nos estabelecimentos de ensino básico, alvo mais importante da rede estadual.

Por razoáveis que sejam os argumentos, sempre suscitará críticas e questionamentos o intento de cortar verbas para o ensino —ainda que a proposta do governo Tarcísio siga o percentual definido pela Constituição federal.

O cumprimento do piso mais elevado sempre foi problemático em São Paulo. Historicamente, as administrações paulistas se valeram do expediente de incluir o pagamento de professores inativos (o que não traz ganhos à educação) entre os gastos considerados.

O governo claramente busca mitigar o desgaste político reforçando outro setor fundamental. O fato é que sua margem de manobra orçamentária é estreita.

Como ocorre nos demais estados, educação, saúde, segurança pública e aposentadorias respondem por grande parcela das despesas paulistas —em 2022, foram quase 70% do total (dele excluídos transferências a municípios, juros, precatórios e outros encargos).

É muito difícil, nessa situação, atender a novas prioridades e necessidades, como deve ser o caso do aumento futuro de despesas do Sistema Único de Saúde (SUS).

Regras de gasto fixadas décadas atrás devem, sim, ser rediscutidas. No caso em tela, a proposta de Tarcísio precisa vir acompanhada de um compromisso firme com a melhora de qualidade do ensino.

A estranha ‘greve’ da Câmara e do Senado

O Estado de S. Paulo

Lira e Pacheco parecem mais preocupados com seu futuro político do que em cumprir as prerrogativas de suas funções como presidentes, que se encerram apenas em 2025

Lira e Pacheco parecem mais preocupados com seu futuro político do que em cumprir as prerrogativas de suas funções.

No primeiro semestre do ano, o governo Lula obteve vitórias importantes em votações no Congresso Nacional. A despeito de não ter conseguido eleger uma base de apoio forte na Câmara e no Senado, o Executivo conseguiu aprovar, antes mesmo de tomar posse, a emenda constitucional da transição e recompor o Orçamento. No lugar do teto de gastos, o Legislativo aprovou o novo arcabouço fiscal, prioridade do ministro da Fazenda, Fernando Haddad. E depois de mais de 30 anos, até mesmo a reforma tributária sobre consumo conseguiu avançar na Câmara e está prestes a ser votada no Senado.

Mesmo quando o governo teve de admitir derrotas, o diálogo entre os Poderes quase sempre prevaleceu. O Congresso enfrentou o governo ao rejeitar uma proposta que desvirtuava o Marco do Saneamento, deixou claro que não aceitaria rever a autonomia do Banco Central e só deu aval ao retorno do voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) depois de muitos ajustes no texto final.

Algo mudou após o recesso branco parlamentar, em julho. Como é natural no jogo político, deputados e senadores cobraram a fatura pelas entregas na primeira metade do ano, e o governo teve de abrir espaço para acomodar aliados do Centrão nos ministérios, bem como pagar emendas parlamentares e irrigar bases eleitorais.

A despeito desses “gestos” do Executivo, Câmara e Senado entraram num modus operandi estranhíssimo, no qual nada que realmente importa ao governo tem sido votado ou mesmo pautado em plenário. É como se os parlamentares tivessem entrado em greve, mas as razões dessa paralisia são desconhecidas. Quem melhor poderia explicá-las são os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Ambos parecem completamente desconectados das reais necessidades do País, o que tem gerado situações no mínimo esdrúxulas. Há algumas semanas, deputados deixaram de registrar presença na Casa, impedindo quórum mínimo para uma série de deliberações. Na ausência de Lira, que está em missão na Ásia, quem teria agido para debelar a obstrução na Câmara teria sido o senador Pacheco, segundo reportagem do Estadão.

Esse ativismo de Pacheco faria algum sentido se o Senado estivesse trabalhando a pleno vapor. Mas, à exceção das discussões sobre a reforma tributária, que felizmente se encaminham para o fim, o Senado também vive momentos de absoluta letargia. A recusa do principal aliado de Pacheco, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), em marcar a sabatina dos ministros ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) expressa o desrespeito com que é tratada a função de avaliação e controle das indicações do Executivo quando é transformada em mera barganha política.

A estranha viagem de Lira à Índia e à China tampouco teria justificativa neste momento, não fosse a necessidade de o presidente da Câmara submergir após ter exigido do governo a entrega de todos os cargos da diretoria da Caixa e da Fundação Nacional de Saúde (Funasa). Não que ele precise estar fisicamente no País para ser lembrado. Seus prepostos Elmar Nascimento (União-BA) e Doutor Luizinho (PP-RJ) têm agido para impedir qualquer chance de votação dos projetos que taxam fundos exclusivos e offshore.

Seria simples atribuir esse movimento a uma reação da Câmara e do Senado contra o governo, exigindo maior reconhecimento do trabalho dos parlamentares. Para isso, no entanto, Lira e Pacheco teriam de agir de forma coordenada contra a agenda do Executivo, e não é exatamente isso que tem ocorrido.

Lira e Pacheco parecem mais preocupados com seus respectivos futuros políticos do que em cumprir as prerrogativas de suas funções à frente das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, que se encerram apenas em 2025. Com a indesejável antecipação dessa disputa pelo comando das Mesas Diretoras, eles lutam para demonstrar quem melhor serve ao governo, quem mais entrega, quem mais ameaça e quem tem mais força, em detrimento da agenda de votações do País e do melhor interesse público.

Brasil longe do grau de investimento

O Estado de S. Paulo

Estudo mostra que, para recuperar o selo de bom pagador, País terá que controlar contas e, ao mesmo tempo, aprovar reformas para elevar a produtividade e garantir crescimento mais robusto

Há alguns meses, duas agências de classificação de risco melhoraram sua percepção sobre a economia brasileira. A Fitch elevou a nota do rating soberano do País de BB- para BB. A S&P, por sua vez, manteve a nota em BB-, mas alterou a perspectiva, antes estável, para positiva, abrindo caminho para revisar a nota de crédito ao longo dos próximos meses. Fazia anos que o rating do País não era alterado e, na última vez em que isso aconteceu, os movimentos se deram em contextos muito diferentes e negativos.

As notícias, portanto, foram recebidas com muito alento e interpretadas como um primeiro passo na direção da retomada do grau de investimento, classificação que o Brasil perdeu em 2015. A aprovação definitiva do novo arcabouço fiscal no Legislativo e o avanço da reforma tributária sobre o consumo na Câmara, hoje em tramitação no Senado, trouxeram uma dose extra de otimismo à economia, e a recuperação do grau de investimento parecia realmente ser uma questão de tempo.

Um estudo realizado pelo Banco Santander e publicado pelo Estadão, no entanto, mostrou a necessidade de um esforço bem maior e de um tempo bem mais longo para que o País possa retomar o selo de bom pagador. A dívida brasileira, na proporção do Produto Interno Bruto (PIB), está 20 pontos porcentuais maior que a de países que possuem o grau de investimento.

O problema, no entanto, não é apenas a dívida mais elevada. À medida que o endividamento aumentava, o PIB avançava muito pouco – em média, a economia cresceu apenas 0,8% ao ano entre 2011 e 2019. No mesmo período, países com grau de investimento cresciam sete vezes mais, enquanto economias com a mesma classificação de risco que o Brasil tem hoje avançavam cinco vezes mais.

O estudo do Santander mostrou o quão distante o Brasil de 2023 está do Brasil que conquistou o grau de investimento pela primeira vez. Na proporção do PIB, a dívida bruta, que correspondia a 62,3% em 2008, subiu a 88,4%; a dívida líquida avançou de 37,6% para 61,2%. O resultado primário, antes superavitário em 3,3% do PIB, transformouse em um déficit de 2%; o déficit nominal, por sua vez, saiu de 2% para 8,8% do PIB.

Se as receitas permaneceram inalteradas em 35,8% do PIB, os gastos foram elevados de 37,8% em 2008 para 44,6% neste ano; os investimentos caíram de 21,6% para 18,3%; e a poupança, de 19,5% para 15,5%. Não por acaso, a economia, que crescia a 5,1% em 2008, hoje desacelerou para 2,1%. O comportamento da dívida, afinal, influencia o comportamento da economia como um todo.

Poucos foram os países que perderam e recuperaram o grau de investimento, processo que, em média, levou de seis a sete anos, mas todos apresentaram perspectivas de crescimento superiores às de seus pares. O Brasil, de acordo com o estudo do Santander, deve levar mais tempo que a média para reconquistar o selo de bom pagador.

As projeções quanto à trajetória da dívida mostram que ela continuará a crescer, mas menos do que avançaria sem o arcabouço fiscal, o que não deixa de ser positivo. A economia, no entanto, tem avançado menos do que poderia e bem menos do que a de países emergentes. Quando retomaram o selo de bom pagador, em 2013, o Uruguai apresentava uma perspectiva de crescimento acima de 5,6% e a Colômbia, em 2011, de 4,2%.

Ao anunciar uma melhora na percepção de risco sobre a economia brasileira, tanto a S&P quanto a Fitch ressaltaram a importância da aprovação da reforma da Previdência e da autonomia do Banco Central e reforçaram a relevância de políticas pragmáticas para promover a sustentabilidade da dívida pública. Além de cortar gastos públicos, no entanto, aprovar reformas estruturais que aumentem a produtividade será crucial para o aumento da nota de classificação de risco do País.

Desistir de zerar o déficit em 2024 seria uma decisão com efeitos desastrosos para a economia. Mas manter a meta tampouco será suficiente para recuperar o grau de investimento. Reencontrar o caminho para o crescimento econômico será essencial, e, pelo histórico recente do País, um objetivo tão ou mais desafiador.

Vitória da sociedade

O Estado de S. Paulo

Condenação de Jair Bolsonaro por seus ataques à imprensa resguarda o direito à informação

Jair Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) a pagar R$ 50 mil por dano moral coletivo em razão de seus ataques sistemáticos a jornalistas, sobretudo mulheres, e por sua campanha de desqualificação da imprensa profissional e independente. A decisão, tomada pela 4.ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP em ação movida pelo Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo em 2021, transitou em julgado.

A condenação de Bolsonaro por agressões contra jornalistas e veículos de imprensa é emblemática, menos pelo valor financeiro – irrisório para quem, segundo consta, arrecadou mais de R$ 17 milhões em doações de apoiadores via Pix – e mais pelo valor simbólico. Ao reconhecer que Bolsonaro é um inimigo da imprensa livre, o TJ-SP deu um claro recado a outros que, como ele, são infensos às normas do Estado Democrático de Direito: quem resolver minar a liberdade de imprensa e agredir jornalistas terá de prestar contas à Justiça.

O veredicto representa um marco histórico na luta contra a escalada dos discursos de ódio e, em particular, contra a desvalorização do jornalismo profissional como um dos guardiões da verdade dos fatos, sem a qual, como ensinou Hannah Arendt, não há debate público em bases minimamente racionais com vista à construção de consensos. Em outras palavras: sem imprensa livre, não existe democracia.

Muito antes de assumir a Presidência da República, Bolsonaro já era conhecido por sua hostilidade atávica à imprensa profissional e independente, vale dizer, o jornalismo que é crítico por dever de ofício às ações e omissões dos detentores de poder político.

Como presidente, Bolsonaro degradou a posição de chefe de Estado e de governo ao usar o poder inerente ao cargo para atrapalhar, quando não impedir, o livre exercício da atividade jornalística.

Já no primeiro ano de governo, convém recordar, Bolsonaro editou uma medida provisória (MP) que desobrigava as empresas de capital aberto de publicar seus balanços em jornais de grande circulação, como prevê a Lei das Sociedades Anônimas. Sem esconder que, com a edição dessa MP, pretendia satisfazer um desejo pessoal de vingança, Bolsonaro afirmou que estava apenas “retribuindo”, por meio da asfixia financeira das empresas jornalísticas, o “esculacho” que, segundo ele, recebia da imprensa.

A perseguição a jornalistas durante seu governo também se deu por meio da instrumentalização de instituições de Estado, como a Advocacia-Geral da União, a Polícia Federal e a Procuradoria-Geral da República. São muitos os exemplos de cooptação de órgãos públicos para atender aos interesses privados de Bolsonaro, a revelar a estreiteza moral e política do ex-presidente. Tão infenso à transparência era o governo passado que, no curso de uma tragédia sanitária, a imprensa profissional teve de se unir para levar ao público informações essenciais que Bolsonaro queria manter escondidas.

A condenação de Bolsonaro, portanto, não é uma vitória da imprensa. É, antes, uma vitória da sociedade.

 

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