sexta-feira, 6 de outubro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

O Senado entre a sensatez e a provocação

O Globo

Se merecem elogios por barrar reformas sem sentido, senadores têm de parar de retaliar o STF

O Senado tem desempenhado papel fundamental ao cumprir sua missão constitucional de Casa revisora dos projetos recebidos da Câmara. Nos últimos dias, a atitude cautelosa dos senadores impediu o avanço de propostas que, se aprovadas na forma como queriam os deputados, teriam representado retrocesso para o país.

A primeira foi a minirreforma eleitoral, que alivia controles e punições a políticos e partidos. A segunda foi a PEC da Anistia, que, além de livrar as legendas e candidatos de punições da Justiça por irregularidades nas últimas eleições, cria um sistema de cotas nas vagas do Legislativo sem paralelo nas maiores democracias. A resistência do Senado em aprová-la a tempo de vigorar no pleito municipal do ano que vem levou a própria Câmara a adiar a votação na semana passada.

“São temas muito complexos para votar num tempo muito exíguo”, afirmou à GloboNews o senador Marcelo Castro (MDB-PI), relator da minirreforma. “Vamos com mais calma, mais devagar, com mais sensatez.” Castro sugeriu que, em vez de uma minirreforma, o Congresso aprove uma reforma mais duradoura, com base nos projetos de código eleitoral e de lei sobre inelegibilidades que já tramitam no Senado. É uma sugestão que, para empregar o termo do próprio Castro, traduz sensatez.

Sensatez também foi o que levou os senadores a rejeitar um projeto aprovado em 2021 na Câmara recriando as coligações em eleições proporcionais, expediente que favorece a pulverização de partidos no Legislativo e felizmente foi banido pela minirreforma eleitoral de 2017. E a mesma sensatez retarda a tramitação no Senado da esdrúxula proposta aprovada na Câmara criminalizando a “discriminação” de políticos.

Paradoxalmente, parcela dos senadores revela não partilhar dessa sensatez. Numa votação de apenas 42 segundos, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou um projeto que impõe limite a decisões individuais de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Proposta semelhante já havia fracassado em 2019 — e o próprio STF já adotou normas mais rígidas para as decisões monocráticas.

A iniciativa foi uma reação a julgamentos do Supremo que têm desagradado a parlamentares conservadores, em temas como o marco temporal para demarcação de terras indígenas, a descriminalização do porte de drogas ou as regras para o aborto legal. No caso do marco temporal, declarado inconstitucional pelo STF, o Senado aprovou projeto contrariando a tese no próprio dia da votação. Tramita também na Casa uma proposta descabida impondo mandatos a ministros do Supremo.

Todas essas são provocações sem sentido, que em nada contribuem para a harmonia entre os Poderes. Cada Poder tem seu papel, e a Constituição garante independência para que seja exercido na plenitude. Mas é fundamental que os atores saibam agir com comedimento, sobretudo num momento em que o país precisa recobrar a normalidade institucional. O Senado tem demonstrado conhecer seus deveres ao rever projetos da Câmara que exigem maior reflexão e mais debate entre os parlamentares. É essa sensatez que deveria prevalecer.

Seca histórica no Amazonas é alerta sobre riscos das mudanças climáticas

O Globo

Governo fez promessas para garantir energia, transporte e sustento à região, mas só ação emergencial não basta

Os efeitos da estiagem no Amazonas são graves e exigem ação de várias esferas de governo. O estado vive uma das piores secas da série histórica iniciada em 1980, segundo dados do Centro de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Provocada pelo fenômeno climático El Niño e agravada pelo aquecimento global, a falta de chuvas tem baixado o nível de rios, dificultado o escoamento de produtos de comunidades ribeirinhas, prejudicado a operação de hidrelétricas e aumentado a preocupação com queimadas.

Até esta quinta-feira, 40 municípios haviam decretado situação de emergência, outros 19 de alerta. Juntas, as 59 cidades reúnem 200 mil habitantes. Em alguns rios, embarcações maiores não conseguem passar com segurança. Na quarta-feira, a linha de transmissão que conecta as usinas de Jirau e Santo Antônio ao Sudeste, a maior do país, foi desligada devido à baixa vazão.

Diante do quadro, foi acertada a ida a Manaus da comitiva de ministros chefiada pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin. Ele fez promessas para garantir o transporte fluvial, afirmou que a dragagem do Rio Solimões deverá estar pronta em 45 dias e prometeu que até dezembro também serão dragados 12 quilômetros do Rio Madeira.

Para mitigar os danos à população, o governo federal antecipou o pagamento do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Pagará também auxílio a pescadores impedidos de exercer suas atividades, o seguro-defeso. Agricultores que perderem a produção receberão seguro integral. Para o município de Beruri, onde a erosão provocou o desabamento de 40 casas e três mortes, Alckmin disse estar disponível auxílio de R$ 400 por pessoa para pagar abrigo temporário. Por fim, determinou o envio de brigadistas para combater queimadas, garantiu terem sido tomadas medidas preventivas e que não faltará energia.

Na esfera estadual, o governo antecipou o pagamento de auxílio. Embora ainda não tenha estimativa do impacto na produção agrícola, encaminhou projeto de lei para anistiar produtores rurais com prejuízo. Num plano de longo prazo, pretende mapear até o ano que vem a população suscetível a impactos do aquecimento global.

Uma iniciativa mais controversa é o pleito para finalizar o asfaltamento da BR-319 entre Manaus e Porto Velho, sob o pretexto de a estrada oferecer alternativa de escoamento em momentos de seca. Por um lado, a abertura de estradas na Amazônia costuma vir acompanhada de desmatamento no entorno. Por outro, certas áreas não podem ficar isoladas. A questão merece ser analisada com cuidado, não sob o calor da estiagem.

Medidas emergenciais são necessárias e bem-vindas para socorrer os atingidos. Mas não bastam para lidar com um problema que só se agravará. A seca no Amazonas é mais um alerta, entre tantos, sobre os riscos e desafios trazidos pelas mudanças climáticas. Eles exigem do governo ação estrutural de longo prazo, do contrário estaremos sempre tentando empurrar morro acima a pedra que rolará morro abaixo.

Maior bacia hidrográfica do mundo vive seca devastadora

Valor Econômico

Será básico estabelecer planos de adaptação para as populações ribeirinhas, com aporte dos países ricos e da venda de créditos de carbono

A ação do aquecimento das águas do Oceano Atlântico Norte, acima do Equador, e a do aquecimento das águas do Oceano Pacífico na faixa do Equador (que ainda vai se manifestar em sua plenitude) provocaram uma seca devastadora em partes da maior bacia hidrográfica do mundo. O Estado do Amazonas está praticamente em estado de emergência, decretado em 55 dos seus 62 municípios. A estação chuvosa, que deveria iniciar-se em meados de outubro, deve atrasar. Há previsões de que a próxima temporada de chuvas não será generosa, e os efeitos da seca podem se prolongar ao longo de 2024. Com boa parte dos rios Negro, Juruá, Purus e Solimões com baixa profundidade, o transporte de mercadorias, alimentos e pessoas, basicamente aquático, entrou em colapso. A seca atinge 8 Estados.

Os efeitos sociais e econômicos imediatos são graves e, pior, são indícios de um futuro climático hostil. A ausência de precipitações vem acompanhada do flagelo das queimadas. Embora o desmatamento seja menor do que no mesmo período de 2022 (janeiro a agosto), o Amazonas foi o segundo estado que mais destruiu a floresta em agosto - as áreas mais críticas ficam na parte sul, na região afetada pela grave seca, e perto de Manaus.

Segundo especialistas, a revolta do clima no Amazonas não pode ser debitada toda na conta do periódico El Niño. Mas sua ação passada, em conjunto com o aquecimento das águas do Atlântico Norte, produziu em 2009-2010 a maior escassez de chuvas desde 1903, a mais grave do século passado. A contabilidade dos recordes é desimportante em relação à gravidade da situação dos rios amazônicos, que estão se transformando em poeira. A profundidade do rio Negro caiu a 15,4 metros, já se aproximando do menor nível histórico, de 13,6 metros. O rio Solimões perto de Tabatinga reduziu-se a um espelho de água de apenas 11 centímetros do leito (Folha de S. Paulo, 4 de outubro).

As chuvas foram menores do que deveriam ser no período seco, entre julho e setembro. A previsão é de que continuarão mais fracas mesmo no período das águas, atrasando a recuperação do volume dos rios. Em dezembro e janeiro, o El Niño agirá como sempre, reduzindo as precipitações no Norte e ampliando-as no Sul, que passou a conviver com inusitados ciclones extratropicais, que causaram destruição e mais de 50 mortes no Rio Grande do Sul em 4 de setembro.

A instabilidade das precipitações se instalou no bioma amazônico e tende a se agravar com o aquecimento global. Segundo o Imazon, 2022 foi o primeiro em doze anos em que a Amazônia teve superfície de água maior do que a média histórica. Entre 1985 e 2022 (38 anos) a região teve 23 anos com superfície de água abaixo da média. As variações não são gradativas, mas abruptas. 2022 foi um ano de muita chuva, sucedido agora por uma enorme seca e precedido em 2021 por outra. O início de 2023 foi marcado por muita chuva no Norte e seca no Sul - agora a situação inverteu-se dramaticamente. A severa escassez de água atual afeta a vida de 500 mil pessoas, além da matar em massa botos cor de rosa e peixes. As mudanças climáticas, que ampliam a destruição ambiental de um desmatamento sem fim, podem levar a estragos irreparáveis. Os efeitos do El Niño têm se mostrado mais impactantes com o passar do tempo. Agora, ele intensificará as consequências do aquecimento do Atlântico Norte, levando a estiagem do Sudoeste para o Centro e Norte amazônicos. Ambos devem provocar secas drásticas no semiárido nordestino, segundo Gilvan Sampaio, coordenador de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (O Globo, 2 de outubro).

O governo agiu tempestivamente para amparar a população diante das privações da seca, que colocou restrições a 90% das 116 embarcações que navegam pelos rios para transporte de pessoas, mercadorias e assistência médica e social. Mesmo com a paralisação da hidrelétrica Santo Antônio, no rio Madeira, o abastecimento de energia foi mantido sem problemas na região. Efeitos mais demorados serão sentidos no escoamento das safras de grãos do Centro-Oeste pelos portos do Norte ou rotas de mercadorias saídas da Zona Franca de Manaus.

A situação climática tende a piorar, e não melhorar. A longo prazo, o que fará a diferença é eliminar as fragilidades da floresta e restaurar ao máximo seu vigor. O desmatamento por si só contribui muito para alterar o regime de chuvas. É preciso pôr um fim ao garimpo ilegal, cujos danos são múltiplos. Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, do Greenpeace e do WWF Brasil constatou nos peixes coletados no Acre, no Amapá, no Amazonas, no Pará, em Roraima e em Rondônia nível de mercúrio 21,3% superior ao permitido. Os peixes mais consumidos pela população apresentaram nível de contaminação até 14 vezes maiores que os de outras espécies.

Será básico estabelecer planos de adaptação para as populações ribeirinhas, com aporte dos países ricos e da venda de créditos de carbono, que precisa deslanchar. As mudanças que o clima ameaça trazer são profundas e reduzirão a zero o espaço para improvisação.

Congresso x Supremo

Folha de S. Paulo

Em reação ao STF, parlamentares lançam propostas perigosas para instituições

É movida a casuísmo e espírito revanchista a ofensiva deflagrada por líderes do Congresso contra o Supremo Tribunal Federal, na qual já surgiram três propostas diferentes de mudança constitucional.

Pode-se perfeitamente debater se o STF tem abusado do ativismo e invadido a seara legislativa —o que é mais claro em alguns casos e menos em outros que incomodam deputados e senadores. Entretanto é descabido votar matérias de tal impacto institucional sob o ânimo da briga política.

A única PEC desse pacote a avançar até aqui, com aprovação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, é, felizmente, a menos problemática. O texto busca disciplinar os pedidos de vista e restringir as decisões monocráticas dos ministros da corte, o que são preocupações corretas e endossadas por esta Folha.

De todo modo, a proposta merece análise mais serena e aprofundada quanto a seu alcance, ainda mais porque o próprio Supremo já tomou providências recentes para atingir os mesmos objetivos.

Mais perigosa é a ideia de instituir mandatos limitados para os ministros, encampada por ninguém menos que o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). É verdade que a norma é adotada, por exemplo, em países desenvolvidos da Europa. Por aqui, entretanto, é necessário considerar os custos e riscos da mudança.

A vitaliciedade (até a aposentadoria compulsória aos 75 anos) se mostrou importante para reforçar a independência dos magistrados ante os governantes que os indicaram aos cargos —e, no entender deste jornal, deve ser mantida.

O objetivo de limitar a permanência de um ministro pode ser atingido com a elevação da idade mínima exigida, hoje de 35 anos.

Mas é com uma PEC apresentada na Câmara dos Deputados que as represálias chegam ao despautério. O diploma, que parece ter sido concebido apenas para fomentar uma crise institucional, pretende permitir que o Congresso possa anular decisões do Supremo.

No mérito, a proposta é escandalosa. Embora seu propósito declarado seja o de reequilibrar os Poderes, seu resultado seria o esvaziamento da corte constitucional.

O Judiciário, recorde-se, é um Poder sem voto que muitas vezes precisa desempenhar um papel contramajoritário. Sua força reside em ter a última palavra no que diz respeito à interpretação da lei, o que seria perdido com a emenda.

Cabe ao STF deliberar sobre temas controversos, aí incluídos o marco temporal das terras indígenas, a descriminalização da maconha e o aborto —e a corte deve fazê-lo sem pretender legislar. De sua parte, o Congresso não pode querer intimidar magistrados.

Urge esclarecer

Folha de S. Paulo

Gastos com obras emergenciais sem licitação na cidade de SP exigem transparência

Decreto de 2019, publicado pelo então prefeito Bruno Covas (PSDB), determina que obras públicas emergenciais executadas pelas subprefeituras paulistanas devem observar "a urgência de atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança de pessoas, obras, serviços, equipamentos e outros bens".

Exigem-se ainda informações detalhadas e, se for o caso, "laudo técnico" e "relatório de risco" para classificar a sua dimensão.

Tamanho zelo não é à toa. Se por um lado situações de caráter emergencial demandam pronta resposta do poder público, desburocratizando ao máximo suas ações, por outro estão dispensadas de licitação —processo que visa garantir saudável concorrência, promovendo assim menor dispêndio de verbas da administração municipal.

Reportagem da Folha mostrou que o conceito de "emergencial", porém, pode ter adquirido contornos elásticos sob Ricardo Nunes (MDB), prefeito desde maio de 2021.

Auditoria do Tribunal de Contas do Município apontou que de 2020 —último ano completo de Covas à frente da capital— para 2022 houve um aumento de 1.313% em obras executadas de forma emergencial.

Se considerados os últimos cinco anos, a explosão de despesas é da ordem de 10.400%. Trata-se de um salto de R$ 20 milhões, em 2017, para R$ 2,1 bilhões no ano passado.

O processo no tribunal ainda está em andamento: analisa-se agora os argumentos enviados pela administração. A auditoria, contudo, concluiu que em muitos casos há falta de planejamento, o que classifica de "emergência fabricada".

O relatório expõe ainda que parte das obras poderia ter sido licitada e que há concentração de empresas que receberam os valores.

Pré-candidato à reeleição em 2024, o prefeito negou qualquer irregularidade ou superfaturamento e atrelou o documento do TCM a interesses eleitorais. Todos os procedimentos prévios legais foram adotados, declarou a prefeitura em nota, e a alta dos gastos ocorre por "situações de risco em encostas e margens de córregos, principalmente em regiões periféricas".

De fato, a maioria dos trabalhos foi executada em regiões afastadas, com histórico de carências.

Entretanto, dado que não há notícia de que a cidade tenha sido acometida por recente calamidade, cabe à gestão, em nome da transparência e do bom uso do erário, trazer à luz as razões para cada uma das inadiáveis intervenções.

Excesso de excepcionalidades

O Estado de S. Paulo

O STF criou um problema insolúvel com os processos do 8 de Janeiro. Excepcionalíssimos, os julgamentos de ações penais no plenário virtual devem ter a contrapartida de punição mais leve

O Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu os primeiros três julgamentos realizados em plenário virtual de processos penais relativos ao 8 de Janeiro. Os réus foram condenados a penas que variam de 12 a 17 anos, pelos crimes de associação criminosa, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e deterioração de patrimônio tombado. Um dos réus, preso quando estava na Praça dos Três Poderes, foi absolvido dos crimes de dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.

Esses julgamentos expõem um dilema sério. Por um lado, o STF não tem condições de realizar o julgamento presencial de todos esses casos. São mais de mil ações penais. Por outro, é inegável que o julgamento virtual produz graves limitações ao direito de defesa. Nessa situação, a atuação da defesa fica resumida à apresentação de um vídeo do advogado, que ninguém sequer sabe se será visto pelos ministros julgadores. A Lei 8.038/90 e o Regimento Interno do STF garantem o direito à sustentação oral.

Cabe advertir, em primeiro lugar, que foi o próprio Supremo o autor desse problema, ao entender que competia à Corte realizar esses julgamentos. Foi uma interpretação um tanto criativa, tendo em vista que nenhum dos acusados tem foro especial por prerrogativa de função. De toda forma, a maioria do colegiado acolheu o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes. Há, nessa história, um aprendizado. O respeito à competência de cada jurisdição contribui também para o bom funcionamento operacional da Justiça.

Um segundo ponto refere-se à proporcionalidade e à razoabilidade, princípios frequentemente usados pelo STF na fundamentação de suas decisões. Se, por impossibilidade material, os casos terão de ser julgados no plenário virtual – num cenário de evidente redução de direitos dos acusados –, a contrapartida necessária é reduzir drasticamente o patamar das penas. Não cabe condenar uma pessoa a 17 anos de prisão, sendo 15 anos e meio em regime fechado, em um julgamento no qual o defensor foi impedido de apresentar suas alegações – e que, por já ter começado no STF, terá reduzidas oportunidades de recurso e de revisão.

Precisamente porque os ataques ao regime democrático foram gravíssimos é que a resposta da Justiça deve ser exemplar – exemplar no cumprimento da lei e no respeito aos direitos próprios de um regime democrático. Se há um impedimento material para que os processos se realizem da maneira prevista na lei, isso deve se refletir em uma aplicação mais comedida da pena. Não se pede impunidade. Mas deve haver um mínimo de ponderação – é por isso que há juízes, e não máquinas, aplicando a lei no caso concreto.

Não adianta impor penas duríssimas sobre quem invadiu as sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro, se os articuladores do golpe ficarem impunes. Há uma grande disfuncionalidade nessa suposta proteção da democracia. Punir mais de mil pessoas a penas duríssimas – de mais de uma década na prisão – não tornará o regime democrático mais seguro, se os mandantes do golpe não forem punidos.

Há outro aspecto que merece atenção. Como alertou o Instituto de Defesa do Direito de Defesa, esse deslocamento do julgamento das ações do 8 de Janeiro para o plenário virtual, por ter sido realizado pela mais alta Corte do País, gera apreensão também “pela potencial disseminação da orientação a outros tribunais que possuam competência originária para processar ações penais”. Isso seria um grande retrocesso. Só faltava que a defesa da democracia, que demanda tanto tempo e energia do STF, levasse a um decaimento na compreensão e no respeito a direitos fundamentais. Cabe à Corte, portanto, explicitar que o procedimento foi absolutamente excepcional, não devendo ser replicado em outras jurisdições.

É preciso punir quem atuou contra a lei e contra as instituições democráticas. Mas essa tarefa, no Estado Democrático de Direito, exige mais do que mão pesada. Requer discernimento e razoabilidade. Só assim a punição cumprirá sua função.

A seca no Norte e a inação oficial

O Estado de S. Paulo

Falta de estratégia das autoridades federais e estaduais para preparar o Norte e o Nordeste para uma grave seca que foi prevista por centros de pesquisa expõe brasileiros ao improviso

A seca mais grave nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil desde 1980 é mais um clássico caso de tragédia anunciada. A inação do poder público na prevenção de seus potenciais efeitos sobre a população, seguida pela correria improvisada para mitigar a catástrofe, demonstra o quanto os governos federal e estaduais ainda ignoram os alertas de entidades de referência no estudo dos fenômenos climáticos. A ausência de planejamento prévio há muito não é admissível no País, tão sujeito como os demais aos impactos conhecidos do aquecimento do planeta.

A possível transferência emergencial de comunidades agrícolas pelo Estado do Amazonas reflete a gravidade da seca deste ano, motivada pelo El Niño e acentuada pelo desmatamento florestal. Retirar centenas de milhares de pessoas de seus locais de origem, muitas das quais com ascendentes ali assentados há décadas, nada tem de banal. Se adotado, será um plano extremo para preservar vidas, mas claramente tardio ante o impacto de uma estiagem prevista.

A seca no Norte e no Nordeste está associada primariamente ao El Niño, fenômeno natural provocado pelo aquecimento da superfície do Oceano Pacífico e em nada motivado pela atividade humana. Não há como detê-lo – apenas como prevenir e/ou remediar seus prováveis efeitos. Em 2010, foi essa a razão da mais grave seca registrada até então no Norte, com repercussões semelhantes às de agora. Os alertas sobre a ferocidade do El Niño neste ano vinham desde 2022. Em junho passado, o Escritório Nacional de Administração Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA) anunciou que seus efeitos já eram perceptíveis.

Naquele mês, um boletim de quatro instituições federais, entre as quais o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), informou sobre a elevação de 3 graus centígrados na superfície do Pacífico Equatorial e as consequências esperadas, como as chuvas intensas no Rio Grande do Sul de setembro. Já se registravam nos meses anteriores os níveis alarmantes de baixa precipitação no Norte e no Nordeste.

O quadro no Norte do País é altamente desafiador. Mais de 500 mil brasileiros estão diretamente afetados, e 60 municípios declararam situação de emergência. As vazões de 42 rios, entre os quais o Solimões e o Negro, recuaram a patamares alarmantes em uma região onde eles são sinônimos de vida, acesso a direitos elementares, trabalho, renda e transporte. Várzeas exploradas pela agricultura familiar viraram terra improdutiva, a pesca tornou-se inviável e o ar seco eleva os riscos de incêndios florestais. O linhão de transmissão das usinas no Rio Madeira, de Rondônia a São Paulo, foi desligado, assim como os geradores da Hidrelétrica de Santo Antônio (RO). Térmicas serão ativadas para evitar o colapso no fornecimento de energia na região, como anunciou o vice-presidente Geraldo Alckmin em visita no último dia 4 a Manaus.

É preciso notar que o governo federal só se fez presente na região para tratar da estiagem quando a tragédia já estava consumada, com vítimas como os moradores de uma vila de Beruri que desmoronou pela falta de vazão no Rio Purus. Alckmin apresentou um pacote para aliviar a carestia da população atingida, o envio de médicos e brigadistas e a dragagem do Solimões para garantir o escoamento de produtos da Zona Franca de Manaus. “Não faltarão recursos”, prometeu. Bom saber, mas isso é nada mais do que a obrigação.

A remoção às pressas de famílias de agricultores pelo governo do Amazonas, se levada a cabo, será o mais triste resultado da omissão diante de uma grave seca fartamente prevista. Contrasta com a intenção da diplomacia brasileira de apresentar proposta sobre o planejamento da transferência de populações sujeitas aos efeitos do aquecimento global na COP 28 de Dubai, neste fim de ano. O Brasil precisa investir em sua capacidade de antecipar tragédias naturais e climáticas e de atuar preventivamente. Os brasileiros têm direito a esse esforço e não merecem mais atrasos.

O pastelão republicano

O Estado de S. Paulo

A queda do presidente da Câmara dos Estados Unidos mostra política refém de radicais e vigaristas

Pela primeira vez na história dos EUA, um presidente da Câmara foi deposto. É um sinal da disfuncionalidade da atual política americana que o republicano Kevin McCarthy tenha caído pela iniciativa de uma minoria de seu partido em conjunto com a minoria democrata, justamente por cumprir o seu trabalho.

No sábado, McCarthy pôs os interesses do seu país em primeiro lugar, recusando a tentativa de oito republicanos radicais de barrar a aprovação do Orçamento e fechando um acordo com os democratas para evitar a paralisação do governo. Quando, em retaliação, os mesmos jacobinos republicanos ativaram a moção para depô-lo, ele pôs os interesses de seu partido em primeiro lugar, recusando um acordo com os democratas que salvaria seu cargo à custa da perda de prerrogativas que o Partido Republicano tem enquanto majoritário na Casa.

Em contraste, o republicano Matt Gaetz, o líder do motim, se apresenta como um vingador do povo contra o establishment, um feroz oponente dos democratas e o defensor dos princípios republicanos. Mas, supostamente em nome desses princípios, se aliou aos democratas para implodir a gestão de seu partido. Em nome do conservadorismo, está aumentando seu capital eleitoral progressista. Em nome do povo, está sabotando o funcionamento do Estado.

A crise foi contratada já na eleição de McCarthy, no início do ano. Após inéditas 15 votações, quando os mesmos radicais republicanos se recusavam a lhe conferir os votos para garantir a gestão republicana na Casa pela qual os eleitores optaram, McCarthy, para romper o impasse, concedeu-lhes o direito de ativar a moção que agora utilizaram para depô-lo. Isso deixou a Câmara à mercê de um grupo pautado pelo extremismo e a autopromoção: 4% dos deputados republicanos foram suficientes para derrubar a vontade de 96%, sem nenhuma alternativa, nenhum plano, muito menos uma proposta de políticas públicas.

A busca por um novo presidente deve ser longa e caótica. O candidato republicano não terá alternativa senão fazer concessões ou à minoria republicana radical ou aos democratas. Em todo caso, a maioria republicana e os moderados do partido perderão poder.

Enquanto isso, os democratas se regozijam: é a prova de que eles precisam para mostrar ao eleitorado que os republicanos são bons para reclamar, mas não para governar. É, porém, uma vitória de Pirro. O acordo que garantiu o financiamento do governo vale só até novembro, quando o Orçamento precisa ser aprovado. Mas, sem um novo presidente, a Câmara está paralisada.

Os radicais de ambos os lados podem estar contentes – os republicanos, por imporem suas vontades ao restante do partido; os democratas, por assistirem à entropia republicana –, mas ninguém mais está. Os moderados de um lado e outro não podem avançar os trabalhos legislativos, e o governo se aproxima de uma paralisação. O apoio à Ucrânia, um consenso bipartidário, também é prejudicado pela impossibilidade de enviar recursos. Quem paga mais caro é o povo. A retaliação virá nas urnas, e para os republicanos ela promete ser mais amarga.

A covid-19 continua matando

Correio Braziliense

A baixa procura vacinal, decorrente do relaxamento da população, graças aos índices descendentes de hospitalizações e de mortes, é um dos principais motivos para os óbitos recentes

Já se passaram mais de três anos desde o início da pandemia da covid-19. E as pessoas continuam morrendo em decorrência da doença. A verdade é que todos estamos exauridos. Exauridos dos sintomas, das máscaras, das sequelas, das fake news, de informações verdadeiras e até mesmo das vacinas. Passado o pior momento — em outubro de 2021, o Brasil atingiu a marca de 600 mil óbitos —, as pessoas entraram em um período de letargia, como se o coronavírus e suas variantes (que não são poucas) tivessem desaparecido. Atualmente, são mais de 705 mil mortes por covid.

Recentemente, no 16º Fórum da Longevidade, promovido pelo Bradesco Seguros, em São Paulo, a médica, professora, escritora e pesquisadora brasileira Margareth Maria Pretti Dalcomo mostrou a preocupação dos especialistas quanto ao que chamou de “uma nova onda” da covid-19, a qual ela atribui às variantes e subvariantes da ômicron. E mais: fez um alerta. No Brasil, continuam morrendo cerca de 70 a 80 pessoas por coronavírus a cada semana, sendo a maioria das vítimas os não vacinados.

Entre os principais motivos para que essas mortes continuem sendo registradas está a baixa procura vacinal, decorrente do relaxamento da população, graças aos índices descendentes de hospitalizações e de mortes, se comparados aos números contabilizados no auge da pandemia. Além disso, ela atribui os recentes óbitos ao fato de a pandemia ser dada como controlada pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelos governos, o que fez com que a população perdesse o medo e abandonasse a vacina.

Outro fator foi o discurso antivacina, muito forte e enraizado nos primeiros anos da covid no Brasil, o que impactou também outras coberturas vacinais até então vitoriosas, como as do sarampo, doença que havia sido eliminada por aqui em 2016 (o Brasil ganhou até um prêmio concedido pela OMS naquele ano), mas voltou com força em 2019.

Mas, e a partir de agora? Como fazer com que a população se atente para a importância de se vacinar, de levar crianças e idosos aos postos? Vale lembrar que os idosos que se vacinaram tomaram a quinta dose há mais de um ano, e, portanto, não estão mais protegidos contra as cepas mais recentes. E as crianças não completaram o calendário vacinal, ainda que tenham apresentado um sistema imunológico mais resistente. Dalcomo cita, inclusive, o Nordeste, região em que ela afirma que grande parte das famílias não leva suas crianças aos postos.

Por outro lado, não há como não falar do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que este ano completa meio século, tendo sido criado no governo militar e atravessado a democracia, além de todos os outros governos, sem nenhum abalo. Ele deu certo, não há dúvidas. Prova disso é que o Brasil tem atualmente 38 mil salas de imunização espalhadas pelo país, com um calendário vacinal elogiado em todo o mundo.
Enfim, Margareth Dalcomo, profissional da saúde preocupada com o futuro do país, apresenta algumas ações. “Não nos cansemos das campanhas, mas desta vez regionais, devido à enorme diversidade do país. Não nos cansemos de informar e alertar a população.” Parece mesmo que só assim voltaremos a ter números decentes de imunizações.

 

 

 

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