sábado, 28 de outubro de 2023

Paulo Fábio Dantas Neto* - Política em tempo de guerra ou a busca do mais humano em nós

Vão passando, um a um, os sábados seguintes ao 7 de outubro e é um dispêndio exaustivo de energia buscar modos de falar semanalmente de política num ambiente tomado por noticiário de guerra traduzido em redes e por reações das pessoas ao contato em tempo real com a tragédia consagradora da violência. Até espíritos de predisposição moderada cedem à força de gravidade do maniqueísmo que se proclama síntese da “realidade”. A captura de consciências, em espiral assustador, não respeita grau de informação ou nível intelectual das pessoas implicadas. É contaminação à distância, pela crueza instantânea das repercussões midiáticas, modeladoras de fatos. Há que providenciar vacina para todos. 

Qualquer pessoa parece poder, a qualquer momento, desistir de buscar saber sobre o que se passa, ou cansar de se conter, deixar transbordar instintos obscuros e passar a vociferar e agir como gladiador. Em “debates” viralizados em rede, o verbo torna-se veneno e lava. A intervenção seguinte dobra a aposta antecedente na mobilização aguda de ressentimentos estéreis. Usa-se emoções - autênticas ou encenadas, não importa - como armas para abortar chances de um antagonista vir a ser interlocutor.

À medida em que relatos de atrocidades, com devido registro seletivo de algozes e vítimas, se repetem e entrelaçam, mais pessoas escolhem um lado e adensam a polarização entre “israelenses” e “palestinos”. Há escolhas por boa-fé, uma empatia desatenta, que não pergunta se o lado escolhido está realmente numa guerra movida por entes geopoliticamente situados ou se é ator e vítima de violência desregrada. 

Mas também é comum escolhas serem feitas por motivações que denunciam um epidêmico rebaixamento cognitivo e moral. Em ambientes nos quais esse tipo de escolha prolifera, narrativas têm mais chance de serem vistas como idôneas quando são feitas em tom de depoimento, a partir de determinado “lugar de fala”, como se fosse preciso ter identidade individual ou grupal de vítima para apreender o sentido da violência. Já o “estilo de fala” mais crível para denunciar crimes e pedir justiça é aquele ocupado por retóricas implacáveis. Pouca gente escapa do maniqueísmo que se alastra. A pessoa prudente precisa beliscar-se todo dia para saber se ainda está em si ou se rendeu-se e foi tragada.

Compartilhando esse sentimento de exaustão, cedo e volto a tratar da santa pauta em cartaz, desde que possa negociar uma zona neutra para continuar a fazer isso do ponto de vista profano da política. Até quando será possível não sei, mas aproveito enquanto acho que dá. Peço vênia a analistas e estudiosos de relações internacionais, pessoas que dedicam anos a entendê-las. Sem ser uma delas, arrisco-me nessa praia, porque tão pública tornou-se a questão que amadores são levados às teclas. Interpelações, reptos, correções serão bem vindas, seja de quem tem lugar de fala legitimado pelo conhecimento, seja de intelectuais e outras pessoas que buscam e emitem luzes no breu, partindo de uma atitude moral. Por exemplo, já ia longe este artigo quando me caíram na mão textos que, por razões distintas, fizeram-me girar sobre meus próprios pensamentos. Citá-los não é adorno. É imperativo: “O alcance do luto”, de Judith Butler (https://revistarosa.com/8/israel-palestina/o-alcance-do-luto) e “Da Guerra dos seis dias à guerra das seis frentes em Israel”, de Thomas Friedman (Estadão/Internacional, 26.10.23).

Agradecendo as luzes que essas duas leituras acrescentaram, começo minha esgrima por pontuar que violências odiosas contra cidades e populações civis em Gaza não partem apenas de Israel. Cabe à sua política estatal grande parte da responsabilidade por elas e também pela extensão da violência à Cisjordânia, onde, ao contrário de em Gaza, existe e está em vigor uma autoridade política palestina reconhecida internacionalmente. Mas, certamente ao menos em Gaza, não são desprezíveis também padecimentos civis derivados do domínio fático do seu território por um grupo terrorista, inimigo especifico de Israel, mas cuja gramática antipolítica é ameaça às civilizações, quaisquer que sejam.

É preciso resistir a qualquer acusação unilateral, porque não há metro legítimo para comparar as violências recíprocas. Se cada ação de retaliação israelense que atinge a população palestina é ou não “necessária” é uma discussão sem sentido porque as necessidades alegadas não são só politicamente controversas. Também são moralmente indefensáveis. O mesmo vale para vidas de israelenses, ceifadas sem piedade ou aviso. Comparar é amoral e inútil, seja o cálculo político, ou aritmético. 

Pelo mesmo motivo é preciso moderar juízos de caráter histórico num momento de se fazer parar uma violência atual. Antes de ler o texto de Butler havia escrito “evitar”, não moderar. Ela me alertou para implicações potencialmente obscuras de fuga prévia à contextualização, quando o tema é violência. Embora perigosa, pela porta que pode abrir a relativizações de fatos absolutos (como o ataque do Hamas em 7 de outubro), ela é imprescindível para não relativizar valores. Por essa sugestão posso completar, de maneira mais satisfatória, sem alterar seu sentido original, uma reflexão que proponho sobre o discurso do secretário-geral da ONU, em 23.10, que ensejou reação irada do governo de Israel. 

Afirmar que palestinos vivem sob opressão há décadas - ou há séculos, se o domínio otomano couber na noção de subordinação política em que ainda vivem os palestinos, hoje atenuada porque há a ANP (Autoridade Nacional Palestina) - não contribui imediatamente para desarmar corpos e espíritos. Contra essa versão, Israel recorreria a argumento histórico simétrico: desde seu primeiro dia de vida, o estado israelense, seu território e população foram sendo invadidos e atacados por países árabes e/ou por grupos terroristas. Ambas as acusações são verazes. A guerra de narrativas é parte do impasse.

Risco talvez excessivo foi corrido no discurso do secretário geral, tendo em vista a sua missão mediadora de uma discussão, entre estados representantes de “nações unidas”, sobre como parar, por razões humanitárias, um conflito entre um deles (Israel) e um grupo armado que agrediu esse país. implicitamente, Guterres tratou o Hamas como ator expressivo de outra nação implicada, no caso, a Palestina. E no manejo da retórica deu lugar à interpretação de que admitia, ao menos em tese, conexão de sentido entre o que seriam (do ponto de vista palestino) opressão continuada de Israel e atos imediatos de violência criminosa de um grupo armado que declara agir em nome desse ponto de vista. 

Ainda que seja admitido como premissa, o cativeiro palestino não justifica e também não explica de modo lógico o 7 de outubro. Não haveria razão politicamente plausível para relativizar o ato do Hamas, caso fosse essa a intenção de Guterres (e o conjunto do seu discurso mostra que não foi), nem mesmo razão para contextualizá-lo, como parece ter querido fazer. Igualmente, a agressão sofrida por Israel e seu direito legítimo a defesa não justificam e também sequer explicam, logicamente, o cometimento, na sequência, de crimes de guerra contra direitos humanos. Guterres rejeitou corretamente essa segunda conexão de sentido que, se feita, relativizaria a exorbitância e ilegalidade da retaliação israelense. Mas a rejeição foi ambígua no caso da primeira, que “explicaria” o ataque do Hamas. Descuido retórico, usado pela retórica belicista do governo israelense para denunciar parcialidade do secretário-geral e, através da sua deslegitimação, desacreditar a ONU como instância mediadora. No limite, mostrar a inviabilidade de mediação diplomática e política numa situação que, a seu ver, só comportaria solução militar.

Detonada a crise, Guterres reafirmou sua fala, já moderada por si mesma, mas inverteu as ênfases, para sanar qualquer ambiguidade possível. Esse reenquadramento retórico faz sentido, porque faz todo o sentido, para quem trabalha pela paz, apagar a fagulha de incêndio entre Israel e a cúpula da ONU. 

A expectativa de que uma recomposição possa ocorrer é desqualificada tanto por extremismos - que, por princípio, descreem da política - quanto por fatalismos de variados matizes que, por motivações políticas também variadas, adotam, como diagnóstico, a inadequação, impotência, inoperância, ou até mesmo perversão da ONU diante da “vontade de poder” de governos extremistas ou dos estados com poder de veto. Esse tipo de juízo pretensamente realista ganha ares de uma campanha imprudente de deslegitimação da ONU. Flerta com um cenário de guerra sem freios entre estados nacionais excitados, equivalente internacional à soberania sem freios de governos despóticos sobres seus povos. 

Vale convidar a duas reflexões. A primeira é: se por vezes a ONU cede à pressão de potências ou da opinião pública e sai do seu quadrado mediador, isso não lhe retira a condição de ser a mais legítima e efetiva instância de entendimento multilateral que se tem à mão. A segunda é: antes de falar de uma suposta ineficácia da ONU, deve-se pensar no que seria, sem ela, o mundo atual, no qual a guerra está longe de ser o único desafio ou flagelo a pedir cooperação internacional para ser enfrentado.  

À ONU cabe exercitar o multilateralismo e o seu secretário faz bem em não se desvencilhar da inclinação evidente da diplomacia mundial, que hoje é francamente crítica da postura de Israel, como foi francamente crítica do ataque do Hamas. Uma coisa é censurar e derrotar o Hamas, tratando-o, inclusive, como grupo terrorista. Isso tem sido feito sem tergiversação, no limite do que é possível fazer contra um grupo que não é um estado e, não o sendo, passa ao largo de regras de conduta internacional que incidem sobre estados, Israel incluído. Outra coisa é calar diante da tragédia humanitária em Gaza. Se ela tem a ver (e tem) com a tática terrorista do Hamas de usar populações civis como instrumentos de propaganda e como escudos humanos na guerra, a tragédia está intimamente ligada, também, a métodos usados por Israel na sua retaliação ao ataque do dia 7 e não só. Liga-se a uma política contínua de ocupação colonial de território reservado, por acordo bilateral e internacional, à Autoridade Nacional Palestina. Ora, se por definição não é possível à ONU deter, com suas resoluções, o braço armado de extremistas que lhe são alheios, é correto que busque deter aqueles que agem no âmbito de estados nela organizados. Isso é condição para que as Nações Unidas possam travar essa batalha, como comunidade internacional, sem dizer a Israel que se vire sozinho. Até porque não se sabe o que uma extrema-direita religiosa ensandecida pode fazer, se acuada, no governo solitário de um estado com acesso a armas nucleares. Talvez nesse cenário de radical isolamento de Israel (que Biden tenta evitar, mantendo, a custo político alto, o apoio dos EUA) não se pudesse mais levantar (como hoje ainda se pode) argumento crível para diferenciar ações violentas do estado israelense do terrorismo do Hamas.

A expectativa de uma reacomodação entre Israel e a ONU é mais plausível (ou menos implausível) do que a da não-inflexão da atual postura de Israel vir a ser a tônica de conduta dos vários atores. Por mais que o governo israelense diga que não há ponderações de ordem política a fazer nesse instante, elas são incontornáveis. Os interesses em defender ou destruir Israel afetam, mas não resumem, o que está em jogo no mundo. Israel tem contas a prestar à ONU e, se tenta ignorá-la, não consegue. Se assim o fizesse pagaria preços que um Hamas, ou um seu equivalente, não precisa pagar. A responsabilidade e a sustentabilidade, internas e externas, de um estado político não pode ser comparada à de um grupo miliciano que controla um território com armas, sem institucionalidade e movido por delírio identitário. 

Terrorismo é filho da negação de instituições, subproduto da antipolítica. Além de ser deslealdade retórica, é imprudente usar essa palavra em sentido lato, ou metafórico. Por mais autoritário e violento que seja um estado, sua violência repousa sempre num sentido de autoridade que não é puro arbítrio. Isso distingue melhor civilizações de barbárie do que supor necessário caráter pacífico das primeiras. Civilização é o território mental da regra na vida pública e, também, o horizonte cosmopolita, oposto aos absolutos identitários. É o horizonte de resgate, num processo sem prazo, da humanidade em nós como uma unidade na diversidade. A ONU é isso e Israel é filho da ONU, assim como a futura Palestina. 

Oposição entre civilização e barbárie não é a narrativa israelense tradicional e sim a que opõe agredido e agressores. É ela que move o país para a guerra e é simétrica à dos estados árabes, aliás. Se o governo de Israel, hoje abrigo e teto de fundamentalistas, veicula o argumento da civilização, é porque esse governo quer, ou melhor, precisa segurar o apoio do ocidente. Um apoio que está visivelmente em discussão nesse momento, se reparamos no humor da opinião pública europeia e de “outros ocidentes”, como o Brasil. Opinião que converge com a rejeição ao governo Netanyahu pela pluralista e cosmopolita sociedade israelense, posição essa que vem sendo comunicada ao mundo por pesquisas de opinião, por vozes de intelectuais e da imprensa israelense. O que não se mostrou ainda é uma equivalente disposição da sua elite política de acionar o sistema democrático para ejetar o extremismo do governo. 

É dentro desse quadro adverso aos senhores da guerra que devem ser interpretados os arreganhos do governo israelense na cena internacional e não como se fossem sinal de um poder de anular o multilateralismo que a ONU representa e que o seu secretário-geral encarna. Porém, o cessar-fogo sem um simultâneo compromisso internacional de derrotar e desarmar o Hamas não é proposta realista porque esse cessar-fogo entre estados tem valor estratégico para o Hamas, pode interessar ao Irã e à Rússia, mas não pode ter, por razões óbvias, a concordância de Israel. Claro que um cessar-fogo vale por si só, porque permite continuidade segura da ajuda humanitária, mas ele não faria os palestinos de Gaza viverem em paz, porque não viverão em paz enquanto o Hamas controlar o território. Até mesmo o ato de migrar para outro lugar mais seguro (em si mesmo uma violência, se for ato compulsório) é difícil de praticar porque os palestinos de Gaza são reféns e continuarão a sê-lo, enquanto ali prevalecer o Hamas. 

A esfinge é mais desafiadora porque a destruição militar do Hamas não parece possível, por ora, sem uma carnificina que, por si só, bastaria para afastar esse caminho e que, além disso, isolaria Israel ainda mais e não impediria que o Irã fizesse renascer o grupo a partir do dia seguinte. Para derrotar o Hamas, resta a política. Pelo que dizem especialistas no assunto, isso passaria por certas condições, algumas delas prévias: a queda de Netanyahu, a mudança na correlação de forças na política interna norte-americana (na qual a competitividade da extrema-direita é fato), um intermitente socorro humanitário aos palestinos, uma efetiva e sustentada ajuda econômica à Autoridade Palestina e defesa internacional ampla da legitimidade do Estado de Israel, ao lado da criação definitiva de um estado palestino. 

Como amarrar o guizo ao gato? Parte do problema parece decorrer do progressivo afastamento dos EUA da ONU. Nas últimas décadas, ou talvez desde o fim da competição com a antiga URSS, os EUA - algumas vezes por causa de Israel, mas quase sempre por razões próprias - vêm agindo à revelia do multilateralismo.  Isso é muito ruim, mas agora que a hipótese de um mundo unipolar se dissolveu, pelo novo papel da China, os EUA voltam a precisar da ONU. Biden tem dificuldades para girar a chave na direção de uma atitude multilateral e um dos fatores dessa inibição é Israel - não o ente estatal, mas a política que ele passou a praticar fortemente há, pelo menos, duas décadas. 

Claro que não tem sentido tratar o povo judeu como invasor na antiga Palestina, nem o estado de Israel como terrorista ou um “estado de ocupação”, ainda que se possa e deva reconhecer e encerrar práticas como tortura e encarceramento ilegal e ocupação dos territórios tomados à ANP. Em Gaza e na Cisjordânia existe, sim, ocupação israelense que é ilegítima e também ilegal, do ponto de vista dos próprios acordos que Israel assinou e pelos quais cumpre à ONU zelar. A política de recolonização, levada a cabo desde Ariel Sharon e com mais intensidade desde que a direita israelense se tornou governo, é um desafio ao caminho de entendimento aberto em Oslo, em 1993, em direção à paz. De lá pra cá surgiu o Hamas, é verdade, mas antes disso, o extremismo oposto já havia assassinado Rabin. 

Porém, uma vez adotada a tese de que o caso de Israel é apenas de ocupação, vingança e desumanidade - nivelando-se ao Hamas no comum objetivo de exterminar o povo inimigo - não haveria solução pacifica possível. Racionalidade bilateral entre Israel e Hamas só pode ser a da guerra a serviço desse instinto comum. Nesse caso, se o mundo quisesse acabar com essa guerra teria que aderir a uma das partes e ajudá-la a remover a outra, ou então adotar a solução “clássica” de formar uma aliança militar, ocupar e dividir o território entre estados estrangeiros para obrigar os litigantes a fazerem a paz pela rendição. Como isso não é possível sem detonar antes uma guerra mundial, seria a paz dos cemitérios. 

Existe alternativa a essa morte da política. Apesar do instinto de vingança da sua extrema-direita religiosa, Israel é uma democracia, à diferença da ordem antipolítica que subjuga os palestinos. Israelenses podem mudar governos pelo voto e isso não é um mero detalhe. 

A política do atual governo de Israel tem raízes anteriores à hegemonia do Likud, partido de Netanyahu. Até onde pude saber, foi coetânea à de Bush e com ela estabeleceu sintonia inaugural. Por algum motivo (que admito desconhecer), sob Obama o quadro não se alterou o bastante, embora fosse preciso. Agora é fundamental para Biden que a atitude de Israel mude. Nesse sentido, a fala de Guterres tem uma propensão positiva a reforçar a pressão de Biden sobre Netanyahu para que se desligue dos extremistas que colocou no governo ou, caso não queira ou não possa fazer isso, peça o boné, como deseja a maioria da sociedade israelense, que parece ter compreendido que o Hamas só será derrotado quando mudar a política do governo de Israel para uma linha que busque reverter seu relativo isolamento internacional.  

A linha não pode ser outra, senão retomar entendimentos bilaterais entre Israel e ANP. Há quem argumente com a "incapacidade" da ANP e da Fatah pós OLP de representarem a nação palestina. Mas a ANP é a reconhecida representante palestina na ONU e quem põe isso em dúvida faz o jogo do Hamas. Essa representação laica é legítima, conforme regras internacionalmente fixadas. Problema é a relativa interdição do exercício dessa representação pela ação de grupos religiosos extremistas e armados. 

Dito isso, é preciso considerar que Israel também tem, obviamente, interesse em interditar aquela representação. Mas se trata de motivações geopolíticas, discutíveis, censuráveis, mas de modo algum equiparáveis ao tipo de interdição buscada pelo terrorismo. O papel de Israel é comparável ao de vários estados árabes, igualmente hostis à autonomia nacional palestina, desde 1948. Basta ver a conduta histórica da Jordânia, do Egito e do não árabe Irã. É extensa a lista de adversários da ANP e maior ainda se acrescentarmos, aos hostis, os indiferentes da região. Difícil encontrar um aliado ali. Aliados da causa palestina encontram-se mais, a rigor, em sociedades e governos do tão demonizado ocidente.

Faixas importantes do eleitorado norte-americano trafegam em mão inversa, em descompasso com a opinião do centro e da esquerda na Europa. A afinidade com o sentimento de insegurança nacional que empoderou a extrema-direita em Israel parece contar ainda como fator de força eleitoral para Trump.   Esse ponto diz respeito diretamente a nós, brasileiros e não pode ser subestimado. O pendor anti-imperialista da esquerda latino-americana a faz brincar com fogo tratando o veto americano pró Israel como indicador de belicismo e conivência com supremacismo. Não é. Em vez disso, é agrura centrista.

O apoio americano a Israel é incondicional apenas retoricamente. A política do presidente Biden no Oriente Médio tem sido, desde antes do 7 de outubro, de pressão sobre o governo israelense para mudar sua diretriz colonizadora, parar de ocupar a Cisjordânia e de pressionar Gaza e para fazer acordos de paz com países árabes. O veto no Conselho de Segurança não foi dado por afinidade política com o governo israelense. Ele tem alto custo político externo para Biden, tem menos a ver com apoio incondicional e mais com realismo doméstico e com o receio da influência do Irã no Oriente Médio. Um receio, aliás, que também devemos compartilhar, assim como o da resiliência do fator Trump nos EUA.  

Quanto mais progressistas, mundo afora, baterem injustamente em Biden, por causa de uma justa aversão à política extremista do estado israelense, maior será a possibilidade de se afrouxar, à esquerda, a aliança política que sustenta seu governo e mais ele dependerá, em seu pais, de eleitores conservadores para espantar o fantasma da extrema-direita que hoje é, do ponto de vista eleitoral, mais forte nos EUA do que em Israel. É incerto se até as eleições norte-americanas do ano que vem o desencanto israelense com a fórmula política de Netanyahu poderá produzir antídotos para esse eleitorado conservador da América e liberar o presidente para agir na ONU de um modo mais coerente com os princípios que tem afirmado. O que se aprende com essas inseguranças, incertezas e ambiguidades todas é que paz e democracia são horizontes sempre entrelaçados e hoje nublados pela vaga da antipolítica. Convém pensar nisso sempre que o noticiário de guerra nos induzir a pensar e agir como gladiadores. Na cena internacional, tanto quanto na política interna brasileira, o centro moderado é, nesse tempo maniqueísta, o preciso lugar onde se pode encontrar o melhor do humano em nós. 

Cientista político e professor da UFBa

Um comentário:

  1. Longo e honesto, mas faltou reconhecer Israel como estado terrorista. Esteve perto, mas de forma contraditória evitou explicitamente. Faltou o quê?

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