O Estado de S. Paulo
Depois de alguns anos, quebrei, contrariado,
uma promessa, e voltei a ter um gato em casa. Chegou já adulto, hóspede
temporário, e foi ficando. É meu primeiro bichano de raça: um siamês, acolhido
com os mesmos mimos reservados aos vira-latas que o destino pôs sob minha
guarda ao longo da vida.
Devo a meus pais um amor incondicional pelos animais. A elurofilia, sinônimo besta de felinofilia que aprendi com o elurófilo Rubem Fonseca, peguei de minha mãe, que por mais de uma década cuidou de parte dos felinos do Aterro do Flamengo, com o mesmo afinco com que Paul Léautaud cuidava dos seus em Fontenay-aux-Roses.
Zé Rubem viveu 18 anos com a siamesa Betsy, a
quem homenageou através da gata do detetive Mandrake, em A Grande Arte, e a
quem dedicou a primeira, mais linda e curta narrativa da coletânea Histórias de
Amor.
Otto Lara Resende também teve um siamês, que
viveu pouco tempo como Zeno, pois logo a petizada da casa, ainda sem idade para
conhecer o homônimo personagem de Italo Svevo, passou a chamar de Zano. Um belo
dia, Zano sumiu. Otto dedicou ao susto e à busca duas crônicas, em abril de
1992, e numa delas até aludiu à minha elurofilia.
Por desconhecer como se chamavam os siameses
de Marilyn Monroe, Jean Cocteau, James Dean, Andy Warhol e Radamés Gnatalli,
rebatizei o meu de Pinduca, alcunha cuja eufonia me encanta tanto quanto a
figura de seu xará dos quadrinhos, o sonso garoto carequinha criado há 90 anos
por Carl Thomas Anderson, com o insípido nome de Henry.
Poderia ter recolhido alguma sugestão na
esdrúxula onomástica felina de T.S. Eliot, mas não me imagino chamando um gato
meu de “Jellylorum”, “Pettipaws”, “Rumple”, “Quaxo”, esquisitices ainda mais
insossas que o apelido (“Xadrez”) com que chegou aqui em casa.
Poetas tendem a preferir os gatos aos cães –
daí a crença de que cão é prosa e gato, poesia – e a melhor explicação para
essa preferência nos deu Jean Cocteau: “Não existem gatos policiais”.
Que a lista de bardos elurófilos
(Shakespeare, Petrarca, Poe, Neruda, Ferreira Gullar, entre tantos outros)
talvez supere até a de ficcionistas é desconfiança que ninguém tem como provar
nem desmentir. Mas nunca soube de um gato de poeta que tivesse o hábito de
apagar a vela com a patinha, quando era hora de parar de escrever, como o de
Charles Dickens.
O poeta modernista francês Paul Morand
gostava tanto do seu siamês que se resignava a escrever em volta do espaço que
ele deixava no papel sobre o qual costumava, felinamente, acomodar-se. Não sei
se o gato de Maomé era siamês, mas li em mais de um lugar que ele sempre o
trazia em seus braços, e de uma feita, convocado com urgência para um combate,
entre desalojar o bichano e isolar a golpe de espada a parte do magnífico manto
em que ele dormitava, fez o que era necessário e, sem um pedaço do manto, foi à
luta.
Belas histórias sobre gatos,na minha casa tem muitos.
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