Folha de S. Paulo
Com ou sem a camisa de força da dolarização,
conserto básico da economia é o mesmo
Na sexta-feira (20), não havia mercado,
preço, para o dólar paralelo
em Buenos Aires, relatam jornais e jornalistas argentinos. O receio de uma
megadesvalorização do peso e, talvez, de um plano de dolarização oficial
desorientava ainda mais as cotações do "dólar blue",
o paralelo, entre 950 e 1.500 pesos.
O disparate das cotações, quando havia,
piorava com boatos e batidas da Receita Federal deles, entre outras
fiscalizações, constantes nas últimas semanas. Nos bancos, os argentinos se
livram de ativos em pesos, o que piorou depois do favoritismo de Javier Milei.
Quem não acha dólar caça com estoque. Antecipa compras, até nos supermercados. Nos varejos, as vendas aumentaram em torno de 10% em setembro (em relação a 2022), relata o jornal "La Nación".
No câmbio oficial,
um dólar vale 350 pesos. A julgar pelo acerto de agosto do FMI com o
governo argentino, teria de haver uma desvalorização real do peso entre 5% e
10% até o final do ano, com base na taxa do final de julho. Dadas a inflação desde
junho e as expectativas compiladas pelo Banco Central da Argentina (BCRA),
o dólar ficaria 88% mais caro, perto de 540 pesos no fim de 2023. Pela cotação
do pânico, parece pouco.
Quem olha uma tabela de contas básicas do
governo federal da Argentina tem a impressão de que elas se parecem com as do
governo federal do Brasil. Receita líquida de 17,6% do PIB, igual. Despesa de
19,6% do PIB na Argentina e de 18,3% no Brasil. Gastos com salários e
Previdência similares. O governo argentino investe mais (em obras) e subsidia
eletricidade, gás, transporte público e água (2,3% do PIB).
Obviamente, o déficit primário da Argentina
previsto para 2023 é maior do que o do Brasil, já bem ruim (uns 2% versus 1% do
PIB). Saldo primário: receita menos despesa, afora gasto com juros da
dívida. A dívida pública argentina terminaria o ano perto de 89% do PIB,
parecida com a do Brasil (pelo método do FMI).
Por essa tabela, os vizinhos não parecem tão
desgraçados. Mas o figurino dos números não conta o enredo da peça. A Argentina
não tem moeda. No que interessa aqui, os argentinos não querem manter seus
haveres em pesos, em moeda ou ativos financeiros, como títulos da dívida do
governo. Ao final deste ano, mais de 41% da dívida será de posse do setor
público (29% do BCRA); 21%, de instituições multilaterais (como FMI) e credores
oficiais externos. Do déficit anual em 2023, 40% tem sido financiado
diretamente pelo BCRA (há financiamento indireto).
A Argentina não tem moeda pelo histórico de
inflações, repressões financeiras, calotes e mutretas várias. Desde que se
juntou ao FMI, em 1956, recorre ao Fundo uma vez a cada três anos.
A dolarização é muito mais do que trocar
notas coloridas por verdes. Em si, não resolve os déficits nem gambiarras e
puxadinhos no câmbio, na dívida, nos impostos, nos preços etc. A economia é
lotada de "gatos".
A dolarização é uma camisa de força que de
início talvez facilite as mudanças e reduza a inflação logo (a depender do
câmbio da conversão). Mas demanda muito dólar, é tecnicamente difícil e deixará
a Argentina sem muito instrumento de política macroeconômica, sujeita a
recessões, deflações (queda de salário real) e crises bancárias mesmo que não
tenha culpa no cartório.
Enfim, o osso de um plano de estabilização econômica não vai ser muito diferente, com ou sem dolarização. Terá de haver corte duro de gastos, de subsídios (quem paga a conta?), ainda maior com a dolarização. O fim da loucura no câmbio, de controles de capital e preços, a desvalorização, tudo isso provocará grandes ajustes de preços relativos, perdas e ganhos. Para dar certo, há grande risco de quebrar o pau, para falar francamente.
Coitado dos hermanos!
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