segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Bruno Carazza* - A neo e velha industrialização na reforma tributária

Valor Econômico

Renovação de benefícios para fábricas de automóveis no Nordeste demonstram falta de compromisso de Lula com transição energética

Desde a campanha eleitoral do ano passado, o termo neoindustrialização vem ganhando força nos discursos de Lula e de membros de sua equipe. Em artigo assinado em coautoria com o vice Geraldo Alckmin em 25 de maio no jornal “O Estado de S.Paulo”, o presidente anunciou que lançaria uma “política industrial inteligente”, atenta ao “novo momento da globalização” e ao “imperativo da mudança climática”.

No caso específico da indústria automobilística, a dupla Lula e Alckmin indicou que o caminho seria surfar na onda da economia verde: “A redução do uso de combustíveis fósseis na indústria automotiva se dará com o carro elétrico, mas também com biocombustíveis”, avaliaram.

Na prática, porém, a teoria é outra. Durante a tramitação da reforma tributária na Câmara dos Deputados, Lula fez de tudo para aprovar a prorrogação do programa de incentivos tributários para as fábricas de automóveis instaladas em Estados do Nordeste e do Centro-Oeste.

A Política Automotiva de Desenvolvimento Regional foi criada em 1997, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, com o propósito de estimular a descentralização dos investimentos das montadoras de veículos no Brasil.

Por uma combinação de pujança do mercado consumidor e logística favorável da cadeia de suprimentos, o parque industrial automobilístico brasileiro concentrou-se no centro-sul do país. A lógica do programa era simples: as multinacionais que instalassem fábricas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste teriam direito a um crédito presumido de IPI que compensaria as desvantagens de deslocar parte de sua produção para essas regiões.

Previsto para durar até 2010, os incentivos foram estendidos por mais dez anos e quando esse novo prazo estava chegando ao fim, foi prorrogado novamente até 2025. Fazendo valer a frase de Milton e Rose Friedman de que “não há nada tão permanente quando um programa governamental temporário”, Lula tentou embutir no texto da reforma tributária na Câmara um jabuti que faria o benefício valer até 2032, mas a proposta foi derrubada por apenas um voto. O presidente, no entanto, não desistiu de seu objetivo.

Não é um programa barato. De acordo com a Receita Federal, a União deixa de arrecadar R$ 5 bilhões por ano em impostos para estimular a fabricação de carros no Nordeste e no Centro-Oeste.

Esse regime automotivo regional tem destinatários certos. No Centro-Oeste, beneficia a fábrica da Mitsubishi e da Suzuki em Catalão e também as atividades da Hyundai e da Chery em Anápolis (ambas em Goiás). Antes de encerrar suas atividades no Brasil, a Ford também usufruiu dos benefícios nas suas fábricas de Camaçari/BA e de Horizonte/CE (onde produzia o Troller).

O grosso dessa renúncia fiscal bilionária é apropriada por uma única empresa, a Stellantis, que produz os modelos Fiat Toro e Jeep Renegade, Compass e Commander na sua fábrica em Goiana, em Pernambuco. De acordo com estudo conduzido em parceria entre o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU), a montadora foi agraciada com um benefício tributário de R$ 4,6 bilhões em 2019.

Os resultados desses incentivos, entretanto, são bastante questionáveis. Diante de um incentivo fiscal tão grande, os retornos em termos de desenvolvimento regional são muito limitados. A avaliação feita pelos técnicos do TCU e da CGU indicam que a fábrica da Stellantis gera 11.258 empregos direitos e indiretos na região, o que indica que cada posto de trabalho criado tem um custo de mais de R$ 34 mil mensais aos cofres públicos.

Quanto ao estímulo à geração de um polo industrial na região. Apenas 18 fornecedores de autopeças se instalaram em Pernambuco para suprir as demandas da Stellantis. Os números levantados pelos órgãos de controle indicam que a unidade de Goiana adquire apenas 6% de seus insumos de fábricas nordestinas - o restante continua sendo trazido de fornecedores no Sudeste (85%) e do Sul (9%).

Olhando o incentivo sob outro prisma, os R$ 4,6 bilhões que a União deixa de arrecadar da Stellantis por ano servem para se produzir em torno de 170 mil unidades de SUVs e picapes. Isso significa que o governo federal está abrindo mão de R$ 27 mil por carro produzido.

Ao apoiar a renovação do programa de benefícios regionais tal qual ele funciona hoje, Lula mantém a aposta no incentivo à produção de veículos de combustão interna, parte deles movida a óleo diesel, e destinados à classe alta - na direção contrária, portanto, à sua propagada neoindustrialização baseada na economia verde e no consumo popular.

Durante a tramitação da reforma tributária no Senado, o relator Eduardo Braga tentou corrigir a distorção e vincular a prorrogação do programa apenas para a produção de veículos elétricos. A bancada do governo, porém, reforçada pelo apoio da governadora pernambucana Raquel Lyra (PSDB), conseguiu aprovar a emenda tal qual Lula pediu - para alegria da Stellantis.

Caberá agora à Câmara ratificar ou não a proposta de se estender o programa de incentivos tributários para a produção de automóveis no Nordeste e no Centro-Oeste até 2032.

Pelo seu alto custo fiscal, seus resultados limitados e por estimular a produção de veículos movidos a combustíveis fósseis, a posição do governo Lula nessa questão demonstra que os discursos de neoindustrialização, transição energética e economia verde não passam de palavras ao vento.

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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