O Globo
É a guerra mais brutal de parte a parte,
escancarando a falência de soluções que visam à eliminação pura e simples do
inimigo
Uma nota de rodapé da edição brasileira de
“Ellis Island” — pequena preciosidade sobre a errância humana escrita por
Georges Perec no início dos anos 1980 — ensina que a palavra Emet, em hebraico,
significa “verdade”; contudo, se dela cortarmos a primeira vogal, ela passa a
significar “morto”. Essa proximidade etimológica adquire sentido redobrado nos
dias atuais, em que o menor descuido com a verdade pode significar mortandade
múltipla. Nestes tempos em que o mundo está horrendo de feio, odiento e odioso,
qualquer sinal de lucidez é bem-vindo.
O escritor e jornalista americano Ta-Nehisi Coates, autor de aclamada investigação sobre o que é ser negro nos Estados Unidos (“Entre o mundo e eu”), contou em entrevista recente por que decidiu juntar sua voz à causa palestina. Convidado a participar de um festival literário na Cisjordânia, ele se preparara lendo tudo o que lhe caía em mãos sobre o conflito. Percebeu que todas as reportagens, textos de opinião ou editoriais da mídia ocidental qualificavam o impasse como “complexo”, de alta “complexidade”. Pensou então que levaria tempo para discernir o certo do errado, compreender as raízes morais de cada convicção. Equivocou-se:
— O mais chocante de minha estadia lá foi
constatar quanto a questão é descomplicada — contou ao programa “Democracy
now!”.
A realidade da ocupação lhe gritou na cara já
no segundo dia da viagem. Ele e o grupo de escritores convidados estavam na
cidade de Hebron, ciceroneados por um guia palestino. Chegados a determinada
rua, o anfitrião esclareceu que eles poderiam prosseguir sozinhos, se quisessem
— para o guia nascido naquele chão, o trânsito estava proibido.
— Tudo ficou tão claro. E tão familiar. Eu me
encontrava novamente em território onde a mobilidade é inibida, onde o direito
à água é inibido, o direito à moradia é inibido, os direitos básicos, inclusive
o direito ao voto para poder eleger a democracia, são inibidos — constatou.
Esta é a quinta guerra dos últimos 15 anos
entre o grupo terrorista Hamas, que
controla a Faixa de Gaza, e o Estado
de Israel.
É, também, a mais brutal e carniceira de parte a parte, escancarando a falência
de soluções que visam à eliminação pura e simples do inimigo. Cada clarão lunar
de bombardeio israelense sobre Gaza, cada novo avanço a ferro e fogo para
tentar aniquilar os tentáculos subterrâneos do terror só aumenta o apagamento
da população civil desgarrada.
Até agora, o primeiro-ministro Benjamin
Netanyahu é o único integrante do gabinete de guerra israelense a não
admitir ter falhado na proteção do Estado contra o ataque do Hamas de 7 de
outubro. Os chefes das Forças Armadas de Defesa e da Inteligência Militar, o
diretor da agência de inteligência Shin Bet, o atual ministro da Defesa e até
mesmo seu antecessor já reconheceram alguma responsabilidade na matança de
1.400 judeus e no sequestro em mãos terroristas de outros 240. Quando
pressionado, Netanyahu responde que todos, inclusive ele, deverão responder a
uma futura investigação, mas que sua responsabilidade é uma só: vencer a
guerra.
Sem chance. Montado num poderio bélico capaz
de exterminar a liderança do Hamas e de implodir a infraestrutura terrorista no
enclave, ele talvez até consiga vencer sua guerra de terra arrasada, a qualquer
custo. Nessa eventualidade, terá perdido o principal: a paz. Tanto a paz
interna num Israel dilacerado e órfão de sua história democrática quanto a paz
externa na comunidade das nações. A História dá voltas que nem ela mesma
consegue assimilar devidamente. Nesta semana, o governo da Alemanha solicitou ao
governo de Israel que proteja os palestinos da Cisjordânia ocupada do surto de
violência a que têm sido submetidos por soldados e colonos judeus. Repetindo: a
Alemanha saída do nazismo pede a Israel nascido do Holocausto que não maltrate
determinado povo.
Em meio a todo esse horror, a semana termina
com Ta-Nehisi Coates e o secretário de Estado americano, Antony
Blinken, constatando o óbvio. A solução futura, em algum momento, enunciou
Blinken, são “dois Estados para os dois povos, o que julgamos ser a melhor
garantia — senão a única — para um Israel judeu, seguro e democrático”. Que
seja ainda neste decênio.
Tomara.
ResponderExcluirExcelente texto! Os ataques de Netanyahu matam uma criança palestina a cada 10 minutos. Este canalha se apresenta como o bem contra a barbárie, mas um de seus ministros queria LANÇAR UMA BOMBA NUCLEAR EM GAZA. Israel comete CRIMES DE GUERRA em série, sendo TÃO TERRORISTA quanto o Hamas!
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