O Estado de S. Paulo
A notícia de que a imortalidade faz parte do horizonte próximo, embora nos seduza, é horrorosa. A seleção natural é inclemente, mas a seleção artificial será perversa
Agora, os pequenos sinais estão em toda parte. Artifícios inteligentes tomam decisões no lugar das pessoas de carne e osso. No trânsito, quem resolve se você vai virar à esquerda ou à direita é um algoritmo, que lhe dá ordens pela tela eletrônica. Por um sistema parecido, o taxista fica sabendo qual será o passageiro e em que endereço deve apanhá-lo. Ninguém escapa. Todo mundo é um pouco motorista de uber: todo mundo, às vezes mais, às vezes menos, segue a batuta de softwares que dirigem a rotina das populações conectadas. O batimento cardíaco dos anônimos, o tráfego aéreo, as ebulições das bolsas de valores, a sensação de que gostam ou não gostam da gente: tudo passa pelos dígitos. O que antes gostávamos de chamar de “livre arbítrio” se reduziu, enfim, ao arbítrio das máquinas.
Sinais, muitos sinais. O eleitorado se apoia
em filminhos da internet para escolher em quem votar. Muita mentira passa por
aí, já sabemos. No Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anuncia que sua
maior preocupação é conter as chamadas deepfakes, aquelas cenas perfeitas,
irretocavelmente verossímeis, em que um candidato, na frente das câmeras, diz,
com todas as sílabas escandidas, uma frase que jamais pronunciou – tudo obra da
cibernética. Esse tipo de truque maligno grassou nas eleições da vizinha Argentina,
e já se anteveem complicações do lado de cá da fronteira.
Na imprensa de todos os continentes, as
redações decretam normas de conduta para regular o uso de ferramentas de
inteligência artificial por seus profissionais. As chances de sucesso são
exíguas. A inteligência artificial soterra a atividade jornalística sem deixar
a ninguém um tempinho que seja para respirar. Cada vez mais ela nos regula, sem
ser regulada por nós.
Agora, esses pequenos sinais que estão em
toda parte nos mostram que foi posto um limite virtual – apenas virtual, por
enquanto – para a aventura humana sobre a Terra. A cada dia, o humano perde
relevância. O humano, depreciadamente humano, deixa de ser protagonista no seu
próprio destino. Pobre humano. O único evento no qual ainda exerce um papel de
relevo é o aquecimento global, na sua tragédia final, o antropoceno. Fora isso,
sobrou-lhe um bico de coadjuvante.
No meio dos sinais de toda parte, ganha novo
impulso o termo “transhumanismo”, assim mesmo, sem hífen nem nada. A palavra,
em inglês, se tornou conhecida em meados do século 20, mas agora assume um
posto mais chamativo. Ela conta com entusiastas empedernidos – aqueles que veem
na tecnologia um atalho para aperfeiçoar nossos corpos e espíritos, numa
“reforma da natureza” que, enfim, dará certo. O substantivo “transhumanismo”
aparece em qualquer reunião de especialistas em internet, mundo digital,
machine learning e transmigração das almas em nuvens de metais pesados.
Trata-se de uma “ideologia”, dizem. Eu diria que estamos falando de uma
fantasia totalizante, cujo corolário é muito simples: o ánthropos,
primeiramente refeito em ciborgue, com marcapasso, chip de memória, fêmur de
titânio trabecular e aparelho auditivo, será sucedido por seres programados na
base da engenharia genética. Aí, a mutação cromossômica será tão trivial quanto
um cafezinho na padaria. Muita gente gosta do cenário.
Há 15 anos, precisamente em 2008, num dos
ciclos de conferência organizados por Adauto Novaes, fiz uma palestra tocando
nesse assunto (Aquilo de que o humano é instrumento descartável: sensações
teóricas). Na época, os pequenos sinais ainda não estavam em toda parte e minha
fala soou ainda mais catastrofista do que este artigo. Há 15 anos, eu disse: “A
nova revolução tecnológica será o câncer domesticado”. Hoje, é irrefutável: a
evolução biológica se tornará administrável e, em prazos exíguos, as novas gerações
de ricos terão atributos físicos e cognitivos superiores aos das outras classes
sociais. A diferença de classe se converterá não em “diferencial competitivo”,
mas em diferencial evolutivo. Isso, claro, se tudo correr bem e se ainda houver
resquício do que teremos sido nos corpos que existirão depois de nós.
A imortalidade, por óbvio, faz parte do
horizonte próximo. Ray Kurzweil, ex-engenheiro do Google que ganhou notoriedade
por suas previsões vistosas, declarou em março que a imortalidade será
alcançada dentro de oito anos, graças a pesquisas que combinam robótica,
genética e nanotecnologia. E para quê? Desde sempre, o que distingue o humano
dos deuses é o trunfo inigualável da mortalidade. No instante em que superá-la,
a espécie, ou o que restar dela, terá deixado para trás nada menos que a sua
condição humana.
A notícia, portanto, embora nos seduza como a
aparição súbita do mistério inacessível, é horrorosa. A notícia é péssima.
Imagine só quem serão as personagens que, com RG de 120 anos de idade,
passearão por aí em corpinhos de 18. Estas votarão para sempre e financiarão
religiosamente as deepfakes que agora o TSE gostaria de inibir. Sim, a seleção
natural é inclemente, mas a seleção artificial será perversa.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Cruzes!
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