O padrão histórico: interesses concentrados ganham o jogo
“O mercado é ganancioso demais”, disse Lula, naquele encontro com os jornalistas, para justificar por que não precisa ou não cumprirá a meta fiscal de zerar o déficit público, ano que vem. Lula sabe perfeitamente que não foi o mercado, mas o próprio governo, quem definiu as metas do novo arcabouço fiscal. Mas sabe também que o truque de culpar o mercado de qualquer coisa sempre funciona. A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, daria o toque final: a culpa seria do (sempre ele) Roberto Campos Neto, que teima em não baixar os juros. Bingo. É evidente que nada disso faz nenhum sentido.
No mundo real, foi o próprio governo que tratou de criar o déficit,
quando aprovou, ainda em dezembro passado, a PEC da Transição, autorizando 145
bilhões de reais de gasto a mais, sem lastro fiscal. Depois disso nomeou seus
38 ministérios, passou a gastar como se não houvesse restrição fiscal, abriu
mais de 9 000 vagas de
concursos, deu 9% de aumento para o funcionalismo, além
de coisas esquisitíssimas, como incentivos a empresas aéreas
e o “feirão do carro zero”,
ao custo de 800 milhões de reais para o contribuinte. Nesse tempo todo, parece
clara uma certa irritação de Lula quando surge o tema “responsabilidade
fiscal”. No que ele não está de todo errado. Nunca prometeu, na campanha, que
seria diferente. De modo que não vejo surpresa que o país, de superávit de 0,5%
do PIB, em 2022, tenha passado voando a um rombo de perto de 100 bilhões de
reais, ou 1% do PIB, em exatos dez meses.
Naquela mesma entrevista, passou meio
desapercebida uma outra frase exemplar de Lula. Disse, sem meias-palavras, que
era um “direito” do PP e do Republicanos indicar o presidente da Caixa
Econômica Federal. “Eles têm mais de 100 votos”, diz, “e eu preciso desses
votos para continuar o governo”. Em uma frase, Lula traduz à perfeição o exato
oposto do que pretendeu fazer a Lei das Estatais, aprovada pelo Congresso em
2016, e hoje inteiramente destruída. É a mesmíssima questão que leva a
Petrobras a mudar seu estatuto para abrigar indicações políticas. Em vez de
proteger as estatais da lógica de captura por parte do mundo político,
caminha-se na direção contrária. Estatais voltam a funcionar como moeda de
troca política, e talvez só nos reste torcer para que o resultado não seja o
mesmo que se viu, quando isso funcionou como regra, alguns anos atrás.
É difícil não enxergar nestas coisas um
padrão. Uma espécie de agenda oculta da política brasileira: a crônica
vulnerabilidade aos grupos de pressão. Por vezes, são grupos ligados à esfera
pública. Os partidos, a alta burocracia, os sindicatos, os “interesses do
governo”. Em outros momentos, a captura vem do mundo privado, dos setores
econômicos mais bem organizados. É o que se passa com a reforma tributária,
transformada em uma guerra entre lobbies econômicos pela “conquista” de um
tratamento privilegiado. O que pode significar, na prática, pagar 40% da
alíquota padrão do novo imposto sobre valor agregado. Uma penca de setores já
conseguiu, incluindo-se o setor aéreo, eventos, turismo, bares e restaurantes e
agronegócio. Todos com boas razões, em geral associadas à “geração de
empregos”. Não por coincidência, a mesma justificativa usada para renovação da
desoneração da folha, na outra semana, para o feirão do carro zero e para quase
toda a engenharia econômica brasileira. Além de parecer muito estranho que tantos
setores precisem de incentivos do governo, para gerar empregos, chama atenção
que ninguém faça a pergunta inversa: se geramos empregos a mais, nos setores
que irão pagar menos tributos, quantos empregos iremos gerar a menos, nos
setores que terão de pagar mais para fechar a conta? Sendo a equação decidida
pela capacidade de lobby de cada setor, e não por um hipotético (e talvez
impossível) cálculo econômico, a resposta correta é que ninguém faz a menor
ideia. Minha desconfiança é que tudo atenda a um padrão velho conhecido nas
democracias: interesses concentrados e bem organizados ganham o jogo,
interesses difusos e “silenciosos”, no embate político, pagam a conta.
A uma ótima imagem disso assisti, por estes
dias, em diversas cidades brasileiras. Imensas filas com trabalhadores
esperando para entregar uma carta dizendo que não queriam pagar a nova
“contribuição” ao seu respectivo sindicato. As filas são o resultado de uma
decisão do STF,
permitindo que os sindicatos criem uma “contribuição assistencial” sem a
autorização prévia dos trabalhadores. O sindicato vai lá, cria a taxa, e apenas
depois, e do jeito que o próprio sindicato determinar, o trabalhador pode
rejeitar, ou fazer “oposição” à sua cobrança. Na prática, ficar em uma fila
imensa, numa calçada qualquer, Brasil afora. Sem chiar, sem fazer drama ou
pressão, em Brasília. Apenas para dizer que não quer tirar aquele dinheiro do
bolso, como era seu direito, a partir do que foi aprovado na reforma
trabalhista de 2017.
O ponto é que há um fio condutor na história
incômoda desse país que sacrifica o equilíbrio fiscal para financiar o status
quo estatal, com seus 25 000 funcionários
ganhando acima do teto, seus 38 ministérios e 37,5 bilhões
de reais em emendas parlamentares; que distribui regimes fiscais especiais, na
reforma tributária; que inverte a lógica da reforma
trabalhista, apostando na desinformação dos trabalhadores
para alimentar as estruturas sindicais; que distribui posições
de comando nas estatais para obter votos, no Congresso. O fio condutor é a
captura. A lógica do “Estado intrometido”, na boa definição que escutei, em um
debate, tempos atrás, sempre inclinado a favorecer este ou aquele setor
econômico, esta ou aquela corporação pública.
Quem refletiu com certa melancolia sobre isso
foi o grande historiador brasileiro José Murilo de Carvalho, que recém nos
deixou. Em seu Cidadania no Brasil: O Longo Caminho, escrito no início dos
anos 2000, ele cunhou uma expressão algo irônica, dizendo que em vez de uma
cidadania plena, havíamos criado a “estadania”, no Brasil. Uma certa “propensão
messiânica”, dizia ele, de “esperar e estranhamente aceitar tudo o que venha de
cima, mesmo ao custo do abuso, da interferência na liberdade individual”. Foi
exatamente a sensação que tive quando vi nossa tênue promessa de equilíbrio
fiscal afundar, nossas estatais novamente loteadas pelo mundo político, e
aquelas filas de trabalhadores silenciosos, dobrando a quadra dos sindicatos.
Em uma de suas últimas entrevistas, José
Murilo parecia expressar um enorme desalento. Perguntado se ainda considerava o
Brasil um “país do futuro”, respondeu lacônico: “Não, não é. Não enxergo um
futuro bom para o país, os dados não fecham”. Confesso não comungar de seu
pessimismo. Prefiro ver o Brasil como um país de meios-tons. Por vezes
avançamos em reformas modernizantes, por vezes recuamos. Nossa velha tradição
patrimonialista, o vezo de confundir o público com o privado, o império dos
pequenos interesses, parece nos puxar pelo pé, como uma assombração. É nesses
momentos que é preciso parar e refletir. E quem sabe aprender alguma coisa para
o futuro.
*Fernando Schüler é cientista político e
professor do Insper
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866
Muito bom,clareza de raciocínio total.
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