Folha de S. Paulo
Estudante não é chamado a se posicionar;
é-lhe pedido que interprete autores
Sinais de que o ano se aproxima do fim:
decoração de Natal nas
lojas e discussões sobre a "ideologia" no Enem. Desta vez
não foi diferente: a bancada do agro já pediu que o MEC anule três
questões da prova, por terem "cunho ideológico".
Nos anos anteriores, a preocupação com a
"ideologia" (fantasma que ninguém define direito) na prova se
centrava em temas de sexualidade —lembremos da pergunta sobre o dialeto LGBT, em 2018,
que fez tremer a família brasileira— e da ditadura
militar, que chegou a ser banida da prova.
No campo da sexualidade, este Enem não ousou. Já a ditadura voltou a figurar, como deve ser. Ideológica era a decisão de censurar menção a um período importante de nossa história recente.
Há boa variedade de temas, inclusive vários
que destoam de opções ideológicas simplórias: a opressão de mulheres afegãs
com a volta do Taleban, a
política da China para
esmagar minorias étnicas, o imperialismo dos incas, a devoção popular da
Cavalgada de Santana. A questão 71, uma das três que revoltou a bancada do
agro, é uma das mais interessantes: apresenta dois pontos de vista opostos —um
otimista, um pessimista— sobre a nova corrida
espacial protagonizada pelos super-ricos. O que há de ruim nisso?
Uma das outras perguntas (70) que incomodou o
agro fala do desmatamento na Amazônia, mas
com uma nuance importante: diz que a soja não é responsável por ele. Discutir o
desmatamento já é "ideologia"? Sobra a questão 89, que realmente traz
uma visão bastante negativa do agronegócio moderno,
embora isso venha como a opinião de um autor a ser lida e interpretada pelo
estudante, e não como a afirmação de um fato.
Na seleção de autores, aí sim, ficam claras
as preferências ideológicas do Enem: Sartre, Foucault, Merleau-Ponty, Paulo
Freire, Milton Santos. São autores de referência, e não há nada a se
objetar em sua inclusão, mas falta diversidade. Em particular, faltam vozes
mais à direita. A prova quase nada afirma sobre a realidade; fora uma ou outra
questão, temos só leitura e interpretação de textos.
Sendo assim, o mosaico de textos deveria
abarcar a diversidade ideológica da produção intelectual do país e do mundo,
algo que só virá se nossa academia passar a valorizar o debate de ideias, e não
a mera reprodução das mesmas referências.
O Enem me fez lembrar da minha passagem pela
academia brasileira, na graduação e mestrado em filosofia. O estudante não é,
em nenhum momento, chamado a se posicionar. É-lhe pedido apenas que interprete
diferentes autores. O acadêmico brasileiro se esconde atrás das citações,
deixando ver suas preferências apenas na escolha dos comentadores que citará. É
o mesmo espírito do Enem.
E aí mora o maior problema: toda essa
sofisticação na leitura de textos acaba impedindo a referência à realidade, sem
a qual nada daquilo faz sentido. O que costuma ser visto como um mérito da
prova —não demandar "decoreba"— é uma fraqueza. Ela exclui
mais do que inclui. A leitura dos textos é difícil. As respostas são
ambíguas. Não raro, mais de uma se encaixa. Caetano
Veloso, que tem duas músicas citadas numa questão, disse
que não conseguiria responder. Para ele, todas as alternativas estão
certas.
O que será mais democrático: lançar o
estudante num mar de textos, alguns com palavras difíceis e temas de que ele
nunca ouviu falar, ou cobrar um pouco menos disso e um pouco mais de datas e
fatos importantes da nossa história e do nosso presente? Se ele não sabe quem
foi Tiradentes ou
quando começou a ditadura, qual a chance de que consiga ler e interpretar
Foucault?
As respostas são ambíguas mesmo.
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