Valor Econômico
A situação esquisita de que se tornou
personagem sugere que é ele uma invenção, uma construção
O primeiro-ministro de Portugal, António
Costa, socialista, eleito em 2015 e reeleito com maioria absoluta em 2022,
renunciou após promotores terem emitido mandados de prisão e busca em prédios
públicos como parte de uma investigação sobre corrupção que chegou ao círculo
mais próximo do poder. Essa é uma virtude do regime parlamentarista, que não
conhecemos em nosso presidencialismo fundado numa economia rentista e num
republicanismo do poder pessoal e do negocismo da troca de favores e do
nepotismo.
Em sua nota de renúncia, o premiê esclareceu que não estava ciente da investigação e que tinha a consciência tranquila: “Mas independentemente disso a dignidade das funções de premiê e a confiança que o povo português tem nas instituições são absolutamente incompatíveis com [ter] um primeiro-ministro que enfrenta suspeitas sobre sua integridade”. Palavra de um consciente funcionário da democracia, independentemente do que venha a ser apurado nas investigações do caso.
Para nós brasileiros essas palavras são
expressões de um modo de conceber o poder, o povo, as instituições e de fazer
política, surpreendente e para muitos até estranho. Com o fim da ditadura
militar e do protagonismo disfarçado de seus cúmplices civis, com a convocação
da Assembleia Nacional Constituinte e a promulgação da Constituição democrática
de 1988, achamos que as anomalias do chamado poder pessoal, militar ou civil,
estavam banidas da vida política brasileira.
E acabamos vendo, em diferentes episódios de
degradação política do país, especialmente no último quatriênio, que não era
bem assim. No Brasil o povo não é respeitado nem se respeita quando um terço do
eleitorado, independentemente de reiteradas indicações de conduta imprópria de
políticos e governantes, teima em defesa da opção por um comportamento
carneiril do povo e por um perfil de governo inspirado na figura do capitão do
mato. Coisa de um país que ainda não sabe que foi descoberto, não sabe que se
tornou independente, não sabe que se tornou republicano e, pior que tudo, não
sabe o que pode ser à luz de suas possibilidades propositalmente ocultadas.
É verdade que não somos originais nem mesmo
na opção pelo poder prepotente. A civilizada Itália teve o fascismo do bufão
Benito Mussolini, e a recaída dessa tendência em outro bufão, Berlusconi. Os
Estados Unidos, dos notáveis Benjamin Franklin e Abraham Lincoln, tornou-se
país de grandes pretensões geopolíticas, para forçar outros países a serem a
negação do que deveriam e poderiam ser. Pariram Trump, o mentor de um
inconcebível golpe de Estado e tentativa de invasão do Capitólio. A Inglaterra
da Carta Magna e de grandes governantes, como Churchill, abriu espaço para o
retrocesso histórico do neoliberalismo de Margaret Thatcher. E seu
neoliberalismo econômico antissocial procriado na figura de Boris Johnson,
filho do isolacionismo e da retração do Brexit, de uma prestigiosa Inglaterra
que encolheu.
Poderíamos ir adiante, acrescentando, em
relação ao Brasil, a fecundidade do bolsonarismo e sua disponibilidade para a
indisfarçável tocaia, nas próprias instituições, para retornar ao poder que
Bolsonaro concebeu e concebe como coisa sua. A má educação de desconhecer a
eleição do sucessor e de abandonar a Presidência para não transmiti-la ao
substituto legal e legítimo foi verdadeira tentativa de apropriação indébita do
poder. Tratado como propriedade privada, desconhecendo-o como instituição
política e bem institucional da nação brasileira.
Há entre nós a amoralidade ainda que legal de
eleger sob um nome só e em nome de um só uma parentela inteira de cúmplices que
se revezam no poder em condomínio familiar.
Essas degradações de instituições do poder
político e democrático têm um parceiro e acionista, a economia marginal do
lucro extraordinário resultante não da competência empresarial, mas da
flexibilidade da lei, do poder e do caráter dos que deveriam zelar pela
separação de interesses entre o Estado e o cidadão. Propõem a facilidade do
aparelhamento econômico das brechas que há na legislação democrática de vários
países, especialmente no nosso. No Brasil, as leis já são feitas com ressalvas
para sua violação em detrimento do bem comum, em benefício de grupos econômicos
que progridem sem disporem seus dirigentes da vocação propriamente capitalista.
A própria Constituição invadida pelo pressuposto autoritário do artigo 142 que
coloca a nação sob tutela das forças armadas e de joelhos.
A Justiça se encarregará, em Portugal, de
investigar, examinar, discernir e julgar responsabilidades e de colocar as
coisas no lugar. Em respeito, justamente, à bela e democrática confiança do
povo português nas instituições.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna
antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirMuito boa, esta reflexão de José.
Excluir(Íntimo, eu:: "José " :: Mas José de Souza Martins é um destes brasileiros com quem eu gostaria muito de tomar uma cachacinha no balção e lhe perguntar algumas coisas, se eu estivesse em uma fase do meu estômago aceitando o álcool.