quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Malu Gaspar - A guinada de Lula

O Globo

Duas frentes vinham funcionando relativamente bem neste terceiro mandato de Lula: o Ministério da Fazenda e a Polícia Federal (PF). Enquanto Fernando Haddad negociava com o Congresso novas leis e reformas para organizar as finanças, numa narrativa de responsabilidade fiscal que emplacou entre os parlamentares como no mercado financeiro, a PF investigava os crimes e abusos cometidos pelo governo anterior contra a democracia e suas instituições.

Além de cumprir sua missão, a PF produzia notícias em série durante todo o ano para lembrar à opinião pública a principal razão que fez Lula vencer Jair Bolsonaro em 2022.

Sem a Fazenda convencendo o Congresso e o mercado de que tinha um plano, e sem a PF alimentando o noticiário com novidades anti-Bolsonaro, teriam sobrado mais holofotes para as incongruências entre o discurso e a prática ambiental do governo ou a falta de coordenação entre as políticas sociais – alvo, aliás, de queixas do próprio Lula.

As peripécias do Centrão na Codevasf e os lobbies que rondam o Planalto, o BNDES, a Petrobras e as agências reguladoras poderiam ter tido mais atenção. Talvez, ainda, houvesse mais espanto com a barbeiragem dos aplicadores do Enem, que colocaram 50 mil estudantes para fazer prova em escolas distantes até 200 quilômetros de suas casas.

Só que Lula começou a mudar de rumo. Nos últimos dias, vem se dedicando a desmontar o discurso que levou Haddad a insistir no déficit zero e a convencer o Banco Central a iniciar o ciclo de queda dos juros.

Mesmo no momento em que todos esperavam algum afago público em seu ministro mais importante, sacou uma frase no melhor estilo “gasto é vida” e afirmou que "para quem está na Presidência, dinheiro bom é transformado em obras", ao contrário do pessoal da Fazenda, que, segundo Lula, acha que "dinheiro bom é dinheiro do Tesouro".

Lula não está enganado ao dizer que não faz tanta diferença assim que o déficit seja déficit zero, 0,25% ou de 0,5%. Estamos falando, afinal, de cerca de R$ 60 bilhões – pouco perto do déficit da Previdência, calculado em R$ 270 bilhões, ou dos R$ 600 bilhões em renúncias fiscais que Haddad chamou de "caixa-preta", mas que continuam aí, firmes e fortes.

Ninguém tinha a ilusão de que o déficit zero seria factível. Até a ministra do Planejamento, Simone Tebet, que vem sendo leal a Haddad, achava muito arriscado insistir nessa meta, mas Haddad insistiu, pela simbologia da coisa. Está em alta criticar essa opção agora, mas, quando teve chance de arbitrar a questão, Lula manteve a bola com a Fazenda.

Agora, segundo interlocutores próximos, abraçou a versão da Casa Civil de Rui Costa e anda dizendo que Haddad está alinhado demais com a Faria Lima – esse pessoal "ganancioso" que, em sua visão, só dá "porrada" no governo.

Com a PF, o enrosco é outro. Lula não gostou nem um pouco de ter que decretar Garantia da Lei e da Ordem (GLO ) contra o crime organizado, colocando Marinha e Aeronáutica para fazer patrulhamento ostensivo em portos e aeroportos, hoje pontos de embarque e desembarque de drogas e armas ilícitas.

Ficou incomodado por ter tido de aceitar o "prato feito" apresentado pelo ministro da JustiçaFlávio Dino, e pelo diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues. Preferia ter tido à mão soluções que não o empoderamento dos militares logo no primeiro grande desafio de segurança pública de seu governo.

Mas, de acordo com alguns auxiliares, ficou sem opções diante da informação de que a PF não teria condições estruturais de atuar como é preciso para ajudar a fechar os canais de transporte de drogas.

Lula, porém, não ignora que o chefe da PF vem tentando manter o moral de sua tropa, apesar da disputa interna com o Ministério da Gestão por recursos para aumentar os salários da categoria. Enquanto a queda de braço não se resolve, peritos e agentes fazem uma espécie de "greve branca" que está atrasando algumas investigações, incluindo as relacionadas ao governo Bolsonaro.

O presidente parece ansioso por fazer o governo deslanchar, mesmo que precise impor derrotas aos auxiliares que mais lhe deram tranquilidade para atravessar este primeiro ano.

Por ora, a PF continua tocando suas operações, e a Fazenda ainda busca uma forma de descartar o déficit zero sem ser completamente desmoralizada. Ninguém que conheça Andrei ou Haddad consegue imaginá-los se rebelando ou deixando o governo. Tudo indica que assimilarão o desgaste e seguirão em frente sem marola. O risco maior, afinal, é de Lula. É ele quem tem mais a perder se suas apostas não derem o resultado esperado.

 

 

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