terça-feira, 14 de novembro de 2023

Maria Clara R. M. do Prado - Aguenta Argentina, enquanto pode

Valor Econômico

Os subsídios e as benesses acabam por desencadear uma espécie de bola de neve. Quanto mais os preços aumentam, maior é o gasto público

Por insistência do Ministro da Economia, Sergio Massa, candidato à Presidência da Argentina, seu opositor, Javier Milei, reiterou no debate de domingo que vai dolarizar a economia. Mencionou a intenção apenas uma vez. Poucos minutos antes, diante da mesma pergunta referente à dolarização, Milei havia respondido positivamente com a palavra “conversibilidade”, termo que voltou a usar em outros momentos ao longo do debate. São, como se sabe, iniciativas diferentes. Mencionadas de forma inconsequente só ajudam a causar confusão e insegurança.

A menos de uma semana do segundo e definitivo turno das eleições presidenciais naquele país, o que se ouviu no embate entre os dois candidatos deu a impressão de que os argentinos estarão diante de uma “escolha de Sofia” no próximo domingo. Terão de optar entre um salto no escuro e uma política que, pelo visto, será mais do mesmo. Fora um plano de segurança nacional ousado, Massa não se comprometeu com nenhuma medida econômica nova e diversa daquela que tem pautado os governos mais recentes desde os primeiros anos da era Kirchner, baseada na larga distribuição de subsídios à sociedade.

Milei tem o diagnóstico correto quando diz que o Estado é a origem dos problemas, mas não consegue avançar na solução. Sim, porque nem o desaparecimento do banco central nem a saída do país do Mercosul e muito menos uma política econômica “liberal libertária” ajudariam a desatar o grande nó em que se meteu a Argentina, onde público e privado são praticamente sinônimos.

A mistura confusa, típica de governos populistas, tem raízes profundas no país há pelo menos 80 anos, desde que Juan Domingo Perón assumiu o cargo de Secretário de Estado do Trabalho e Segurança Social, posição que usou para fomentar o fortalecimento dos sindicatos através de medidas de proteção trabalhista. Nos nove anos ininterruptos em que esteve à frente da Presidência, de 1946 a 1955, Perón consolidou a participação do setor público na vida dos argentinos e fez dos sindicatos a grande força política de sustentação do peronismo.

Mais do que um partido, porém, o peronismo é uma espécie de movimento que contamina não apenas as classes de renda mais baixas como também boa parcela da classe média, a qual também se vale das benesses do Estado para manter certo conforto. Alguns diriam que movimento é uma palavra de estreita estatura para explicar o peronismo. Em seu emblemático livro “El Atroz Encanto de Ser Argentinos”, em que Marcos Aguinis procura traçar o perfil estereotipado do argentino, há menção à uma declaração do escritor Jorge Luis Borges no sentido de que “os peronistas não são bons nem maus: são incorrigíveis”.

O próprio Aguinis qualifica de ambígua a identidade do peronismo, que ao longo do tempo ganhou nuances diversas, incluindo o neolioberalismo no governo de Carlos Menem, entre 1989 e 1999. O fato é que nem mesmo liberais de quatro costados como Mauricio Macri conseguiram escapar das medidas populistas que têm orientado os governos argentinos, como a do congelamento de preços, recorrente sempre que a inflação começa a piorar.

Neste ponto, vale indagar o que significa a inflação na Argentina? Para começar, não deixa de ser um tanto esdrúxulo o fato de um dos candidatos à Presidência na atual eleição com chances de vitória ser justamente a pessoa diretamente responsável pela administração da economia que produziu a inflação anual (até setembro) de 138,3%, a mais alta desde 1991, primeiro ano do plano de conversibilidade do ministro da Economia Domingo Cavallo, durante a gestão Menem, quando o IPC chegou a 171%. No ano anterior, havia registrado aumento de 2.313,96%.

Aliás, desde 1980, a inflação só esteve sob controle no período de 1991 a 2001 em que durou a política de paridade entre o peso e o dólar. O chamado “corralito” (instituído em dezembro de 2001 pelo próprio Cavallo, na gestão de Fernando de la Rúa) limitou ao equivalente a 250 pesos os saques por semana para conter uma corrida desenfreada aos depósitos bancários e funcionou como uma pá de cal na conversibilidade. A partir dali o IPC voltou a subir, tendo disparado no segundo governo de Cristina Kirchner.

Nos últimos treze anos, o aumento crônico dos preços tem feito parte da realidade do dia a dia dos argentinos, assim como a política cada vez mais agressiva de subsídios de toda ordem concedidos para compensar o aumento de tarifas públicas como transporte, energia elétrica e gás. Também é distribuído para alguns segmentos produtores.

Os subsídios e as benesses acabam por desencadear uma espécie de bola de neve. Quanto mais os preços aumentam, maior é o valor do gasto público, que por sua vez contribui para elevar a inflação. A desorganização econômica na Argentina afeta o equilíbrio relativo dos preços e, com isso, o investimento, o crescimento e até mesmo a funcionalidade dos programas de redistribuição da renda.

A menos que Massa tenha uma carta escondida na manga, as indicações que ele dá apontam para a manutenção da mesma política populista de distribuição de benesses. Até agora, não defendeu a necessidade de um plano de combate à inflação. A confiar no que falou no debate de domingo, as exportações argentinas continuariam a ser a base de sustentação da economia. Ponto.

Já Milei, com a sua retórica atrapalhada e agressiva, tem reafirmado a intenção de combater a inflação, mas não fica claro se vai optar pela dolarização (que significaria substituir o peso pelo dólar como moeda corrente na economia) ou a algo próximo à conversibilidade do Plano Cavallo (em que o peso virou a moeda nacional em substituição ao austral e passou a ser convertido para o dólar pela paridade de um para um). Ou, eventualmente, um misto daquelas duas políticas.

Por ora, resta recorrer à frase de Aguinis com a qual encerra o livro, além de dar título ao último capítulo: “Aguante Argentina, todavía!”.

 

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