sexta-feira, 3 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

O Lula de 2023 tem muito a aprender com o Lula de 2003

O Globo

Duas décadas representaram enorme retrocesso na visão do presidente sobre a disciplina fiscal

Era previsível — e foi previsto aqui mesmo no GLOBO, entre tantos outros lugares — que as metas traçadas pelo governo na apresentação do novo arcabouço fiscal se revelariam impraticáveis. Cumpri-las dependeria daquilo que infelizmente se tornou anátema nas rodas políticas de Brasília: cortar gastos. Mesmo assim, elas foram reiteradas repetidas vezes pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad — em particular o compromisso de zerar o déficit em 2024, enviado pelo Executivo ao Congresso na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Todos confiaram que, depois do descontrole orçamentário promovido pela PEC da Transição, haveria ao menos grande esforço para reequilibrar as contas públicas. Intenções contam.

Até que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva torpedeou a meta do ano que vem no final de um café da manhã com jornalistas: “Eu sei da disposição do Haddad, sei da vontade do Haddad, sei da minha disposição. (…) [Mas] nós dificilmente chegaremos à meta zero. (…) Se o Brasil tiver um déficit de 0,5%, o que é? De 0,25%, o que é? Nada. Absolutamente nada. Vamos tomar a decisão correta e vamos fazer aquilo que vai ser melhor para o Brasil”. Desde então, o governo se engalfinha em torno do novo compromisso que apresentará à sociedade.

Metas fiscais estão longe de ser “absolutamente nada”, como quer Lula. É por meio delas que o governo informa à sociedade e ao mercado como lidará com as finanças do Estado. Pelos cálculos do Tesouro Nacional, equilibrar as contas no ano que vem significaria que a dívida pública voltaria a cair em 2025, depois de alcançar 76% do PIB (ela era de 51% em 2013, atingiu o pico de 87% em 2020 e voltará a subir neste ano).

Se um país gasta mais do que arrecada, sem a perspectiva de equilíbrio, o governo semeia desconfiança na própria solvência, principal pilar da estabilidade monetária. Com menos confiança, o Estado precisa pagar juros mais altos a quem lhe empresta dinheiro, alimentando ainda mais a dívida. A alternativa é a incúria fiscal com inflação galopante, como ocorre na Venezuela, na Argentina e, antes do Plano Real, ocorria no Brasil. Quem paga o maior preço em ambos os casos — juros mais altos ou mais inflação — são os mais pobres. Eles é que mais sofrem com a retração da economia trazida pela necessidade do governo de pagar mais pelos empréstimos que contrai. Eles é que mais sofrem com o descontrole dos preços por não disporem de meios de preservar o poder de compra do pouco que ganham.

Essa é a realidade. E Lula deveria conhecê-la perfeitamente. Pelo menos a conhecia em 2003, quando assumiu seu primeiro mandato. A confiança depositada pelos agentes econômicos em um novo governo Lula durante a campanha do ano passado derivou em boa parte da experiência e da memória daquele presidente que, na campanha de 2002, assinou a Carta ao Povo Brasileiro afirmando: “Vamos preservar o superávit primário quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos”. Simples, cristalino — e sensato.

Não ficou nas palavras. Ao assumir em 2003, Lula imediatamente elevou a meta de superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB. No final daquele ano, o resultado foi de 2,3%, acima dos 2,2% alcançados em 2002 e de toda a série histórica até então. No ano seguinte, o governo Lula alcançou 2,7%, recorde até hoje. A inflação, que vinha subindo e chegara a 12,5% em 2002, foi derrubada a 5,7% em 2005, graças a juros catapultados a 26,5% no início do governo. Tudo isso com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles no Banco Central, sob as bênçãos de Lula. A busca pelo equilíbrio fiscal em nada impediu o governo de promover programas sociais importantes: Bolsa Família, Prouni, cotas raciais, Luz para Todos, só para citar alguns.

Em algum momento, porém, Lula mudou de ideia sobre a responsabilidade fiscal. A deterioração nas contas públicas começa em 2006, segundo dados da Instituição Fiscal Independente (IFI). Descontando do superávit convencional as componentes cíclicas (como flutuações geradas pelo preço de commodities) e não recorrentes (como receitas de leilões ou despesas emergenciais), o resultado primário estrutural caiu de 2,2% do PIB em 2003 para menos de 1% em 2007. Entrou no vermelho em 2010, quando o fim da bonança econômica deixou de mascarar as contas. Embora a situação fiscal brasileira não tenha gerado um cenário catastrófico como noutros países, desde então jamais voltou ao patamar do início do primeiro governo Lula.

Lula passou a nutrir desdém cada vez maior pela responsabilidade fiscal. “Por que as pessoas são levadas a sofrer por conta de garantir a tal da estabilidade fiscal nesse país? Por que toda hora falam que é preciso cortar gasto, é preciso fazer superávit, é preciso fazer teto de gasto? Por que o povo pobre não está na planilha da discussão da macroeconomia?”, perguntava em novembro, pouco depois de eleito — antes afirmava que suas práticas econômicas anteriores falavam por ele. Em 2003, Lula jamais cometeria erro tão primário quanto achar que os pobres perdem com a disciplina fiscal. Em 2023, mal finge aceitá-la e na primeira oportunidade lança pelos ares a primeira meta que ele mesmo se impôs. Depois de duas décadas de retrocesso, o Lula de 2023 teria muito a aprender com o Lula de 2003.

BC mantém ritmo de corte, mas continuidade corre riscos

Valor Econômico

Pelo cenário de hoje, ao fim do ciclo de aperto monetário, a Selic será de 8,5% só em 2026, com uma taxa real de 5,5%

O Banco Central seguirá com o processo de redução de juros, ao ritmo de 0,5 ponto percentual, pelo menos por mais duas reuniões. O Comitê de Política Monetária não mudou sua avaliação sobre os riscos fiscais, após o presidente Lula ter descartado a necessidade de perseguir a meta de déficit zero em 2024 e abrir o caminho para mudá-la. Apenas repetiu termos de seu comunicado anterior, reafirmando “a importância da firme persecução” das metas já estabelecidas. A evolução do cenário de referência do BC indica, porém, problemas à frente com o ritmo de corte dos juros e uma taxa ainda contracionista ao fim do ciclo.

Ao manter o ritmo de ajuste, o BC agiu com base no progresso relevante na queda da inflação. Tanto em seu cenário de referência quanto nas projeções do boletim Focus, o IPCA do ano corrente situa-se agora abaixo do teto da meta de 3,25%, algo que há um par de meses parecia impossível. Mas o BC ressalva que as medidas de inflação subjacentes (que olham o núcleo e desconsideram preços de produtos mais voláteis) se situam acima da meta de inflação, sem indicar que elas continuam a recuar.

As projeções do IPCA no cenário de referência do BC e do boletim Focus são praticamente iguais para 2023, mas se afastam nos dois exercícios seguintes, como ocorrera no comunicado anterior. Entretanto, a estimativa do cenário de referência do BC piorou marginalmente para 2024 e 2025 - foram de 3,5% e 3,1% no comunicado anterior para 3,6% e 3,2% -, o que emite um sinal de alerta. A projeção subiu mesmo considerando que os juros projetados são mais altos: 9,25% (antes 9%) em 2024 e 8,75% (antes 8,5%) em 2025. Isso sugere que o ritmo de cortes pode arrefecer, ou que ele pode ser interrompido antes do que se prevê. Pelo cenário de hoje, ao fim do ciclo de aperto monetário, a Selic será de 8,5% só em 2026, com uma taxa real de 5,5% - considerando-se o juro neutro de 4%, ela ainda será significativamente contracionista.

Houve uma mudança para pior na avaliação do cenário externo, que passou do “incerto” para “adverso”, motivado principalmente pelo aumento das taxas de longo prazo nos Estados Unidos, pela resistência à baixa dos núcleos de inflação em diversos países e por “novas tensões geopolíticas”. O Copom acrescentou “cautela” à atenção prescrita em sua avaliação anterior. Mesmo assim, não houve mudança no balanço de riscos. A persistência de pressões inflacionárias e a possibilidade de que a economia brasileira esteja crescendo próximo ou acima de seu potencial, impulsionando a inflação de serviços, puxariam o IPCA para cima. Para baixo atuariam uma desaceleração global maior do que a prevista e um aperto monetário sincronizado cujos efeitos sejam mais fortes do que o esperado.

Os juros de longo prazo mais altos nos EUA, com o aperto das condições financeiras, foram também ressaltados no mesmo dia na entrevista de Jerome Powell, presidente do Federal Reserve, logo após o banco central americano decidir manter, pelo segundo mês consecutivo, a taxa de juros entre 5,25% e 5,5%. O Fed não descarta, porém, um aperto adicional no futuro. O Fed tem um problema sério: a economia disparou no terceiro trimestre e cresceu 4,9%, mesmo com os maiores juros em 22 anos. Powell indicou que ainda assim agirá com cautela porque se move no terreno delicado de uma transição incerta, na qual a inflação tem caído, mas os efeitos da rápida e forte carga de aperto monetário ainda não mostraram plenamente seus efeitos. “Não estamos confiantes que com a atual instância monetária conseguiremos levar a inflação a 2%, nem estamos confiantes de que não conseguiremos”, resumiu Powell.

O Fed quer levar a economia a operar por um período abaixo de seu potencial de longo prazo, mas isso ainda não está perto de ocorrer. Powell acha que as condições financeiras estão mais apertadas, com a alta expressiva dos titulos do Tesouro de longo prazo, a valorização do dólar, aumento dos spreads de crédito (diferença entre o custo de captação e o juro cobrado do tomador final) e outros indicadores, e que se elas se mantiverem assim por algum tempo fariam o mesmo trabalho que uma alta de juro de 0,4 ponto percentual decidida pelo banco. Até o fim do ano passado, o Fed temia estar realizando uma política menos restritiva do que deveria, e sinalizava sua preferência por pecar por excesso do que por timidez na execução monetária. Hoje o risco está mais balanceado entre as duas atitudes, afirmou Powell.

O consumo americano é forte e o mercado de trabalho continua aquecido, embora um pouco menos do que antes. Cálculos da Oxford Economics indicam que a proporção entre a oferta de emprego e o número de candidatos aptos a preenchê-la, que já foi de 2, situa-se em 1,5. A economia deve esfriar no fim do ano, mas mesmo que nada crescesse, o PIB seria de 2,1%.

O Fed aguarda, primeiro, que os efeitos defasados da alta dos juros produzam as consequências esperadas, atingindo um ponto em que não haja mais dúvidas de que a inflação ruma para os 2%. A partir daí, decidirá por quanto tempo sua política restritiva se manterá - suas últimas indicações são de que durará mais tempo que o previsto. O mundo, o Brasil incluído, acompanha os desdobramentos.

Sufocar as milícias

Folha de S. Paulo

Deve-se focar em quem dá sustentação econômica aos grupos que se espalham pelo RJ

Invasão de terrenos sob ameaça, expulsão de moradores, construções sem licença ambiental e até achaque a vendedores de gelo usado nas praias: estes são alguns dos efeitos colaterais severos da expansão das milícias no Rio de Janeiro. Entre 2006 e 2021, cresceram em 387,3% as regiões sob o domínio de grupos paramilitares no estado.

Áreas de milícia lideram os registros de crime de esbulho possessório —a tomada, com violência ou grave ameaça, de imóvel ou terreno alheio. Entre janeiro de 2019 a dezembro de 2022, foram 430 casos, segundo levantamento publicado na série Milícias do RJ, desta Folha, que percorreu por dois meses 60 áreas da zona oeste do Rio e da Baixada Fluminense.

Com origem em grupos de extermínio compostos por agentes de segurança e ex-policiais há mais de 70 anos, as milícias se infiltraram no comando de regiões inteiras, no narcotráfico e no próprio Estado, provando a ineficácia da política teatral de operações pontuais.

A tomada agressiva de territórios revela, aliás, ponto nevrálgico desses grupos: a sustentação financeira. Investigar origens do dinheiro por meio de inteligência preventiva e sufocar as fontes de renda dos milicianos deveriam estar no centro da estratégia. Não estão.

A história da violência no Rio pode ser recontada a partir de políticas falhas, do policiamento comunitário desestruturado como das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) —apesar de seus resultados positivos no início— a operações com alta letalidade policial e de resultados pontuais, sem reverter o controle dos territórios.

Desde o início de outubro, o governo federal deslocou ao estado mais de 500 agentes da Força Nacional e da Polícia Rodoviária Federal. Embora policiamento ostensivo seja relevante, seria mais eficaz focar nas lideranças e nos agentes intermediários que constroem a sustentação política e econômica desses grupos.

Na última quarta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) anunciou medidas para enfrentar a crise na segurança pública no Rio. Investigação financeira, ações de inteligência e articulação entre polícias estão entre as ações previstas, o que é bem-vindo, embora pouco esteja detalhado até o momento.

A proposta de um decreto para a Garantia de Lei e da Ordem (GLO) específica para portos e aeroportos do Rio de Janeiro e de São Paulo é mais duvidosa: de um lado, compromete a imagem da Polícia Federal, que passaria a responder a militares, e, de outro, não afeta o domínio territorial das milícias.

Há muitas ideias para o Rio de Janeiro. Fazer com que funcionem exige mais inteligência e planejamento do que ações de alta visibilidade, mas de pouco efeito prático.

Emendas da desigualdade

Folha de S. Paulo

Parlamentares perpetuam distorção no SUS ao alocarem verbas sem critérios técnicos

Um dos elementos que confirmam o aumento do poder político do Congresso Nacional nos últimos anos é o peso relativo das emendas parlamentares na distribuição dos gastos discricionários da União, notadamente na área da saúde.

Segundo amplo levantamento do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), 47% desse tipo de despesa para o setor em 2022 foi direcionada por congressistas.

O orçamento do Ministério da Saúde é composto por gastos obrigatórios —para programas já consolidados, que não dependem da vontade dos gestores— e os discricionários, usados para implantar de fato a política pública da pasta, com inovações que visam melhorar acesso e qualidade dos serviços.

Logo, causa espécie que quase metade desse montante seja alocado por parlamentares, que tendem a seguir critérios políticos, como agradar seus redutos eleitorais. Para o SUS, isso é temerário.

Os números escancaram o vínculo clientelista. De um total de R$ 47,9 bilhões em emendas para a saúde entre 2018 e 2022, os municípios receberam R$ 46,3 bilhões (96,6%). Mais preocupante, só R$ 8,9 bilhões foram aplicados em obras, aquisição de material permanente e investimentos.

Ou seja, a verba tem sido usada para bancar despesas correntes dos municípios, em vez de ampliar o atendimento das redes, criando uma relação de dependência entre prefeituras e emendas, sem grandes benefícios para a população.

Outro problema é a ausência de balizas técnicas. Ainda segundo a pesquisa do Gife, os municípios com menos de 70% de cobertura da Atenção Básica (o mais baixo índice) receberam quatro vezes menos valores per capita do que aqueles com cobertura completa.

Cidades com poucos recursos para a saúde levaram em média 59% menos verbas do que as mais ricas; e lugares com índices baixos de mortes prematuras por doenças crônicas não transmissíveis receberam, em média, 62% mais dinheiro público do que aqueles que têm dificuldade nesse indicador.

Já que um dos maiores problemas do SUS é a desigualdade regional, é inaceitável que emendas sejam usadas como moeda de troca política em vez de beneficiar a população que mais precisa.

Se parlamentares se recusam a agir com a responsabilidade que o cargo exige, urge a criação de mecanismos que ao menos imponham critérios técnicos na alocação das vultosas verbas das emedas.

Uma GLO que é a cara deste governo

O Estado de S. Paulo

Em nova avacalhação com o País, Lula e Dino editam medida populista, de curto prazo, sabidamente ineficaz e que atribui a militares tarefa que não lhes cabe. Não tem como dar certo

Parece até piada de mau gosto, mas é apenas o governo Lula atuando. Para combater o tráfico de drogas e de armas, o presidente Lula da Silva assinou na quarta-feira passada um decreto instituindo uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos Portos de Santos, do Rio de Janeiro e de Itaguaí e nos Aeroportos do Galeão e de Guarulhos até maio de 2024, com a participação de 3.700 militares.

Segurança pública é coisa séria. Exige conhecimento do problema, planejamento, responsabilidade e respeito às competências institucionais e às habilidades funcionais dos diversos órgãos de Estado. Mas o presidente Lula da Silva parece preferir outro tipo de medida, baseada exclusivamente em cálculo político-eleitoral. Sem enfrentar as causas, simula alguma proatividade e, para piorar, ainda envolve os militares. É pedir, por decreto, para dar errado.

A GLO de Lula é uma demonstração perfeita das razões pelas quais a situação da segurança pública no País está do jeito que está. Ninguém quer resolver as causas do problema. Ninguém quer olhar para além de seus interesses políticos imediatos. É tudo uma grande farsa, como fica evidente pelo próprio período da GLO: de 6 de novembro de 2023 até 3 de maio de 2024. O combate ao crime organizado dura seis meses? É assim que o governo federal encara a gravidade do problema: algo que pode ser enfrentado com uma força-tarefa de seis meses em três portos e dois aeroportos?

Mas a GLO de Lula não é apenas inútil. Envolver as Forças Armadas na segurança pública é um equívoco institucional e funcional, que causa sérios danos ao País. Os militares não têm essa atribuição institucional nem foram treinados para isso. Colocar os militares para combater o crime organizado é uma resposta amadora, completamente antiprofissional. Para piorar, a medida transmite uma mensagem errada à população, como se coubesse a militares cuidar da segurança pública.

É uma verdadeira lástima que, depois de quatro anos de bolsonarismo – com o Palácio do Planalto fazendo todas as confusões possíveis com as Forças Armadas –, o governo que lhe sucedeu insista em atribuir aos militares um papel na vida do País que eles não têm. O completo fracasso da intervenção federal na segurança do Rio de Janeiro em 2018 não foi suficiente?

Não há avanço possível na segurança pública enquanto se pensar que decreto de GLO pode servir para combater a criminalidade. Precisamente por ser uma situação gravíssima, há urgência de medidas adequadas, planejadas e responsáveis. Não há nenhuma urgência para repetir os erros de sempre – ou para iludir a população com ações extravagantes que nem sequer tocam as causas do problema.

A responsabilidade pela GLO é do presidente Lula da Silva, que reitera uma vez mais sua estatura moral e cívica. Diante de um problema gravíssimo, que afeta direitos fundamentais da população, ele opta por uma solução populista e sabidamente ineficaz. É um simulacro de governo. Fingindo preocupar-se com a população, ocupa-se apenas de si mesmo.

Mas, nessa história de GLO, há um outro personagem, o sr. Flávio Dino, que sai inteiramente desmoralizado. Ao ser conivente com o tal decreto, o ministro da Justiça e da Segurança Pública descumpriu suas duas principais atribuições: zelar pelo cumprimento da Constituição no âmbito da administração federal e prover políticas de segurança pública responsáveis. A excepcionalíssima Garantia da Lei e da Ordem pelas Forças Armadas, prevista no art. 142 da Constituição, não tem nenhuma relação com colocar militar em portos e aeroportos para combater o crime organizado. É esse o ministro cotado para o Supremo?

Com a nova GLO, não são apenas os atos de Lula que ficam se parecendo com os de Bolsonaro, ao envolver os militares em missão que não lhes cabe. Também os ministros de Lula ganham uma estranha similaridade com os do governo anterior, ao cultivarem não a lei da República, mas uma outra lei, definida assim pelo antigo ministro da Saúde Eduardo Pazuello: “Um manda e o outro obedece”. Os resultados são bem conhecidos.

Sonhos de um Estado confessional e iliberal

O Estado de S. Paulo

PL proibindo o casamento homoafetivo é exemplo de como grupos ideologicamente motivados querem usar instituições jurídicas e parlamentares para impor convicções pessoais

A aprovação pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados de um projeto de lei (PL) que proíbe o casamento homoafetivo suscitou grande – e natural – indignação. Para piorar, foi uma vitória folgada: 12 votos contra 5. Ainda há dúvidas sobre a viabilidade da proposta. Tudo indica que, mais do que uma lei com esse teor, o objetivo é gerar barulho e engajamento nas redes sociais. É possível, portanto, que o projeto seja apenas mais uma das disfuncionalidades da política contemporânea. Em vez de enfrentar problemas reais, ela é usada para suscitar divisões na sociedade.

No entanto, mesmo que não seja aprovado no plenário da Câmara, o projeto de lei proibindo o casamento homoafetivo é representativo de uma mentalidade que vem se tornando habitual em diversos grupos ideologicamente motivados. Trata-se da pretensão de usar o Estado – por meio do Legislativo ou do Judiciário – para impor à coletividade ideias e convicções pessoais sobre a vida, o mundo e a sociedade.

Nesse anseio, observa-se uma grande confusão sobre o Estado e a própria democracia. As eleições e o sistema representativo não são mecanismos para que as concepções morais, religiosas ou culturais da maioria da população sejam impostas a toda a sociedade. Da mesma forma, o controle de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal (STF) não é um mecanismo para que as concepções morais, religiosas ou culturais de uma maioria sejam impostas a toda a sociedade.

Tudo isso parece óbvio em um Estado Democrático de Direito, que não vem ditar como as pessoas devem viver ou como devem educar seus filhos, por exemplo. O Estado não é um fiscal da moral e dos bons costumes, tampouco uma espécie de grande guia sobre o bem e a virtude. Seu dever é prover um ethos de paz e de liberdade. E é daí que decorre a legitimidade do Estado para determinar alguns limites aplicáveis a todos os cidadãos. Por exemplo, os limites da lei penal.

Parece haver, no entanto, grupos políticos completamente indiferentes ao âmbito próprio de atuação do Estado. Cada um deseja fazer com que suas ideias pessoais sejam encampadas pelo poder público. Isso é nítido na pretensão de proibir o casamento homoafetivo. Convictos de que a relação matrimonial deve se dar entre um homem e uma mulher, determinados grupos sociais querem que a lei estabeleça uma espécie de monopólio de sua específica concepção de casamento para toda a população. Tratase de uma interferência da esfera privada sobre o âmbito público, como meio de interferir na esfera privada dos demais cidadãos.

Nos casos de motivação ou influência religiosa, essa tentativa de interferência é facilmente identificada e denunciada, uma vez que ela viola abertamente o caráter laico do Estado, que deve atuar por razões públicas, e não por argumentos religiosos. No entanto, a laicidade do poder estatal pode também ser desrespeitada por interferências baseadas em concepções culturais ou filosóficas não generalizáveis a toda a população. Por exemplo, o STF não pode basear suas decisões em determinada ideia de moral, seja ela religiosa ou ateia.

Eis, por assim dizer, o outro lado do problema. Se nos últimos anos grupos religiosos têm tentado usar o Congresso para impor suas concepções de mundo a todos os demais, um fenômeno similar, apenas com sinais trocados, é visto no Judiciário, com grupos progressistas tentando impor suas pautas, isto é, sua visão de mundo, a toda a população, por meio de decisões do STF. Dois exemplos recentes: a ação pedindo que a Corte determine quando começa a vida apta a ser protegida pela lei penal e a ação postulando um novo marco legal para as drogas.

A pauta de costumes não está apenas no Legislativo. Também o Judiciário é chamado cada vez mais para se pronunciar sobre costumes, para dizer o que é certo e virtuoso. Tanto um caso como o outro são incompatíveis com a liberdade própria de um Estado Democrático de Direito, que deve respeitar os âmbitos social e individual.

Acordo natimorto

O Estado de S. Paulo

Anulação das primárias da oposição na Venezuela confirma má-fé e oportunismo do regime chavista

Durou exatos 13 dias o compromisso do regime de Nicolás Maduro com a oposição e os Estados Unidos de realizar eleições presidenciais “competitivas” em 2024. No último dia 30, para surpresa de ninguém, o assim chamado “Tribunal Supremo de Justiça” do país, totalmente controlado pelo regime chavista, suspendeu “todos os efeitos” das primárias eleitorais de 22 de outubro. Em paralelo, o Ministério Público pôs em ação seu aparato persecutório contra os integrantes da comissão organizadora do pleito. Acreditar que os benefícios econômicos da reabertura do mercado americano ao petróleo, gás e ouro venezuelanos seriam suficientes para o governo autoritário manter-se fiel à sua promessa só fazia sentido na esfera da ingenuidade – ou do pragmatismo de Washington em fechar os olhos e defender seu interesse de curto prazo.

O acordo firmado em Barbados, com intermediação do governo Lula da Silva, nasceu morto no último dia 17. O reconhecimento de Caracas a termos que poriam sob ameaça a sobrevivência do regime chavista só pode ser explicado pela má-fé e pelo oportunismo, diante da necessidade de os EUA fortalecerem suas reservas estratégicas de petróleo e gás. Nunca interessou a Nicolás Maduro o respeito a princípios básicos e caros à democracia. Menos ainda qualquer brecha para o desmonte de uma estrutura institucional corrupta e viciada, na qual o poder do Executivo, sob o amparo de braços armados e da servilidade do Legislativo e do Judiciário, se tornou inquestionável e praticamente absoluto.

A decisão do tal Tribunal Supremo, por si só, não surpreende. A rigor, anula a legitimidade da escolha da imensa maioria dos 2,5 milhões de eleitores nas primárias pela candidatura da ex-deputada María Corina Machado para o Palácio Miraflores. Perseguida pela cúpula chavista, assim como os demais nomes fortes da oposição, María Corina fora proibida em julho passado de disputar cargos públicos por 15 anos pela Controladoria-Geral da República – outro órgão a serviço de Maduro. A corte fez valer a impugnação.

Igualmente grave foi o anúncio da ProcuradoriaGeral de abrir investigações por “usurpação das funções eleitorais e de identidade, organização criminosa e lavagem de dinheiro” contra os integrantes da Comissão Nacional das Primárias. Formada por partidos de oposição, a comissão tomara para si a organização do pleito por uma razão inequívoca: a flagrante negligência e indisposição do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), dominado pelo chavismo, para convocar e realizar as primárias. Esperar por alguma iniciativa do conselho, no final das contas, poria sob risco qualquer candidatura da oposição em 2024. Confrontá-lo deu no que deu.

Como se vê há mais de duas décadas, a Venezuela chavista mata, na origem, qualquer possibilidade de contestação, nas urnas e nas ruas, ao regime que, como todo projeto autoritário, se supõe eterno. Clamar a Caracas pelo cumprimento do que assinou em Barbados é tão singelo como crer que o acordo seria um primeiro passo para a redemocratização da Venezuela. Pura perda de tempo.

Brasil precisa focar na solução de problemas

Correio Braziliense

O Brasil precisa parar de fabricar crises artificiais que interessam apenas a políticos e especuladores do mercado financeiro, que lucram com o aumento das incertezas

O Brasil precisa parar de fabricar crises artificiais que interessam apenas a políticos e especuladores do mercado financeiro, que lucram com o aumento das incertezas. O mercado que reagiu mal a esse ou àquele fato, dois dias depois, registrou máximas e mostra o real se valorizando. Nos últimos dias, deu-se a entender que há um ruído entre o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando, na verdade, os discursos de um e de outro confirmam que há hoje uma preocupação com as contas públicas e com o equilíbrio das mesmas. Parece que preferimos focar na árvore e nos esquecermos da floresta, e esse imediatismo não contribui para a resolução de forma efetiva dos problemas que existem no Brasil.

A cantilena em torno da meta de zerar o deficit público no próximo ano mostra um rigor que não foi adotado no caso do parâmetro estipulado para a inflação. A meta de inflação não foi cumprida nos últimos dois anos, o índice de preços estourou a meta e nem por isso houve uma crise de confiança no país. Da mesma forma, a alteração da meta de zero para 0,5% não será o fim do mundo, desde que o governo não abra mão de perseguir o equilíbrio fiscal, que é o que o ministro e o presidente têm mostrado, a despeito de afirmações de que há divergências entre eles.

Basta recuperar os fatos. Há um bom tempo, todo o mercado vem afirmando, assim como disse mais de uma vez a ministra do Planejamento, Simone Tebet, que alcançar o deficit zero no próximo ano será muito difícil. O presidente Lula apenas confirmou que será muito difícil zerar o deficit no próximo ano. Foi a gota d'água para especuladores colocarem água na fervura e ver nisso uma divergência do ministro com o presidente. Mas o próprio ministro informou que mostrou o problema a Lula e que, após reunião com ele, o presidente manifestou sua preocupação. Haddad não cravou o deficit zero, mas garantiu, mais de uma vez, que, enquanto for ministro, perseguirá o equilíbrio das contas públicas, assim como Lula garantiu aos parlamentares que não será criada nenhuma despesa nova.

Até agora, está mantido o compromisso do governo federal com o equilíbrio das contas públicas, e a incerteza vem da indefinição. O melhor a fazer é extirpar incertezas e, se houver mudança, que se faça logo e se defina um patamar entre 0,25% e 0,50% para que os agentes econômicos acomodem suas expectativas. O governo insiste em medidas de elevação de receita para não ter que cortar investimentos em obras e programas sociais, mas não dá nenhum sinal que possa cortar outras despesas ou buscar uma maior eficiência no gasto público para cortar desperdícios e desvios.

O importante é que se busquem soluções, mais do que apontar "falsos" problemas, porque o Brasil está em um momento favorável, como constatou Robin Brooks, economista-chefe do Instituto Internacional de Finanças, ao afirmar que o país está a caminho de se tornar a Suíça da América Latina, assim como a presidente do Conselho de Administração do Santander, Ana Botín, indicou a possibilidade de entrarmos em um ciclo virtuoso que não é visto há anos. A mesma visão têm empresários brasileiros do setor de infraestrutura. A sociedade brasileira precisa parar de fabricar crises e focar na solução dos seus problemas estruturais para efetivamente aproveitar a janela de oportunidades que economistas e banqueiros estrangeiros estão vendo para o país.

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