terça-feira, 28 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Com solidez técnica, no STF Dino deve deixar as polêmicas

O Globo

Sabatina precisa se guiar por aspectos jurídicos, sem que prevaleçam as controvérsias de natureza política

A indicação do ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) encerra quase dois meses de expectativa. Embora fosse uma escolha esperada — Dino sempre liderou a bolsa de apostas —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve o suspense quanto pôde. Jamais havia demorado tanto para fazer uma indicação. O nome de Dino não era unânime entre os petistas, mas contava com apoio dentro e fora do STF. No final, prevaleceu a preferência do presidente da República, como manda a Constituição.

Credenciais para ocupar o posto não faltam a Dino. Ele é autor de livros sobre Direito e foi juiz federal por mais de dez anos, período em que chegou a presidir a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe). Deixou a magistratura para entrar na política e tornou-se deputado federal pelo PCdoB. Em 2014, foi eleito governador do Maranhão, estado que governou por dois mandatos e pelo qual se elegeu senador no ano passado. Licenciou-se do cargo para assumir a pasta da Justiça.

No comando do ministério, viveu uma dualidade. Tecnicamente, sua atuação esteve acima da média. Desempenhou papel fundamental no combate ao golpismo do 8 de Janeiro, promoveu avanços na investigação do assassinato de Marielle Franco e na atuação da Polícia Federal contra o crime organizado. Politicamente, porém, envolveu-se num sem-número de disputas que contribuíram para consolidar uma imagem de polemista.

Enfrentou parlamentares de oposição em sessões do Congresso, criou atritos com o presidente da Câmara, entrou em embate com integrantes da CPI dos Atos Golpistas em torno das imagens gravadas por câmeras de segurança (liberadas só depois de ordem do STF) e ficou exposto na crise de segurança pública que atingiu os estados da Bahia e do Rio de Janeiro. Tornou-se uma estrela das redes sociais, pronto a opinar em toda sorte de assunto, da prisão de suspeitos de terrorismo às mudanças climáticas. Bloqueou quase uma centena de seguidores e se tornou alvo predileto do bolsonarismo.

É natural que a presença de oposicionistas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado traga certo ar belicoso para a sabatina de Dino. Mas não deveria ser esse o espírito da avaliação dos senadores sobre a indicação. A função da sabatina é descobrir se ele satisfaz às exigências constitucionais para ocupar o cargo: notório saber jurídico e reputação ilibada. Os senadores têm de fazer isso por meio de uma arguição robusta, mas as questões devem ser guiadas pelos aspectos técnicos e jurídicos. Não devem se deixar influenciar pelas inclinações ideológicas, pela verve de Dino ou por vendetas pessoais.

Dino está longe de ser uma unanimidade mesmo entre os governistas. Mas suas qualificações são inegáveis. É pouco provável que não consiga reunir os 41 votos necessários para ocupar a cadeira do Supremo aberta pela aposentadoria da ministra Rosa Weber. Uma vez nela, seu desafio será demonstrar a todos ter deixado de atuar como um político para voltar a agir com o conhecimento, a serenidade, o destemor e, sobretudo, a imparcialidade exigidos pelo cargo para o qual foi aprovado em concurso pela primeira vez aos 26 anos — o de juiz.

Javier Milei emite sinais positivos de moderação antes da posse

O Globo

Presidente eleito argentino adota tom pragmático no campo econômico e faz gesto de reaproximação com Brasil

Os primeiros passos do presidente eleito argentino Javier Milei têm sido, até o momento, positivos. Passada apenas uma semana do segundo turno em que derrotou o peronista Sergio Massa por vantagem expressiva com um discurso ultraliberal, o populista Milei surpreendeu ao descer rapidamente do palanque. Aparentemente preocupado com a tarefa árdua de formar governo e aparar arestas criadas na campanha, avançou na economia e nas relações exteriores.

No domingo, embarcou para os Estados Unidos com Luis Caputo, economista ligado ao ex-presidente Mauricio Macri cotado para assumir o Ministério da Economia. Caputo é crítico de ideias descabidas como a dolarização e a extinção do Banco Central. Os dois manterão encontros com autoridades econômicas dos Estados Unidos e representantes do Fundo Monetário Internacional (FMI), credor da dívida de US$ 43 bilhões com a Argentina. A preocupação imediata é uma parcela que vence no início de 2024.

Também no domingo, o governo eleito deu sinais de moderação em relação ao Brasil. A futura chanceler, Diana Mondino, desembarcou em Brasília para encontrar o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. Em mãos, trouxe uma carta em que Milei convida o presidente Luiz Inácio Lula da Silva para sua posse, em 10 de dezembro. “Sabemos que nossos dois países estão estreitamente ligados pela geografia e história e, a partir disso, desejamos seguir compartilhando áreas complementares, como integração física, comércio e presença internacional, que permitam que toda essa ação conjunta se traduza, para os dois lados, em crescimento e prosperidade”, diz o texto.

O fato de Mondino ter escolhido o Brasil como destino da primeira viagem internacional depois de indicada ao cargo e o teor da carta ajudaram a desarmar os ânimos. Na campanha, Milei se aproximou de Jair Bolsonaro, não perdeu a oportunidade de chamar Lula de “comunista” e de criticar o Mercosul. Lula deu sinais indiretos, mas claros, de apoio ao peronista Massa. Contados os votos, restou a dúvida se haveria um gesto de reconciliação com o governo brasileiro. Dado o primeiro passo, Lula e o Itamaraty não deveriam desperdiçar a oportunidade de marcar presença na posse em Buenos Aires.

A eventual ida de Bolsonaro não é motivo para Lula declinar o convite. O ex-presidente não tem mais nenhum poder para definir o relacionamento do Brasil com seu principal sócio no Mercosul. Essa prerrogativa foi concedida a Lula em 2022 pelas urnas. Espera-se que ele a exerça em sua plenitude. Na posse de Lula, o presidente uruguaio Luis Lacalle Pou, de centro-direita, foi a Brasília acompanhado dos ex-presidentes José “Pepe” Mujica, de esquerda, e Julio María Sanguinetti, de centro, demonstrando que relações entre países não devem assumir cores ideológicas. De Bolsonaro, que não passou a faixa a Lula e saiu do país dois dias antes da posse, não dá para esperar o mesmo comportamento republicano dos estadistas uruguaios. Se comparecer à posse, o incomodado deve ser apenas ele.

Envelhecimento da população desafia a educação dos jovens

Valor Econômico

Se o acesso dos alunos ao ensino médio técnico profissional for triplicado, o PIB brasileiro poderia aumentar até 2,32%

Quando o IBGE divulgou, há um mês, o envelhecimento da população brasileira constatado pelo Censo de 2022, o foco principal das análises de especialistas e autoridades foi a preocupação com as implicações na saúde. Todos alertaram para a necessidade de expansão do atendimento especializado, dada a maior propensão a problemas circulatórios, neurológicos e oncológicos dos idosos. Mas o desafio tem muitas faces.

O resultado do Censo 2022 surpreendeu. Depois da pandemia da covid-19 se esperava a redução da população mais velha. Mas foi constatado o aumento do número de pessoas com mais de 65 anos, que passou de 7,4% da população total em 2010 para 10,9% dos 203,1 milhões de brasileiros de 2022, totalizando 8,1 milhões a mais. Em pouco mais de uma década, o crescimento dessa faixa etária foi de 57,4%. No outro extremo, o percentual de habitantes com zero a 14 anos caiu de 24,1% para 19,8%, o equivalente a uma diminuição de 5,8 milhões de pessoas, ou 12,6%. A maior parte da população está na faixa de 15 a 64 anos, com 69,3% do total em 2022 em comparação com os 68,5% de 2010.

Visto de outro ângulo, o índice de envelhecimento também fica evidente: o número de pessoas com 65 anos ou mais de idade, em relação a um grupo de 100 crianças de zero a 14 anos, ficou em 55,2 no ano passado, quase o dobro dos 30,7 do Censo de 2010, o maior da série histórica, iniciada em 1940. A aceleração entre 2010 e 2022 também foi a mais forte da série.

José Eustáquio Diniz, ex-professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, projeta que o Brasil vai envelhecer bem mais rapidamente do que a França, por exemplo, e levar um quarto do tempo do país europeu para chegar a 28% da população com mais de 65 anos. A França vai atingir essa marca em 2070, e o Brasil, em 2062, o que revela a velocidade da transição demográfica brasileira (Valor, 30/10).

Há nuances pelo país. As regiões Norte e Nordeste são as mais jovens, com 25% e 21% da população com até 14 anos, respectivamente. As regiões mais velhas são Sudeste e Sul, com porcentuais de idosos de 12%. A idade mediana também reflete esse quadro: ela é de apenas 26 anos em Roraima e chega a 38 no Rio Grande do Sul.

De toda forma, a constatação é que o bônus demográfico ficou para trás, de acordo com especialistas, o que exige providências. A sensação que fica é que o próprio governo se surpreendeu e agora corre atrás para cobrir as lacunas. Em artigo no Valor (24/11), o presidente da Fundação Itaú, que congrega o Itaú Social, Itaú Educação e Trabalho e Itaú Cultural, Eduardo Saron, jogou o olhar para a necessidade de se preparar a população mais jovem para a transição etária, uma vez que terá a tarefa cuidar dos mais velhos e de financiar seu atendimento de saúde e previdenciário.

O tamanho do desafio pode ser medido pelo expressivo grupo de jovens de 18 a 24 que não estudam nem trabalham, os chamados nem-nem. De 37 países analisados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é o segundo com maior proporção de nem-nem depois da África do Sul, com 36% dessa faixa etária.

A parcela dos jovens que irá sustentar a transição demográfica só estará pronta para a tarefa com investimento consistente em educação, salienta Saron. Vários estudos apontam para esse caminho. Um deles, feito pelo Insper a pedido do Itaú Educação e Trabalho, assegura que se o acesso dos alunos ao ensino médio técnico profissional for triplicado, o PIB brasileiro poderia aumentar até 2,32%, graças à maior empregabilidade e ganhos salariais dos profissionais. Estima-se que o salário de quem cursou o técnico é 12% superior ao de quem fez apenas o médio.

Esse é um dos motivos pelos quais a procura por esses cursos é alta. Mas a oferta é baixa. Na verdade, o Brasil está distante da meta do Plano Nacional de Educação, que é ter 4,8 milhões de vagas no ensino técnico até 2024. Em 2022, só 2 milhões eram matriculados no técnico (O Globo, 27/11). Para dobrar a oferta de ensino técnico seria preciso reforçar os investimentos públicos destinados ao ensino médio dos atuais 1,18% do PIB para 1,27% e chegar a 1,35% para triplicar as cadeiras, projeta o Insper. Em consequência, apenas 8% dos estudantes que concluem o ensino médio no Brasil se formaram pelo técnico, em comparação com 37% nos países da OCDE.

A ampliação da educação profissional e tecnológica é tida como prioridade pelo Ministério da Educação, mas não foi bem abordada na reformulação do ensino médio proposta pelo governo Lula. O projeto estabeleceu 2,1 mil horas para disciplinas básicas e 900 horas para as técnicas, ao longo de três anos. No ensino médio regular, a formação básica ficou com 2,4 mil horas. Cursos na área de tecnologia da informação e saúde, que estão entre as carreiras mais promissoras do futuro, inclusive pelo envelhecimento da população e pela exigência de maior produtividade, demandam pelo menos 1,2 mil horas.

O MEC, por sua vez, pede aos Estados que invistam em ensino integral para oferecer modalidades técnicas que demandam maior carga horária. Esse investimento é vital: o estudo do Insper mostra que traz retorno futuro para a economia e para a sociedade.

Viés de seleção

Folha de S. Paulo

Hipertrofia do STF, onde atua também procurador-geral, incentiva sua politização

Pesquisadores por vezes deparam com desequilíbrios em suas amostras estatísticas, quando elas apresentam um perfil demográfico distinto do da população a ser representada e estudada. A essa anomalia se dá o nome de viés de seleção.

Entre as causas do problema costumam estar estímulos que concorrem para o recrutamento desproporcional de certos grupos. Mutatis mutandis, o processo de escolha de ministros do Supremo Tribunal Federal padece de viés de seleção.

Acercam-se da nomeação mais pessoas enredadas no jogo da política partidária —e na teia das relações pessoais do presidente da República— do que seria desejável para a arquitetura institucional.

Não foge a essa regra a indicação do titular da pasta da Justiça, Flávio Dino (PSB-MA), para a vaga aberta pela aposentadoria de Rosa Weber, após quase dois meses de imotivada demora do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Embora egresso da magistratura federal, Dino há mais de 15 anos dedica-se apenas à política. Chefiou a Embratur na gestão Dilma Rousseff, elegeu-se governador do Maranhão em 2014 e conquistou um novo mandato quatro anos depois.

Se for aprovado pela maioria dos senadores, será o primeiro ex-governador a atuar como ministro do tribunal constitucional brasileiro. Não foi por seus atributos judicantes que foi ungido por Lula.

Numa corte cujos integrantes tiveram poderes e influência hipertrofiados nos últimos anos, tudo conspira para que a fidelidade ao grupo político e à pessoa do presidente que faz a nomeação salte à frente como critério de indicação.

Basta comparar com as escolhas da primeira passagem de Lula pelo Planalto para notar como a lealdade política tornou-se requisito preponderante. Passaram para o segundo plano as preocupações com a qualidade da obra jurídica e a diversidade de gênero e de origens sociais dos candidatos.

Também se tornou menos mediada a escolha do procurador-geral da República. O nomeado de Lula, Paulo Gonet, não constava de nenhuma lista votada por seus pares. Emergiu de obscuras e intensas pressões de bastidores das quais não se furtaram ministros da corte suprema. A parte que julga fez lobby para definir a parte que acusa.

Desse modo a politização na cúpula da operação do Direito no Brasil tende a se perpetuar. O sistema seleciona vocacionados para a defesa de um líder político, os escolhidos na corte atuam desabridamente para ampliar suas prerrogativas, e os líderes do futuro são estimulados a indicar quem os proteja.

Desvirtua-se nessa espiral de disputa por poder o papel precípuo do Supremo, que é o de arbitrar com equidistância e fidelidade à Carta as disputas cruciais da República.

Cuidado com a dengue

Folha de S. Paulo

Sorotipo 3 no país eleva risco de epidemia grave; urge incorporar vacina ao SUS

Ciência e estatísticas são bons conselheiros em políticas públicas. Com elas, é possível criar estratégias eficientes e se antecipar a problemas. A dengue é um deles.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, as taxas da doença se multiplicaram por oito em todo o mundo desde o ano 2000 devido a três fatores: mudanças climáticas, aumento de circulação de pessoas e urbanização crescente.

Com o fenômeno meteorológico El Niño e o aquecimento global, a OMS emitiu alerta para alta de casos em 2023 na América Latina e na Ásia e disparada nos próximos anos no sul dos EUA e da Europa e em novas regiões da África.

No Brasil, desde 2000, o número de casos só cresce, passando de 4,5 milhões na primeira década do século para 9,5 milhões na seguinte. Só o primeiro semestre deste ano já registra 1,4 milhão de casos, ante 1,5 milhão em todo 2022.

Ainda mais preocupante, foram registrados 8 casos do sorotipo 3 neste ano —4 deles neste mês em São Paulo. O vírus da dengue tem 4 sorotipos e o 3 não causa epidemias aqui há mais de 15 anos.

O problema é que o indivíduo só fica imunizado para o tipo que já contraiu. Quando é contaminado por um novo, pode desenvolver sintomas mais graves que levam à hospitalização e até à morte. Se a população está há muito tempo sem contato com o tipo 3, há risco de epidemia severa em 2024.

A vacina japonesa Qdenga age contra os 4 sorotipos e foi aprovada para venda no país pela Anvisa em março, mas com preços que variam entre R$ 300 e R$ 800. Atualmente, está presa num labirinto burocrático para chegar ao SUS.

A pasta da Saúde diz aguardar informação da empresa Takeda para concluir o processo, mas até 8 de novembro a farmacêutica afirmava não ter recebido solicitação.

Após receber os dados, a comissão responsável pela introdução de novas drogas no SUS ainda tem 180 dias para deliberar.

Em março, o ministério anunciou a instalação de um Centro de Operações de Emergências de Arboviroses para controle e redução de casos graves e óbitos em parceria com estados e municípios.

A medida é válida, mas é preciso agilizar a incorporação da vacina no SUS. Não se trata de panaceia, mas de uma das frentes de combate à doença preconizadas pela OMS —ao lado de monitoramento de casos, incremento da estrutura das redes de saúde e universalização do saneamento básico.

Justa desconfiança sobre o BNDES

O Estado de S. Paulo

Petistas já o usaram para favorecer empreiteiras camaradas e regimes companheiros, e por isso é justo suspeitar da volta dos financiamentos no exterior, mas não se deve proibi-los

O calafrio é inevitável. A tentativa do governo de Lula da Silva de oficializar o retorno dos financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obras de empreiteiras brasileiras no exterior, por meio de projeto de lei recentemente enviado ao Congresso, faz lembrar os tempos tenebrosos em que o banco foi usado pelos governos petistas para favorecer empreiteiras camaradas e regimes companheiros.

Desde o início do ano tramitam na Câmara quatro projetos de deputados de oposição propondo justamente o contrário: proibir o BNDES de fazer empréstimos para serviços no exterior.

Os parlamentares citam casos escandalosos, como o do Porto de Mariel, construído pela Odebrecht em Cuba sob a alegação de que serviria como espécie de escala estratégica para as exportações brasileiras. Com financiamento de US$ 638 milhões do BNDES, o porto está prestes a completar dez anos. Apenas uma parcela mínima do empréstimo foi paga, Cuba ainda deve US$ 520 milhões, e o prometido uso pelo Brasil também não se concretizou.

O caso cubano é apenas um dos tantos exemplos de desvirtuamento da função do BNDES, e faz sentido que se desconfie das intenções do governo petista ao restabelecer esse tipo de financiamento do banco. No entanto, também não é desejável que se proíba totalmente essa atuação do BNDES, porque o financiamento à exportação de bens e serviços de engenharia no exterior é necessário. O programa, lançado em 1998, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, estimula empresas nacionais e gera empregos no Brasil. Se bem formulados – e, sobretudo, se a avaliação de risco for real, e não movida por considerações ideológicas –, esses contratos são quase sempre vantajosos para o País.

Agora, o Tribunal de Contas da União (TCU) participou do desenvolvimento da nova proposta em conjunto com o corpo técnico do BNDES. Proibiu, por exemplo, novos financiamentos a obras em países inadimplentes com o Brasil. A intenção é criar uma espécie de marco regulatório, como disse ao Broadcast/Estadão o diretor de Comércio Exterior do banco, José Gordon. O uso de padrões internacionais utilizados pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) dá à ferramenta um aspecto mais moralizador.

O ponto negativo é justamente o vício da gestão petista, que naturalmente cerca de suspeitas as iniciativas desse tipo. O dinheiro público destinado a promover o desenvolvimento não deve, sob qualquer pretexto, servir de incentivo a projetos político ideológicos, não importa quais sejam. Frisando queéo governo federal que estabelece as operações por meio de sua administração direta eque as condições de financiamento são ditadas pelo BNDES, as dúvidas sobre que tipo de tratamento será dado a esses empréstimos, desde o prazo até os juros, são muitas.

E em nada ajudam declarações como adop residente do banco, Aloizio Mercadante, desdenhando da consequência dos calotes da Venezuela, de Cuba e de Moçambique, que, juntos, somam US$ 1,12 bilhão, ou cerca de R$ 5,7 bilhões pelo câmbio atual. Em outubro, quando participava de um fórum em Paris, ele reagiu com irritação ao ser questionado sobre a inadimplência desses empréstimos: “Vocês (jornalistas) ficam com esse nhenhenhém, que é uma coisa absolutamente irrelevante para o BNDES”.

Ao contrário do que disse o sr. Mercadante, nenhuma inadimplência é irrelevante para banco nenhum, sobretudo para o BNDES, um banco público de fomento que tem como único acionista o Tesouro Nacional. No caso específico de financiamento de serviços no exterior, o Fundo de Garantia à Exportação (FGE), vinculado ao Ministério da Fazenda, assume eventuais calotes. Ou seja, o dinheiro para arcar com o prejuízo de financiamentos malfeitos é dos contribuintes, tenham ou não qualquer simpatia por Cuba, Venezuela e quejandos.

Os conflitos da indústria de Inteligência Artificial

O Estado de S. Paulo

Governança conturbada da mais icônica empresa de IA alerta para a urgência de um quadro regulatório estabelecido por representantes eleitos e fiscalizado por agências independentes

O ano de 2023 será lembrado como o “momento Sputnik” da corrida pela Inteligência Artificial (IA). O análogo do satélite soviético é o ChatGPT, com quem dezenas de milhões de pessoas “conversam” todos os dias, e a face humana dessa revolução é o CEO da sua desenvolvedora, a OpenAI, Sam Altman.

Nos últimos dias, o mundo acompanhou atônito a odisseia de Altman. No dia 17, o conselho da OpenAI o defenestrou alegando que ele “não era consistentemente transparente” – sem que a alegação fosse ela mesma consistentemente transparente. No dia 19, a Microsoft, com participação de 49% na empresa, convidou Altman a liderar uma divisão de IA. Mas, após um motim dos funcionários e pressões dos investidores, no dia 21 um novo conselho foi criado e Altman foi reinstalado.

O psicodrama corporativo expôs dilemas profundos no mundo da IA, personificados, como disse a revista The Economist, nos “doomers”e “boomers”.

Para os primeiros, o desenvolvimento da IA sem freios e contrapesos amplia os riscos de que ela leve à perdição (doom) da humanidade. Para os segundos, a aceleração desenfreada (boom)

rumo às tecnologias mais eficientes gerará naturalmente as mais benéficas. A saga da OpenAI é como um microcosmo desse embate. Ela foi criada em 2015 como um laboratório não lucrativo para desenvolver uma “superinteligência” segura. Mas logo ficou claro que para isso precisaria de investimentos massivos, e uma subsidiária comercial foi criada para monetizar ferramentas de IA.

Essa estrutura híbrida encarna conflitos intrínsecos não só da indústria de IA, como das indústrias de tecnologias digitais e de qualquer outra. O desenvolvimento de produtos depende de investimentos e, quanto maior a perspectiva de lucro, maiores os investimentos. Ganhos privados não são incompatíveis com o bem comum, mas eventualmente podem ser. Assumindo que a “mão invisível” do mercado baste para gerar produtos melhores e mais baratos, ela não garante que servirão ao interesse comum. Por maior que seja a procura e por mais lucrativa que seja a oferta de um produto, isso não significa que ele seja benéfico e deva ser lícito. Aqui entra a mão visível do Estado. Para a maioria dos produtos, essa mão só intervém para garantir direitos elementares do consumidor. Mas, quanto maiores os riscos (por exemplo, na indústria farmacêutica ou aeronáutica), maior é sua atuação.

Os ambientalistas levaram décadas para conscientizar a humanidade dos riscos das emissões desreguladas de carbono. Com a IA é diferente. Muito antes dos rudimentos da computação se materializarem em máquinas, a ficção científica já disseminara pavores apocalípticos no imaginário popular. Ninguém ignora suas ameaças. Neste ano, lideranças públicas e tecnológicas – incluindo Altman – advertiram que “mitigar os riscos da IA deve ser uma prioridade global junto com outros riscos em escala social como pandemias e guerra nuclear”. A questão é como essa mitigação deve ser formalizada em regras, como devem ser aplicadas e quem as aplicará.

Cotejando propostas de entidades públicas e privadas, o instituto Future of Life identificou três áreas de ação para as autoridades: estabelecer registros de experimentos gigantes em IA, mantidos por agências independentes; construir sistemas de licenciamento para fazer com que laboratórios provem que seus sistemas são seguros antes de empregá-los; e tomar medidas para garantir que desenvolvedores respondam legalmente pelos danos de seus produtos. Assim como a cooperação internacional logrou delimitar a clonagem e banir armas biológicas, a comunidade global deveria criar uma agência internacional de auditoria da IA.

Quanto maior a quantidade e a potência dos veículos da indústria automobilística, mais sofisticados devem ser seus freios e mecanismos de segurança, e mais importante é um Estado ativo para desenhar e aplicar regras de tráfego e prover boa infraestrutura. Analogamente, as empresas de IA poderão se mover mais rápido se suas máquinas tiverem freios eficientes para cada usuário e se submeterem a bons regulamentos em prol da coletividade.

Os gestos de Milei

O Estado de S. Paulo

Carta de Javier Milei a Lula e visita da futura chanceler argentina indicam disposição ao diálogo

A visita da futura ministra das Relações Exteriores da Argentina, Diana Mondino, ao chanceler Mauro Vieira abre a perspectiva de superação de um mau começo nas relações entre os governos de Javier

Milei e de Lula da Silva. Nessa primeira conversa, no último dia 26 no Itamaraty, Mondino teve o cuidado de levar uma carta do presidente argentino eleito a Lula, na qual oficialmente expressou o desejo de tê-lo presente na cerimônia de sua posse, em 10 de dezembro. Ao destacar na missiva sua intenção de realizar um “trabalho frutífero” e a “construção de laços” com o Brasil, Milei sinaliza que “El Loco”, o personagem que ganhou a eleição, talvez tenha dado lugar a alguém bem menos desequilibrado.

Mesmo que não derive de sua própria convicção, a mensagem não deixa de expressar um bem-vindo entendimento de seu entorno político. É o que importa.

Mondino não omitiu seu esforço para desfazer os atritos causados por insultos pessoais de Milei a Lula e pelas suas declarações extemporâneas contra o comércio com o Brasil e a permanência da Argentina no Mercosul – todos turbinados pelo recente convite do argentino ao ex-presidente Jair Bolsonaro, adversário figadal de Lula, para comparecer a sua posse. Ao ressaltar a importância conferida pelo governo de Milei à conclusão do tratado de livre comércio entre o bloco sul-americano e a União Europeia (UE), a futura chanceler aplacou temores crescentes em Brasília de uma guinada unilateral na política comercial argentina. Mas não chegou a sugerir um diálogo azeitado entre Lula e Milei, o que ninguém de fato espera. “Uma coisa é a crítica à ideologia; e outra coisa, à pessoa. Temos de separar o Estado de governo e de pessoas. A parceria continuará da melhor forma e o mais rapidamente possível”, afirmou ela.

Tais mensagens denotam a compreensão de Mondino e da equipe de transição de governo sobre o grau elevado de integração entre as economias de seu país e do Brasil e a importância do diálogo e da cooperação bilateral para o êxito do futuro programa de governo argentino. Já é um bom começo, dado o cenário previsto de animosidade permanente. A receptividade do Itamaraty às escusas, ainda que implícitas, mostrou-se igualmente significativa e alinhada ao interesse brasileiro. “O que foi dito na campanha é uma coisa, o que acontece durante o governo é outra”, afirmou Vieira, em claro sinal de que novos insultos, a partir de agora, terão outro peso.

Seria ingênuo imaginar que as reações do governo brasileiro às fanfarronices de Milei não tenham surtido efeitos na reacomodação do tratamento ao Brasil. As movimentações de Lula da Silva com líderes europeus em prol da conclusão do acordo Mercosul-UE antes da posse de Milei não passaram despercebidas em Buenos Aires. Está claro que Milei parece ter se dado conta – ou, o que é mais provável, foi convencido pelo grupo político de centro-direita que foi decisivo para sua vitória – de que a Argentina não pode se dar ao luxo de brigar com seus principais parceiros comerciais.

COP28 entre a vida e a morte do planeta

Correio Braziliense

Nas mãos dos governantes está a solução para preservar e garantir a perenidade da vida no planeta. Cabe aos cidadãos, em todas as partes do mundo, pressioná-los pela decisão correta

Nos últimos 40 anos, as mudanças do clima, com o aquecimento e a ocorrência de eventos extremos no planeta, tornaram-se mais acentuadas. Não faltaram alertas sobre os impactos das alterações na vida de todos os seres da Terra. A voz dos cientistas, dos climatologistas e dos ambientalistas não foi, na devida medida, considerada pelas sociedades e pelos governantes. Manteve-se o nível de exploração, cada vez maior, dos recursos naturais, ignorando as consequências do comportamento predatório, sem preocupação de promover ações compensatórias, como a recuperação das áreas afetadas pelas atividades voltadas aos mais diferentes setores da economia.

Na próxima quinta-feira, dia 30, em Dubai, a maior cidade dos Emirados Árabes, ao sul do Golfo Pérsico, começará a 28ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28) e se estenderá até 12 de dezembro. Estarão reunidos líderes dos países que assinaram o acordo climático original da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1992, durante a Cúpula da Terra, no Rio de Janeiro. Ao longo dessas décadas, os esforços e cumprimento de metas foram pífios. Isso se comprova com o agravamento contínuo dos fenômenos climáticos extremos que afetam os países e aprofundam as desigualdades socioeconômicas, deixando um lastro de fome, miséria e perdas de vidas em todos os continentes.

A expectativa é de que não será um debate fácil, ante os conflitos de interesses econômicos que estarão em jogo. Como construir um acordo para eliminar a emissão de gases de efeito estufa que aceleram o aquecimento global quando o petróleo é a base da economia dos Emirados Árabes e de outros países?

Recente relatório da Oxfam — Igualdade Climática: um Planeta para os 99% — mostra que "o 1% mais rico da população mundial produziu tanta poluição em 2019 quanto cerca de 5 bilhões de pessoas (dois terços da humanidade)". O estudo avalia que "as descomunais emissões" dessa parcela mais rica em 2019 "são suficientes para causar 1,3 milhão de mortes relacionadas ao calor entre 2020 e 2100".

Para alguns especialistas e observadores, os dados revelam uma incongruência em relação às decisões do Acordo de Paris, subscrito por 195 países em 2015, de redução em 43% das emissões de gases de efeito estufa por meio da eliminação das fontes fósseis de energia — petróleo, gases e queima de carvão —, como chave para conter o aquecimento global. Sem isso, avaliam, seria trafegar rumo ao colapso do planeta.

Tem sido alto o preço pago pela humanidade pela indiferença e pelo descaso com os alertas. No Brasil, onde o negacionismo em relação à ciência é bem acentuado, ocorreram episódios gravíssimos. Em setembro último, no Rio Grande do Sul, os ciclones causaram danos imensuráveis em 100 cidades, deixando centenas de famílias desabrigadas e 47 mortes. Novembro chegou com uma onda de calor. Em algumas cidades, como o Rio de Janeiro, a sensação térmica foi superior a 58ºC. Em todas as regiões do país, não foi diferente, provocando um desconforto antes não sentido pelas pessoas, levando várias à hospitalização e até à morte.

No setor produtivo, a agricultura, sobretudo o agronegócio, vê as projeções de colheita e faturamento frustradas, seja pela estiagem, seja pelas chuvas torrenciais. Os dois extremos — seca e excesso de água — vão repercutir na produção de alimentos e na elevação do custo de vida em um Brasil com mais de 21,1 milhões de famintos — pouco mais de 10% da população do país. Mais uma vez, o pantanal mato-grossense arde em chamas, com perdas inestimáveis do patrimônio natural que impactarão, como sempre ocorre, outros biomas.

Todos estudos e projeções indicam e reforçam os alertas do passado de que a vida na Terra depende da eliminação dos gases fósseis e de uma virada radical no sentido de adotar as fontes limpas de energia — solar, eólica, hídrica —, e de estancar os desmatamentos e quaisquer outras atividades hostis ao patrimônio natural. Nas mãos dos governantes está a solução para preservar e garantir a perenidade da vida no planeta. Cabe aos cidadãos, em todas as partes do mundo, pressioná-los pela decisão correta.

 

 

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