segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Feminicídios em alta desafiam o poder público

O Globo

Primeiro semestre deste ano registrou maior incidência do crime desde o início da série histórica

São perturbadoras as estatísticas de feminicídio compiladas pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). O levantamento, com base nos dados das secretarias estaduais, registra 722 feminicídios no Brasil no primeiro semestre de 2023, maior número desde o início da série histórica, em 2019. Apesar das boas intenções de governos, ONGs e movimentos sociais, o país ainda não sabe como lidar com o flagelo.

O número representa um aumento de 2,6% na comparação com os 704 feminicídios no primeiro semestre do ano passado. Pode não parecer muito, mas o percentual esconde disparidades que demandam ação. No Sudeste, única região a apresentar crescimento nos casos, a alta foi de 16,2%, de 235 para 273. Das 27 unidades da Federação, 14 registraram mais feminicídios, 12 menos e uma manteve estabilidade. Na comparação, a maior alta percentual ocorreu no Distrito Federal (250%).

O cenário esboçado no primeiro semestre acentua a tragédia de 2022, quando o país registrou 1.437 feminicídios, aumento de 6,1% em relação a 2021. A cada dia, em torno de quatro mulheres são assassinadas no Brasil em circunstâncias que envolvem violência doméstica, familiar ou discriminação. Tais números traduzem dramas relatados cotidianamente no noticiário. As histórias são parecidas: companheiros ou ex, inconformados com o fim do relacionamento ou com qualquer vestígio de independência, resolvem silenciar mulheres à bala.

Não há dúvida de que governo e sociedade têm agido para estancar a barbárie. As leis Maria da Penha, de 2006, e do Feminicídio, de 2015, são exemplos de aperfeiçoamento do arcabouço legal para coibir a violência contra as mulheres. A legislação se tornou mais rígida. Canais oficiais para denúncias de agressões foram criados, campanhas educativas se multiplicaram, movimentos sociais aumentaram a pressão sobre as autoridades.

Mais mulheres têm procurado o Judiciário para se blindar contra seus agressores. Segundo dados do FBSP, no ano passado foram concedidas mais de 1.200 Medidas Protetivas de Urgência por dia, aumento de 13,7% em relação ao ano anterior. Em tese, elas impedem que companheiros e ex-companheiros se aproximem das vítimas.

Infelizmente, os números em ascensão mostram que as ações, embora louváveis, não têm sido suficientes para conter os crimes. Mesmo com Medidas Protetivas, mulheres são assassinadas. É preciso fazer mais. Primeiro, é essencial se debruçar sobre as estatísticas e agir onde o problema é mais agudo, uma vez que o aumento dos feminicídios não é homogêneo. Há estados que contribuem para elevar as estatísticas, caso de São Paulo, onde eles aumentaram 33,7%.

Além disso, é preciso incentivar as denúncias — em muitos casos, as vítimas não registram ocorrência ou não pedem Medida Protetiva — e melhorar a rede de acolhimento. É fundamental ainda adotar os programas bem-sucedidos, e não são poucos. As patrulhas Maria da Penha, que fazem rondas nas residências de mulheres ameaçadas, estão em curso em vários estados com bons resultados. No Rio Grande do Sul, a Justiça tem autorizado o uso de tornozeleiras eletrônicas para monitorar agressores. As mulheres ameaçadas recebem alertas pelo celular quando eles se aproximam. Soluções existem. O que não se pode é achar a epidemia de feminicídios algo normal.

Incêndios florestais reforçam a necessidade de política ambiental

O Globo

Secas extremas serão mais frequentes, facilitando a propagação do fogo. Precisaremos estar preparados

Os incêndios florestais, em meio às ondas de calor, precisam entrar na agenda das autoridades. Do dia 8, quando a temperatura começou a subir, até o último dia 14, houve 6.395 incêndios, 74% a mais que nos mesmos dias do ano passado e 307% acima de 2021. Ainda que continue a haver queimadas em que agricultores perdem o controle das chamas, não há evidências de que estejam em alta (a temporada de queimadas costuma terminar em setembro). E também existe a combustão natural, sobretudo em razão da queda de raios na vegetação. No solo seco, fica difícil conter qualquer foco de incêndio. Independentemente da origem do fogo, seja natural, seja queimada, a principal causa do descontrole hoje é a seca.

As chamas começaram a arder há dez dias no Parque Estadual Rio Negro, em Corumbá (MS), e deixaram extenso rastro de fogo que queimou 60 mil hectares até atingir a BR-262, que liga Vitória (ES) a Corumbá. Normalmente, não ocorrem queimadas em novembro na região, por ser o início da temporada de chuvas. Segundo Marcio Yule, coordenador do Prevfogo, centro técnico de incêndios florestais do Ibama em Mato Grosso do Sul, não havia preocupação até agosto. A ocorrência de incêndios estava 25% abaixo da média histórica, seguindo a tendência nacional de queda no desmatamentos (quem desmata também costuma usar fogo para limpar o terreno). Mas a seca acabou com a tranquilidade.

No início da semana passada, um incêndio em torno do Parque Nacional do Pantanal —maior preocupação,segundo Yule — superava o de Corumbá. Desde o final de outubro, já destruiu 200 mil hectares. Voltam a aparecer fotos de jacarés calcinados, aviso de que faltará alimento para as onças-pintadas, que tornarão a rondar o que resta dos rios e lagoas atrás do que comer. Devido ao aquecimento global, a situação tende a se repetir com mais frequência, mesmo nos períodos em que o fenômeno El Niño não for intenso.

O fogo também preocupa em Santarém e Altamira, no Pará. Em outubro, incêndios na Amazônia jogaram cinzas sobre Manaus. Também há combustão em Minas, Bahia, Tocantins, Mato Grosso, Rondônia, Maranhão e Piauí. Mesmo com a queda do desmatamento na Amazônia, ainda há incêndios, diz Mariana Napolitano, diretora de Estratégia da WWF-Brasil. A região enfrenta a seca mais severa em 120 anos. A floresta, ressecada, mais degradada, queima mais fácil.

Um plano existente desde 2021 envolve a abertura de aceiros e construção de açudes artificiais (corixos) para facilitar a luta contra as chamas. Infelizmente, apenas um corixo foi feito. As três instâncias de governo deveriam elaborar, em articulação com o setor privado, políticas contra os incêndios florestais. Ao mesmo tempo que se combate o desmatamento, deve-se alertar os agricultores sobre os riscos das queimadas, além de investir nas tecnologias de prevenção e combate ao fogo. As alterações no clima devem tornar mais frequentes as secas extremas, bem como as chuvas torrenciais. Precisaremos estar preparados.

Governo ganha tempo para definir a meta fiscal

Valor Econômico

Os argumentos para convencer parlamentares a fechar buracos fiscais se enfraqueceram diante da perspectiva de que o governo tolerararia déficits fiscais

Não foi tomada decisão final sobre qual será a meta fiscal a ser perseguida pelo governo em 2024. Há uma operação de endosso do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, atropelado súbita e inesperadamente pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que veio a público dizer que o objetivo fiscal não precisaria ser zero e que um déficit de 0,25% ou 0,5% do PIB nada significaria. “Eu não vou estabelecer uma meta fiscal que me obrigue a começar o ano fazendo corte de bilhões em obras que são prioritárias para o país” (27 de outubro). Em poucas palavras, o presidente tirou o chão do principal ministro do governo, em pleno esforço para conseguir apoio a medidas que ampliem as receitas, além de desmoralizar um novo regime fiscal que sequer estreou ainda. Lula quase conseguiu desfazer aquilo que o novo regime tentou construir: credibilidade e previsibilidade.

O governo tenta corrigir o estrago e empurrar para frente a decisão sobre a mudança da meta, se for o caso. A disposição do presidente de não por o pé no freio via contingenciamentos não parece ter sido refreada.

Lula fulminou a primeira futura meta logo depois de o Congresso ter aprovado o novo regime fiscal, o que afetou as chances de sucesso de Haddad obter no Congresso apoio a medidas para aumentar a arrecadação, como a tributação dos fundos offshore e exclusivos (previsão de R$ 21,3 bilhões), fim da dedução dos juros sobre capital próprio (R$ 10,5 bilhões) e a que retira isenção de estímulos fiscais dados pelos Estados, via ICMS, em impostos federais (R$ 35,3 bilhões). Os argumentos para convencer parlamentares a fechar buracos fiscais se enfraqueceram diante da perspectiva de que o governo toleraria déficits fiscais. Diante desse risco, recompôs-se a ordem unida no governo para o déficit zero - até última ordem.

O Orçamento é uma peça política por princípio, e materializa a intenção fiscal do governo. O novo regime fiscal, que privilegia aumento de receitas e não corte de despesas, não tinha punições para o descumprimento de metas, mas nele foi acrescida pelo Congresso uma condição: a de que o governo se esforce para atingir o resultado, por meio de contingenciamento de até 25% das despesas discricionárias. O descumprimento acarreta também a redução das despesas, de 70% das receitas primárias para 50% no exercício seguinte, fim dos concursos etc.

O que o presidente e o PT provavelmente temem é que um erro na largada, em 2024, os condene a uma piora orçamentária em 2025 e não garanta qualquer bonança em 2026, ano de eleições - e Lula já se dispôs a ser candidato. A armadilha da austeridade relativa quem a montou desta vez foi o próprio governo, que teve liberdade total para decidir quais regras fiscais pretendia cumprir. Parecem ter se dado conta de que o figurino é bem mais estreito do que imaginavam.

Se o governo não obtiver as receitas extras de R$ 168 bilhões, terá de fazer um contingenciamento de até R$ 53 bilhões, ou 25% dos R$ 211 bilhões de receitas discricionárias. Emendas parlamentares teriam de ser cortadas. Mas ainda que tudo desse certo, o governo teria de fazer um esforço fiscal (de mais receitas, ou corte de gastos) significativo. Ele foi calculado entre R$ 66 bilhões e R$ 96 bilhões pelo coordenador do Observatório de Política Fiscal do Ibre/FGV, Manoel Pires. Nos cálculos de Pires entraram tudo que está no PLOA e parte do que não está, e também a possibilidade de usar a banda inferior da meta (R$ 29 bilhões), ganhos com preços de transferência (R$ 20 bilhões) e recursos empoçados (R$ 22 bilhões). Se não quiser segurar um centavo, o governo tem que arrumar R$ 96 bilhões, além dos R$ 168 bilhões. Um represamento factível, entre R$ 10 bilhões e R$ 20 bilhões, exigiria esforço de R$ 76 bilhões a R$ 86 bilhões.

Além disso, o discurso petista criou outros nós orçamentários. Com o fim do teto de gastos, as despesas com saúde e educação voltaram à vinculação constitucional. O PT disse que a correção pela inflação retirou recursos de ambos. A volta à vinculação fez os gastos com saúde aumentarem R$ 50,3 bilhões e R$ 8,5 bilhões as despesas com educação, segundo Bráulio Borges, pesquisador do Ibre-FGV. São gastos não contingenciáveis e que crescem junto com o aumento das receitas. São vinculadas as emendas parlamentares individuais e de bancada, que perfazem 2% e 1% da receita corrente líquida.

Para que a relação dívida/PIB se estabilize e comece a cair é necessário um superávit fiscal de 1% a 1,5% do PIB (há analistas que apontam 2% a 2,5% do PIB). Não se sabe qual limite fiscal Lula quer tolerar. O presidente está criando gastos, depois de uma PEC da Transição que os elevou em R$ 165 bilhões e, ao contrário de seus dois outros mandatos, não parece agora ter muita tolerância em relação à austeridade. Mesmo que o governo rejeite a meta de déficit zero, o espírito da decisão teria de ser ainda o da sobriedade e da contenção de despesas, com revisão de gastos, avaliação de resultados etc. Não parece haver essa convicção, mas a decisão final foi postergada.

Atividade em queda

Folha de S. Paulo

Recuo da economia não surpreende; deve-se persistir no ajuste para reduzir juros

Depois de bons resultados no primeiro semestre deste ano, quando houve crescimento acima das expectativas, a atividade econômica mostra uma nítida perda de ritmo nos dados mais recentes.

O indicador do Banco Central que combina resultados da indústria, dos serviços e da agropecuária apontou queda de 0,64% no terceiro trimestre, o que sugere retração do PIB no período.

Os dados devem impactar as projeções de analistas para o desempenho deste ano —que rondavam alta de 2,9% na pesquisa anterior do BC. O governo ainda prevê 3,2%, prognóstico a esta altura otimista.

A queda trimestral não chega a surpreender, dado que sempre se considerou provável menor vigor econômico na segunda metade do ano, conforme se esgotassem os efeitos da safra agrícola recorde e da expansão de gastos públicos. Os juros altos para debelar a inflação também já se fizeram sentir.

Mesmo com algum arrefecimento, vale lembrar, o avanço de 2023 dificilmente ficará abaixo de 2,5%, muito mais do que se esperava no início do ano —cerca de 1%.

Em contrapartida, há a boa notícia da redução consistente da inflação, que mantém espaço para que o BC continue cortando a taxa básica de juros, de 11,75% anuais hoje para 9,25% em 2024, segundo a pesquisa entre analistas.

O alívio inflacionário atinge itens fundamentais para a população de baixa renda, como alimentos. Ainda que em menor velocidade, crescem o emprego e os salários, de modo que na soma geral a situação não chega a ser ruim.

É preciso cautela, porém, quanto a riscos que parecem emergir. Juros altos no exterior afetam as perspectivas de EUA e Europa, enquanto a China passa por problemas financeiros que dificultam uma retomada forte. Não se pode descartar um cenário recessivo.

A maior fragilidade hoje é a persistente incerteza sobre os rumos da gestão orçamentária doméstica, como demonstrado pelas oscilações do governo em relação à manutenção da meta de zerar o déficit do Tesouro e o flerte com soluções criativas para evitar contingenciamento de gastos, ainda mais num ano eleitoral.

Por ora, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, conseguiu adiar a decisão de revisão da meta para o início do ano que vem, a depender do avanço da agenda legislativa por mais arrecadação.

Mas a dimensão e a duração da desaceleração nos próximos meses pode trazer ansiedade e afetar os cálculos políticos do governo.

A pior decisão seria a de embarcar em mais intervencionismo e ampliar as despesas. Cumpre reforçar a credibilidade ainda baixa da nova regra fiscal e favorecer a redução duradoura dos juros.

Imprensa na balança

Folha de S. Paulo

Pena excessiva a jornalista abre precedente contra a liberdade de informação

A jornalista Schirlei Alves foi condenada pelo crime de difamação contra o juiz Rudson Marcos e o promotor Thiago Carriço. Para cada vítima, a magistrada Andrea Cristina Studer estipulou pena de seis meses de detenção em regime aberto e R$ 200 mil de multa.

A punição é exagerada e contraria a jurisprudência sobre o tema. Ao estimular a autocensura, afeta a liberdade de imprensa.

Em novembro de 2020, Alves publicou uma reportagem no Intercept Brasil sobre o caso do empresário André de Camargo Aranha, acusado pelo crime de estupro de vulnerável contra a influencer Mariana Ferrer. Aranha foi absolvido.

A manchete dizia que o julgamento "termina com tese inédita de ‘estupro culposo’" e, no texto, após descrever a argumentação da promotoria, conclui-se com "ou seja, uma espécie de ‘estupro culposo’".

A juíza entendeu que a repórter difamou o promotor ao atribuir a ele a tese de "estupro culposo".

De fato, a expressão não consta da decisão judicial. Segundo a promotoria, não foi possível comprovar a vulnerabilidade de Ferrer (por consumo de álcool ou drogas) e, consequentemente, o dolo de Aranha. Como o crime de estupro não admite a modalidade culposa (sem intenção), Carriço pediu a absolvição do réu.

Um dia após a publicação, o veículo inseriu uma nota de esclarecimento: "A expressão ‘estupro culposo’ foi usada pelo Intercept para resumir o caso e explicá-lo para o público leigo. O artifício é usual ao jornalismo. Em nenhum momento o Intercept declarou que a expressão foi usada no processo".

Ademais, em dezembro daquele ano, a reportagem foi editada por ordem da Justiça, com notas que explicam o julgamento.

Considerando que estão em questão sobretudo procedimentos técnicos e que o direito de resposta dos ofendidos havia sido assegurado com a edição do texto, a condenação de Alves é desproporcional e abre precedente temerário contra a liberdade de imprensa.

Em outros casos sobre danos morais e materiais, o Supremo Tribunal Federal tem se valido da "cláusula de modicidade", que prevê montantes proporcionais ao dano sofrido por alguém.

Profissionais da imprensa precisam estar seguros de que seu trabalho não será punido com penas descabidas. Caso contrário, inibe-se a função de observador crítico de governos e autoridades, fundamental em qualquer democracia.

Para proteger o campo e o direito

O Estado de S. Paulo

Para a segurança jurídica e o respeito à propriedade privada, mais do que a disputa sobre o marco temporal, o fundamental é a correção no processo de demarcação das terras indígenas

Em evento sobre os aspectos jurídicos do agronegócio, realizado no dia 6 de novembro na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a ministra aposentada do Supremo Tribunal Federal (STF) Ellen Gracie analisou o atual entendimento sobre o art. 231 da Constituição, que trata dos povos indígenas e da demarcação de suas terras. Diz esse texto constitucional que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.

Como se sabe, no final de setembro, o STF alterou a jurisprudência sobre o tema, rejeitando a tese do marco temporal, definida em 2009 no caso Raposa Serra do Sol. Por maioria, o plenário da Corte decidiu agora que não cabe utilizar a data da promulgação da Constituição Federal – 5/10/1988 – como prazo-limite para a definição de ocupação tradicional da terra por povos indígenas.

Dias depois da decisão do Supremo, o Congresso aprovou a Lei 14.701/2023, permitindo a demarcação de novos territórios indígenas apenas nos casos em que essa ocupação seja anterior a outubro de 1988. Essa restrição foi vetada, juntamente com outros pontos, pelo presidente Lula da Silva. O Legislativo ainda não analisou os vetos do Executivo.

Diante desse cenário de acirrada controvérsia, no qual muitos veem a decisão do STF como o fim da segurança jurídica no campo, Ellen Gracie alertou para um aspecto importante do tema, que muitas vezes tem sido ignorado. Mais do que a questão de uma datalimite para a definição de ocupação tradicional da terra por povos indígenas, o decisivo para um efetivo respeito à propriedade privada é assegurar que o processo de demarcação dessas terras seja corretamente realizado.

O processo é regulado pela Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e pelo Decreto 1.775/1996. A lei diz que “as terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o processo estabelecido em decreto do Poder Executivo”. O órgão responsável é a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

Segundo o Decreto 1.775/1996, a demarcação “será fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida, que elaborará (...) estudo antropológico de identificação”. No entanto, como as quase três décadas de vigência do decreto mostram, esses estudos antropológicos são muitas vezes falhos, sem o necessário rigor técnico.

A agravar a imprevisibilidade e a insegurança, o procedimento de aprovação do relatório pela Funai não prevê a convocação das pessoas que poderão ser afetadas pela demarcação. O Decreto 1.775/1996 diz apenas que o estudo antropológico, depois de aprovado, deve ser publicado na sede da prefeitura na qual está localizado o imóvel e que eventuais interessados poderão se manifestar no prazo de 90 dias “para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do relatório”.

Na prática, é um procedimento administrativo sem contraditório, o que estimula a judicialização dos casos, com as disputas pela terra prolongando-se indefinidamente no tempo. É justamente o cenário que o legislador constituinte quis evitar, estabelecendo que “a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição” (art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).

A controvérsia em torno do marco temporal deve ser estímulo para aprimorar o processo administrativo de demarcação das terras indígenas, processo esse que frequentemente afeta direitos constitucionalmente protegidos de terceiros. Não é questão de dificultar o reconhecimento dos direitos dos povos indígenas, mas precisamente assegurar sua efetividade. A situação atual, com disputas judiciais perpassando décadas e gerando diversas instabilidades, também viola a Constituição. Afinal, ela não veio promover a contenda, mas a paz.

Um governo que desmoraliza o País

O Estado de S. Paulo

Reação de Lula ao caso das reuniões no Ministério da Justiça com a mulher de um chefão do tráfico mostra que a prioridade não é a segurança pública, e sim defender o companheiro Dino

É estarrecedor. O Estadão revelou que pessoas muito próximas a uma facção criminosa fizeram reuniões no Ministério da Justiça e Segurança Pública e, em vez de tomar as atitudes necessárias para traçar uma linha clara entre governo e crime organizado, o presidente Lula da Silva veio a público prestar solidariedade ao ministro da Justiça, Flávio Dino, que estaria sendo “alvo de absurdos ataques artificialmente plantados”.

Ao contrário do que disse Lula da Silva, a questão não é se o ministro da Justiça encontrou-se pessoalmente com Luciane Barbosa Farias, mulher de um dos líderes do Comando Vermelho no Amazonas e ela própria com contas a acertar na Justiça. Até agora, não há nada indicando que esse encontro ocorreu. O problema é outro, muito mais grave.

O crime organizado atua à luz do dia para se aproximar da política e interferir nela, e o governo do PT parece considerar tudo isso normal. Sua preocupação não é investigar o caso, tampouco atuar para que a administração pública federal fique menos exposta às investidas políticas das facções criminosas. A prioridade petista é defender o companheiro Dino, que estaria sendo injustamente atacado.

Com isso, Lula da Silva reitera o padrão de comportamento adotado até agora na área da segurança pública. Não entendeu a gravidade do problema. Não se preocupa com a população, que sente diariamente os efeitos e todas as sombras que a criminalidade gera sobre a vida em sociedade. Não tem nenhum plano concreto para prevenir os crimes e enfrentar os criminosos. Sua atenção está voltada exclusivamente para as eventuais consequências políticas do escândalo da participação da mulher do traficante “Tio Patinhas” em reuniões do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Trata-se da mesma irresponsabilidade que se viu na recente operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) nos portos e aeroportos para combater o tráfico de drogas e de armas. Diante de um problema gravíssimo, que exige estratégia, planejamento e coordenação, o governo federal optou por mais uma pirotecnia militar populista, de curto prazo e sabidamente ineficaz (ver editorial Uma GLO que é a cara deste governo, dia 3/11).

Governar é muito mais do que agir guiado por cálculos político-eleitorais. Exige um mínimo de comprometimento com o interesse público. No entanto, diante da revelação de que as facções criminosas de algum modo têm acesso à alta cúpula da administração federal, Lula da Silva optou por cuidar do interesse do seu ministro que, coitado, não estava sabendo das tais reuniões.

O governo do PT zela por si e apenas por si. E o faz de forma coordenada. Horas depois de Lula prestar solidariedade ao companheiro Dino, o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, veio a público defendê-lo. Para Silvio Almeida, o problema não é a atuação cada vez mais audaciosa do crime organizado, mas os “ataques difamatórios” que “têm como alvo central o corajoso trabalho” do ministro da Justiça.

Haja empáfia. Em vez de esclarecer o que houve, Silvio Almeida acusou “a tentativa generalizada, por parte de extremistas de direita, de a todo momento fabricar escândalos e minar a reconstrução da política de direitos humanos”. Eis o modus operandi petista. Acham-se superiores mesmo quando seus erros são expostos. Em vez de prestarem as informações ao público e admitirem o erro, atacam genericamente, sem nenhuma prova, politizando infantilmente a questão.

Não há reconstrução possível do País onde imperam a irresponsabilidade e a desfaçatez. É mais que hora de Lula da Silva descer do palanque e governar com seriedade, o que envolve admitir os erros e, principalmente, cuidar dos interesses da população. É fácil – e gera engajamento nas redes sociais – culpar os “próceres da extrema direita brasileira”, como fez Silvio Almeida, pelo escândalo das reuniões. Difícil é enfrentar as causas do problema.

O mínimo que o governo poderia fazer seria afastar ou ao menos advertir os secretários envolvidos no caso. Mas o sr. Dino já descartou essa possibilidade, dizendo que, se o fizesse, estaria se “desmoralizando”. Conclui-se que ele preferiu desmoralizar o País.

Cacoete sindicalista

O Estado de S. Paulo

Canetada do Ministério do Trabalho dificulta trabalho do comércio e serviços aos feriados

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, achou por bem alterar, de forma intempestiva, uma portaria que autorizava o trabalho nos setores de comércio e serviços durante os feriados. Assim, em uma canetada, o governo restabeleceu a necessidade de convenção coletiva ou em legislação municipal disciplinando o tema.

Vindo do governo do eterno líder sindical Lula da Silva, que tenta de toda forma fortalecer os combalidos sindicatos, a notícia não surpreende no conteúdo, mas na forma. Não houve qualquer comunicação ou explicação prévia ao setor sobre uma portaria publicada na véspera do feriado de 15 de novembro no Diário Oficial da União e que entrou em vigor na mesma data.

A portaria anterior, de 2021, liberava de forma irrestrita e permanente o trabalho em feriados e aos domingos em mais de 70 categorias, entre as quais supermercados e feiras livres, sem que fosse necessária a participação dos sindicatos nas negociações. Bastava uma convocação ou comunicado, mas isso nunca dispensou as empresas de cumprir a legislação trabalhista e pagar horas extras a seus empregados.

Agora, o setor varejista, com toda a razão, reclamou. Feiras livres, padarias e restaurantes poderão manter as atividades nos feriados. Supermercados e farmácias, no entanto, estão sujeitos às novas normas. Não houve nem tempo hábil para que as empresas pudessem se adaptar às novas condições. Não se sabe se as empresas que haviam se preparado para abrir no feriado da Proclamação da República receberão ou não multas administrativas por violar a regra.

O ministro Luiz Marinho tampouco se preocupou em explicar sua decisão. Diante da péssima repercussão, limitou-se a declarar, em entrevista ao Jornal Nacional, que analisa a possibilidade de estabelecer um período de transição para que a portaria passe a valer apenas em janeiro. É estarrecedor que o ministro não tenha pensado nas consequências de sua decisão antes de editar o ato.

As centrais sindicais, por óbvio, já sabiam da decisão do ministro e comemoraram. Para elas, a portaria vai impedir abusos patronais. Ao governo, pouco importa se a medida vai criar insegurança jurídica, burocracia ou demissões de trabalhadores, desde que os sindicatos fiquem satisfeitos.

A medida agora revertida somente removeu um entrave incompatível com a atual realidade do mercado de trabalho. Empresas e trabalhadores têm todas as condições de negociar esses acordos, no espírito da reforma trabalhista tão demonizada pelos petistas. Ademais, os consumidores já estão acostumados à comodidade de contar com lojas abertas nos feriados.

O Congresso já foi acionado para derrubar a portaria. Composta por 207 deputados e 46 senadores, a Frente Parlamentar do Empreendedorismo não terá qualquer dificuldade para reverter a medida por meio de projetos de decreto legislativo na Câmara e no Senado. Talvez assim o governo consiga entender que não basta vontade para fazer valer suas convicções. Numa democracia, é preciso dialogar.

Os desafios da eletrificação

Correio Braziliense

No exterior — principalmente na Europa —, diversas montadoras já determinaram que, nos próximos anos, todos os seus veículos vão sair de fábrica com baterias

O avanço e a adoção de uma nova tecnologia pelo mundo não costumam ser suaves. Normalmente se dá em saltos intensos, que deixam para trás os países que não conseguem acompanhar a inovação do momento. Foi assim com a adoção dos teares mecanizados, na virada do século 18 para o século 19. Essa mudança levou à Primeira Revolução Industrial e à ascensão do Reino Unido como potência. Na transição do século 20 para o século 21, também foi assim com os computadores e a internet. Agora, o mundo está diante de um novo paradigma tecnológico, talvez o mais importante desde a chegada da informática: os carros com motores elétricos.

A eletrificação avança rapidamente pelo mundo. No exterior — principalmente na Europa —, diversas montadoras já determinaram que, nos próximos anos, todos os seus veículos vão sair de fábrica com baterias. Elas vão ocupar o lugar dos motores à explosão, movidos por derivados de petróleo. Os chineses também não perderam tempo e estão não só apostando pesado na virada de matriz energética, como estão trazendo, a preços muito competitivos, seus veículos elétricos para o Brasil.

Mas por aqui, porém, diversos desafios se impõem para que a eletrificação ocorra com a velocidade que está sendo implantada nos países do Norte global. Um dos principais dilemas é o impacto potencial na mão de obra. A automação e a substituição de motores a combustão interna pelos elétricos têm o potencial de causar uma redução drástica dos postos de trabalho no setor, sejam empregos diretos, nas montadoras, sejam indiretos, na imensa rede de prestação de serviços, que vão de postos de gasolina e centros de trocas de óleo a oficinas mecânicas de bairro.

Isso revela outro problema de difícil resolução no Brasil: a infraestrutura deficiente. Para que uma pessoa viajando encare mais do que seis ou sete horas em um elétrico, ela vai precisar invariavelmente abastecer a bateria. Mas o processo não é rápido como encher um tanque. Ele demanda algumas horas, o que pode causar um problema sério. Basta imaginar uma pessoa que chega a um eletroposto onde todos os carregadores estão ocupados. Além da espera que ela já teria pelo próprio carro, ela terá que aguardar que as pessoas que chegaram na frente concluam suas cargas, sendo que elas podem ter, também, acabado de iniciar o abastecimento.

Se nas estradas existe este problema, nas casas brasileiras não é diferente. Quais são as garagens de imóveis que estão preparadas para uma adoção em massa dos carregadores? A situação, como se não bastasse, provavelmente, vai gerar discussões e brigas em condomínios, onde a energia elétrica dos estacionamentos costuma ser compartilhada, de uso comum.

Por isso, as grandes montadoras estão apostando que o Brasil ainda vai viver um momento de transição até a adoção do elétrico puro. Os híbridos, que têm o auxílio de um motor elétrico alimentado à bateria, mas também contam com um propulsor à explosão, estão sendo apresentados como essa solução intermediária. Faz sentido, pois aproveita a imensa produção nacional de etanol, que é um combustível renovável e consideravelmente mais limpo do que a gasolina e o diesel.

No entanto, é crucial reconhecer que essa abordagem deve ser apenas uma resposta temporária. Ao optar pelos híbridos, o Brasil ganha um tempo necessário para resolução de todos os problemas citados acima, mas arrisca perpetuar a dependência dos combustíveis fósseis, enquanto o resto do mundo avança rapidamente para a eletrificação total.

É como se estivéssemos aceitando um compromisso pela metade, condenando-nos a seguir um caminho que, a longo prazo, pode se tornar obsoleto. Resta saber se o governo, as montadoras e, principalmente, os consumidores, vão entender os híbridos como um momento de transição rumo ao futuro totalmente elétrico da indústria automotiva global, ou se o Brasil vai, mais uma vez, perder o passo da história.

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