domingo, 12 de novembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Liberação do cigarro eletrônico interessa apenas à indústria

O Globo

Não há nenhum aspecto positivo em seu consumo, ao contrário do que tentam insinuar os fabricantes

Entidades da área médica têm manifestado preocupação crescente com o Projeto de Lei (PL) que propõe liberar os cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes. Venda, importação e propaganda dos dispositivos estão proibidas pela Anvisa desde 2009, devido à inexistência de dados que comprovem sua eficácia e sua segurança. De autoria da senadora Soraya Thronicke (Pode-MS), o PL dos Vapes tramita na Comissão de Assuntos Econômicos.

O principal argumento da indústria do fumo, maior defensora do projeto, é que, apesar da proibição, vapes são vendidos livremente, sem regulamentação. De acordo com ela, isso também impõe riscos à saúde, pois os usuários não sabem o que consomem, e os produtos ilegais têm concentrações mais altas de nicotina. Os defensores também alegam que os eletrônicos contribuiriam para a redução do consumo de cigarros tradicionais. Tais argumentos são defendidos publicamente em artigos, como aqui no GLOBO. É verdade que, mesmo com a proibição, os vapes têm ganhado espaço, especialmente entre os jovens. No ano passado, 2,2 milhões de adultos usavam cigarros eletrônicos no Brasil, de acordo com levantamento do Ipec — em 2018, eram menos de 500 mil.

Mas a regulamentação sugerida no PL está repleta de armadilhas. Embora estabeleça condicionantes, como a obrigatoriedade de registro na Anvisa e a apresentação de laudo de avaliação toxicológica, a proposta abre brechas preocupantes. Os fabricantes não estariam obrigados a apontar aditivos e materiais usados na fabricação dos vapes, nem a revelar os riscos do produto na comparação com o cigarro convencional. Isso só seria feito, pelo texto sugerido, quando considerado “relevante para a avaliação”. Ficaria, portanto, a critério dos fabricantes, um despropósito. Para completar, diferentemente do que ocorre com maços de cigarros, os dispositivos não estampariam fotos para alertar sobre seus danos.

É certo que a proibição pura e simples — sem a devida fiscalização — não tem sido eficaz. Mas o debate deve se nortear, fundamentalmente, pelas implicações médico-sanitárias. Os congressistas não devem se enganar: a defesa dos cigarros eletrônicos não guarda relação com a saúde dos cidadãos, trata-se do interesse da indústria. A lista de malefícios dos vapes é extensa. Um único dispositivo equivale a cerca de 20 cigarros tradicionais, segundo a Associação Médica Brasileira (AMB). O uso dos cigarros eletrônicos aumenta o risco de câncer, além de doenças respiratórias, cardiovasculares e neurológicas. Não se deve ignorar que vapes têm nível mais alto de nicotina, substância que provoca dependência química. Um estudo do Hospital das Clínicas da USP mostrou que, enquanto cigarros convencionais têm um limite de 1 miligrama de nicotina, os eletrônicos chegam a 57 miligramas por mililitro. A AMB classifica o PL dos Vapes como “desserviço aos cidadãos”.

Permitir a livre circulação desses dispositivos no Brasil criaria, nas palavras de Margareth Dalcolmo, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e pesquisadora da Fiocruz, “uma nova legião de dependentes de nicotina”, depois de o país ter reduzido para apenas 9% a população de fumantes. Os vapes trazem, de acordo com o pneumologista Paulo Correa, coordenador da Comissão de Tabagismo da SBPT, os mesmos riscos do cigarro convencional — em especial de câncer e doenças cardíacas — e ainda por cima acrescentam outros, como inalação de metais ou uma doença respiratória aguda grave associada a eles, a evali. Em artigo recente no GLOBO, Dalcolmo e Correa ressaltaram que os vapes podem conter quase 2 mil substâncias, a maioria não revelada pela indústria, e que os fabricantes não são transparentes em relação à composição dos produtos. Em estudos, já foram encontrados químicos industriais e até pesticida.

A alegação de que os vapes poderiam substituir os cigarros tradicionais por ser menos danosos não encontra respaldo entre os cientistas, além de ser rechaçada pela OMS. Dados do Escritório Nacional de Estatísticas do Reino Unido — onde cigarros eletrônicos são permitidos e incentivados — mostram que, em apenas um ano, de 2021 para 2022, o uso de vapes aumentou de 11,1% para 15,5% entre jovens de 16 a 24 anos, enquanto o cigarro convencional caiu menos, de 13,2% para 11,6%.

Todo esse potencial de danos precisa ser levado em conta nas discussões e analisado com lupa. É fundamental que os parlamentares ampliem o debate, envolvendo sobretudo as instituições que atuam na área da saúde e testemunham cotidianamente os efeitos deletérios dos cigarros, sejam eles tradicionais ou eletrônicos. Deve-se ter em mente que, nas últimas décadas, o Brasil obteve um avanço extraordinário na restrição ao tabagismo, transformando-se em referência internacional. Criar uma nova geração de dependentes da nicotina seria um enorme e lamentável retrocesso.

Por fim, é chocante a hipocrisia da indústria do fumo. Almejar lucro é o objetivo de toda empresa, mas travestir esse interesse de pretensas boas intenções não parece correto. Não soa convincente que uma indústria que por décadas omitiu os efeitos perversos dos cigarros para preservar seus lucros esteja interessada agora em reduzir a dependência à nicotina oferecendo produtos menos nocivos. Como bem resumiu o médico Drauzio Varella no jornal Folha de S.Paulo: “Uma indústria que acumulou lucros astronômicos com a venda de cigarros para dependentes de nicotina fabrica um dispositivo para inalar nicotina com a finalidade de reduzir o número de fumantes. Haja ingenuidade para acreditar nessa gente”.

Enem com foco

Folha de S. Paulo

Batalha ideológica em torno do exame prejudica debate para seu aperfeiçoamento

Uma das principais trincheiras da guerra cultural travada no campo político é a da educação. Setores mais populistas e radicais da direita atribuem as mazelas do ensino nacional à ideologização do currículo escolar pela esquerda —um fenômeno observável episodicamente, mas tratado de modo desproporcional e casuístico.

Nesse contexto, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se converteu em um cavalo de batalha. O governo de Jair Bolsonaro (PL) tinha aversão a qualquer questão que abordasse identidade de gênero e, durante sua gestão, a prova não teve perguntas que falassem em ditadura militar.

Na edição deste ano, que começou no domingo passado (5), lideranças ruralistas se indignaram com duas questões que criariam uma imagem negativa do agronegócio —uma delas de fato trazia um texto panfletário e estava repleta de jargões esquerdistas. Entretanto a celeuma criada tomou a parte pelo todo de 90 questões.

Esse tipo de catastrofismo tem prejudicado um debate mais produtivo sobre o Enem, que, sim, merece aperfeiçoamentos não limitados aos vieses ideológicos.

A elaboração de um exame de tal alcance não é trivial. As questões são formuladas por professores universitários selecionados por meio de edital e passam por revisão de uma comissão.

São testadas, ou seja, submetidas a várias pessoas, para avaliar atributos como o grau de dificuldade e o risco de que o avaliado consiga acertar sem real conhecimento do assunto. Tal procedimento se baseia na chamada Teoria de Resposta ao Item (TRI).

Em 2021, a Folha realizou análise estatística de 24 questões criticadas por conservadores ou que abordavam a ditadura militar em provas do Enem realizadas entre 2009 e 2019, com o objetivo de verificar se foram eficientes em testar o conhecimento técnico dos alunos. Concluiu-se que sim.

No entanto é costumeiro notar nas provas, especialmente em linguagem e humanidades, perguntas um tanto nebulosas e alternativas dúbias de respostas. Num recente exemplo anedótico, o músico Caetano Veloso revelou dificuldade em responder a uma questão relativa a sua obra.

Ademais, avaliações como o Enem acabam influenciando a bibliografia e a abordagem dos conteúdos ministrados em sala de aula. Privilegia-se, afinal, o que tem mais chances de estar na prova.

Nesse sentido, é importante que o exame estimule a diversidade intelectual com ampliação do escopo de autores, fontes e linhas de pensamento. Tal providência salutar contribuiria para a melhoria da formação e do espírito crítico dos estudantes brasileiros.

Inflação em baixa

Folha de S. Paulo

IPCA confirma trajetória favorável, mas expansão do gastos limita queda de juros

A inflação proporcionou uma nova surpresa positiva em outubro. A variação do IPCA, índice de preços ao consumidor que serve de referência para o Banco Central, foi de 0,24%, enquanto as expectativas rondavam 0,29%. Em 12 meses, a taxa caiu de 5,2%, medidos em setembro, para 4,8%.

A tendência de redução deve continuar nos próximos meses. As projeções atuais de analistas indicam que o IPCA deve encerrar este ano e o próximo com altas de 4,6% e 3,9%, respectivamente.

Mais importante, o comportamento dos itens com pressões de preços mais persistentes, como serviços, mostra sensível melhora, o que certamente agrada ao BC.

Em suas comunicações recentes, a autoridade monetária vem destacando que o processo de desinflação no Brasil seguirá dois estágios.

O primeiro, já em grande medida completo e independente da política de juros, incorpora a normalização das condições de oferta e demanda legados pela pandemia e a dissipação dos efeitos de conflitos geopolíticos nos preços globais das matérias-primas.

A preocupação do BC, repetida nos últimos meses, diz respeito à segunda fase, mais vinculada às condições domésticas.

De um lado, a forte expansão de gastos públicos e a postura leniente do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em relação aos compromissos de controle orçamentário tendem a impulsionar a inflação.

Em contrapartida, os juros ainda muito elevados e o esperado esfriamento da economia nos próximos meses sugerem desaceleração dos preços, mesmo diante de riscos internacionais salientados pelo BC —como persistência dos juros internacionais em alta, novos conflitos geopolíticos e renovadas pressões nas matérias-primas.

É notável, ademais, que a inflação no Brasil seja hoje próxima ou até inferior à observada em países desenvolvidos, evidência clara do sucesso obtido pelo BC a despeito das críticas ligeiras e imprudentes de parte do governo e do PT.

Diante desses resultados, fica preservado o espaço para a continuidade do ciclo de cortes da taxa de juros nos próximos meses, talvez para 9% até meados de 2024.

O alívio significativo do torniquete monetário é essencial para que se possa antever um cenário econômico mais promissor. Contribuir para que tal cenário se realize é tarefa essencial do Executivo —que tem falhado na missão de restabelecer a segurança fiscal.

Instituições funcionam. Mas para quem?

O Estado de S. Paulo

A desigualdade social é precedida e perpetuada por uma desigualdade jurídica. Há um Estado efetivo para uma minoria de privilegiados e outro, precário, para uma maioria de marginalizados

Desde a Era Iluminista, os Estados nacionais foram reconfigurados pela sucessiva consolidação de três categorias de direitos: civis (como propriedade ou liberdade de expressão), políticos (de eleger e ser eleito) e sociais (como educação, saúde ou previdência). A Constituição de 88 consagrou essa evolução. Ao constituir a República como um Estado “Democrático de Direito”, ela estabelece que a lei é igual para todos e será definida e implementada pelo povo, por meio de seus representantes eleitos no Legislativo e Executivo, e interpretada pelo Judiciário, cujos representantes máximos nas cortes superiores são selecionados pelos representantes eleitos. Sobre os dois pilares da “democracia liberal”, o constituinte arquitetou o terceiro aspecto do Estado moderno: o “bem-estar social”.

Esse governo “do povo, pelo povo, para o povo, não perecerá na terra”, augurou Abraham Lincoln. Mas na última década ele tem se degradado em todo o mundo. Institutos como o V-Dem, o Economist Intelligence Unit, a Freedom House e o World Justice Project documentam a deterioração das instituições democráticas, das liberdades fundamentais e do Estado de Direito. A erosão das taxas de prosperidade e igualdade vem a reboque.

O Brasil segue esse padrão, com uma agravante. Os direitos civis, políticos e sociais formalizados na Constituição estão se deteriorando antes de terem se consolidado. Incompleta, a cidadania brasileira está se degradando. O Estado é cindido em dois: um para uma minoria de privilegiados, outro para uma maioria de marginalizados. As elites do poder público e iniciativa privada gozam de todas as garantias, liberdades e benesses que o dinheiro pode comprar e o poder pode conferir. No outro extremo, há uma massa de degredados para os quais a Constituição é letra morta.

Esse “estado de coisas inconstitucional” é particularmente evidente na Justiça, em especial na Justiça penal. No ranking do Rule of Law Index do World Justice Project, que mede a percepção do Estado de Direito junto a acadêmicos, operadores do direito e lideranças civis, o Brasil ocupa a 81.ª posição entre 140 países. Na Justiça penal, está na 112.ª posição, com péssimas avaliações na investigação criminal (107.ª), sistema correcional (130.ª) e tempestividade e eficácia dos julgamentos (132.ª). O índice classifica nosso sistema prisional como o segundo menos imparcial do mundo, só à frente da Venezuela.

Judiciário e Ministério Público, a elite do serviço público, extraem do Estado todos os privilégios possíveis e imagináveis. No extremo oposto, o sistema prisional, uma terra arrasada de direitos, exprime a falência do Estado. Em tese, esse sistema deveria atender a três fins: proteção da sociedade, dissuasão dos aspirantes ao crime e ressocialização dos condenados. Na prática, ele subverte esses fins, transformando-se numa usina do crime.

A desigualdade social é precedida e perpetuada pela desigualdade jurídica. Compare-se, por exemplo, a experiência de dois cidadãos supostamente iguais perante a lei. O ministro da Suprema Corte Alexandre de Moraes e seus familiares, que alegam terem sido vítimas de agressão no aeroporto de Roma, foram admitidos como assistentes de acusação na fase de investigação, um exótico privilégio, e foram favorecidos pela imposição do sigilo às filmagens que comprovariam o delito. Diverso foi o caso, recentemente abordado no podcast Rádio Novelo Apresenta, do jovem ativista Pedro Henrique Santos Cruz, de Tucano, na Bahia. Frustrado após suas denúncias de abusos por policiais terem sido ignoradas pela Justiça, Pedro organizou uma série de protestos. Por anos foi hostilizado por policiais. Em 2018, três homens encapuzados invadiram sua casa e o executaram a tiros. Testemunhas acusam policiais. Apesar das mobilizações da família, o caso nunca foi devidamente investigado.

As instituições estão funcionando? Depende. A resposta em Tucano será uma; em Brasília, outra. A do cidadão Alexandre de Moraes será uma, a do cidadão Pedro Henrique não será dada, porque ele foi morto sob a negligência do Estado, se não por agentes do próprio Estado. Mas a resposta de sua família e de uma legião de jovens da periferia como ele será inequívoca: um categórico “não”.

A ameaça do extremismo israelense

O Estado de S. Paulo

Israel e o mundo precisam derrotar os jihadistas do Hamas se quiserem abrir caminho para a paz. Mas a paz ficará cada vez mais distante se Israel não neutralizar seus próprios radicais

O governo do Hamas em Gaza é incompatível com a paz. Para a milícia jihadista, qualquer solução de compromisso é só um passo atrás para poder dar vários adiante rumo ao seu objetivo: a aniquilação de Israel e a submissão do mundo ao islã. A Israel não resta alternativa senão obliterar a capacidade militar do Hamas e defenestrá-lo do governo. A comunidade internacional precisa pressionar Israel a respeitar as leis da guerra e minimizar danos a civis, mas um cessar-fogo a esta altura só daria ao Hamas a chance de recobrar forças e perseguir suas metas com mais brutalidade.

No entanto, se desbloquearia o caminho para a paz, a destruição do Hamas, sozinha, não é suficiente para pavimentá-lo. Se a ação militar não for complementada por uma estratégia política em relação aos palestinos, esse caminho será inviabilizado por décadas. O Hamas é só a cabeça mais brutal da hidra do radicalismo. Se essa cabeça for cortada sem uma alternativa digna para os palestinos, surgirão outras ainda mais ferozes. Crucial para evitar isso será formar uma coalizão de países árabes avessos ao jihadismo para instaurar um governo civil em Gaza, concomitantemente à normalização das relações entre esses países e Israel. Sobre essas bases, será indispensável retomar o processo para dar à luz um Estado palestino.

O Hamas sempre se opôs à solução dos dois Estados. Mas, mesmo que ele seja destruído, o caminho para a paz seguirá obstruído se Israel não contiver seus próprios extremistas. Há pouco, a imprensa israelense revelou um documento em que um ministro sugere transferir à força os palestinos de Gaza para a península do Sinai, no Egito. Outro ministro sugeriu que lançar uma bomba nuclear em Gaza seria uma “opção”. E o governo continua a tolerar, se não a incentivar, as agressões de colonos israelenses contra palestinos na Cisjordânia.

A colonização é parte da velha estratégia do premiê Benjamin Netanyahu de dividir para conquistar. Ao invés de enfraquecer o Hamas em Gaza e fortalecer seus rivais do Fatah, a facção mais moderada e secular que governa a Cisjordânia, Netanyahu abandonou Gaza à própria sorte, confiando em suas defesas, e acelerou a colonização na Cisjordânia, desmoralizando ainda mais o já decrépito Fatah. O objetivo era inviabilizar a instauração de um Estado palestino. Desde o primeiro governo Netanyahu, nos anos 90, o número de colonos quadruplicou, de 116 mil para mais de 465 mil.

A atual coalizão com partidos ultranacionalistas e extremistas religiosos levou essa política a um novo patamar. A crise expôs a sua falência. Mas, ao invés de revertê-la, o governo a está intensificando.

A mudança da atitude defensiva para a ofensiva em Gaza era inevitável. Mas Israel recusa tratativas para garantir algum alívio humanitário substancial. Para as perspectivas de longo prazo, a situação na Cisjordânia é, em certa medida, até mais preocupante. A Cisjordânia é o que há de mais próximo de um Estado palestino e o Fatah é o que há de mais próximo de um parceiro para um processo de estabilização política. Mas, em 2022, 146 palestinos foram mortos por israelenses na Cisjordânia e em 2023, antes do ataque do Hamas, já tinham sido ao menos 153. Desde então mais de 140 morreram e multidões foram expulsas de suas casas em verdadeiros pogroms.

Netanyahu deveria renunciar. Sendo isso improvável, deveria ao menos ordenar que os fanáticos retrocedam. Os moderados que passaram a compor o governo com a guerra deveriam fazer o que se espera deles: moderar o governo extremista. Mas nada disso está acontecendo, e, sob a cumplicidade dos moderados, os celerados estão aproveitando o foco em Gaza para aterrorizar a Cisjordânia.

O ataque selvagem do Hamas foi calculado para provocar uma retaliação selvagem de Israel e assim radicalizar mais os palestinos e os antissionistas nos países árabes e em todo o mundo. Desgraçadamente, a tática tem sido, em parte, bem-sucedida.

Israel e o mundo precisam obliterar os radicais do Hamas se quiserem abrir o caminho para a paz. Mas, se Israel não neutralizar seus próprios radicais, a paz ficará cada vez mais distante.

Não é por falta de aviso

O Estado de S. Paulo

Ocupação urbana em áreas de risco de desastres ambientais está desenfreada

O Brasil urbano tem um total de 123 mil hectares ocupados por seus cidadãos em áreas suscetíveis a riscos de inundação, deslizamento, seca e estiagem. O dado de 2022, levantado pelos cientistas do MapBiomas, já seria altamente preocupante sem considerar os incontroláveis efeitos das mudanças climáticas, que tendem a acentuar-se em frequência e agressividade com o tempo. Diante da realidade do aquecimento global expressa nas tragédias deste ano em São Sebastião (SP), Petrópolis (RJ) e Vale do Taquari (RS), o recente mapeamento emite um significativo alerta sobre a urgência de os municípios brasileiros removerem populações de zonas vulneráveis e de risco já declarado. A negligência do poder público, neste caso, será contabilizada em vítimas de desastres perfeitamente evitáveis.

O estudo do MapBiomas expõe o quadro indigno e inaceitável da ausência de planejamento da expansão urbana no País entre 1985 e 2022. As ocupações humanas avançaram aceleradamente sobre territórios que deveriam estar interditados pelas prefeituras à população, se os termos da Lei de Parcelamento do Solo, de 1979, tivessem sido minimamente cumpridos ao longo dos anos.

No período avaliado, entretanto, aumentou em 47%, para 425 mil hectares, a presença em áreas na beira de rios, altamente vulneráveis a inundações. A ocupação em declives acentuados, naturalmente ameaçada por deslizamentos, cresceu cinco vezes em 37 anos. A área já declarada como de risco sofreu expansão de 2,8 vezes desde meados dos anos 1980. Ao atingir 123 mil hectares, no ano passado, correspondeu a 3% da malha urbana do País.

Como se poderia imaginar, o MapBiomas constatou nas favelas a ocorrência de ocupação mais desenfreada sobre áreas de risco. Do território total dessas comunidades densamente povoadas, 18% impõem perigo iminente a seus moradores. Quando considerado também que cerca de 5% da expansão urbana no País desde 1985 deu-se em favelas, torna-se flagrante a negligência das três esferas de governo em proporcionar moradia e condições dignas de vida aos brasileiros ali residentes e em cumprir a lei.

O crescimento desordenado das cidades brasileiras responde pela omissão do poder público ao longo de muitas décadas anteriores aos anos 1980. O inchaço das capitais e grandes cidades, até então, deixou um rastro de mazelas não resolvidas, que se acumulou aos desafios de um processo de urbanização acelerado nas últimas quatro décadas ainda hoje não enfrentados. A conta está em haver. Como alerta o MapBiomas, se em 1985 houve um desastre a cada quatro hectares urbanizados no Brasil, em 2022 essa proporção aumentou cinco vezes. Há risco de tragédia em cada hectare.

O fator climático, agora, não deixa nenhuma fresta para mais negligência sobre a ocupação de áreas vulneráveis e de risco. Ao contrário, cobra urgência na adoção de soluções urbanísticas eficazes e na aplicação da lei. Uma escalada de tragédias ambientais, vislumbrada para um futuro bem próximo, precisa ser ceifada o quanto antes e pela raiz.

Portugal preza a democracia

Correio Braziliense

O socialista António Costa foi obrigado a renunciar ao cargo de primeiro-ministro, que ocupava havia oito anos, após uma megaoperação do Ministério Público que investiga suspeitas de corrupção no governo

Apontado como uma ilha de estabilidade dentro da Europa, que enfrenta duas guerras em suas franjas e tem convivido com conflitos sociais sérios em países como a França, Portugal vive um dos momentos mais tensos de sua história política recente. O socialista António Costa foi obrigado a renunciar ao cargo de primeiro-ministro, que ocupava havia oito anos, após uma megaoperação do Ministério Público que investiga suspeitas de corrupção no governo.

A revelação de que há 20 escutas telefônicas envolvendo Costa em favorecimentos a empresas na exploração de lítio e de hidrogênio verde e na implantação de um data center em uma região portuária deixou os portugueses atônitos. A comoção foi maior quando se descobriu que o então chefe de gabinete do primeiro-ministro, Vitor Escária, guardava 78.500 euros (R$ 417 mil) na sala dele, no Palácio do São Bento, sede do governo.

O vácuo criado pelo pedido de demissão de Costa, muito querido pela população e uma das vozes mais ouvidas na União Europeia, levou o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a anunciar a dissolução do Parlamento, o que ocorrerá em 15 de janeiro de 2024, e a convocar eleições para 10 de março. Esse poder é conferido pelo sistema semiparlamentarista adotado por Portugal. Em pronunciamento à nação, o líder português afirmou que a democracia exige que, novamente, todos aqueles que querem um mandato passem pelo escrutínio da sociedade. Não há por que ter medo do povo.

É evidente que o Partido Socialista (PS), do primeiro-ministro demissionário — ele continuará no posto pelo menos até a votação do Orçamento da União, marcada para 29 de novembro —, que tem maioria absoluta na Assembleia da República, já mostrava fadiga junto ao eleitorado. Com as crises mais recentes provocadas pela pandemia do novo coronavírus e pelo conflito entre a Rússia e a Ucrânia, os portugueses voltaram a conviver com a disparada da inflação, ameaçando o bem-estar social que todos prezam. Em meio ao crescente descontentamento popular, uma série de escândalos derrubou ministros e deu argumentos de sobra para ataques da oposição, sobretudo, a mais radical, posicionada na extrema direita.

O país tranquilo, seguro, que atraiu centenas de milhares de brasileiros nos últimos anos, viu crescer a intolerância contra estrangeiros, que passaram a ser olhados como ameaças em um momento de dificuldades financeiras enfrentadas pela classe média. Não por acaso, tornaram-se frequentes denúncias de xenofobia, com Portugal entrando no mapa dos movimentos anti-imigração, conforme estudo conduzido pela professora Thaís França, doutora em sociologia pela Universidade de Coimbra — um quadro preocupante ante as incertezas políticas.

Teme-se que, com a inclinação do eleitorado para a direita mais radical, Portugal deixe de ser um país receptivo e de fortes avanços institucionais para se tornar sectário, com as portas se fechando para a modernidade e para a diversidade. Ao anunciar a dissolução do Parlamento e a convocação de novas eleições, o presidente da República explicitou a importância de não se retroagir em conquistas que só foram possíveis graças ao amadurecimento da democracia, que completará 50 anos em 2024 no país europeu.

Rebelo de Sousa conclamou os portugueses a escolherem representantes que assegurem a estabilidade e o progresso econômico, social e cultural em liberdade, pluralismo e democracia. "Um governo com visão de futuro, tomando o já feito, acabando o que importa fazer e inovando no que ficou por alcançar", frisou. Os eleitores terão, portanto, quatro meses para avaliar as propostas dos candidatos à Assembleia da República, de onde sairá o futuro primeiro-ministro.

Portugal, que teve uma das mais longas e sangrentas ditaduras da Europa, que manteve a maior parte da população na pobreza, precisa preservar a visão de futuro, em que direitos sejam mantidos e o progresso seja uma realidade. Itália e Hungria estão bem próximas para servir de exemplos de que caminho não seguir.

 

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