O Globo
Fazer pessoas se sentir culpadas por não
sofrer racismo ou machismo não parece ajudar
Privilégio é o jargão político utilizado para
se referir a uma vantagem usufruída por alguém por pertencer a algum grupo
social dominante. Privilégio, nesse sentido, são as diferentes vantagens que um
homem ou pessoa branca têm em relação a uma mulher ou pessoa negra. Fala-se de
“privilégio branco” ou “privilégio masculino”.
Esse uso da expressão “privilégio” é derivado de um pequeno, mas influente, artigo de 1989 da professora universitária e feminista americana Peggy McIntosh, “White privilege and male privilege”. Nesse artigo, McIntosh parte de uma espécie de autorreflexão sobre as “vantagens não merecidas” de que ela usufruía na condição de mulher branca — vantagens que suas colegas e amigas negras não conheciam. A partir desse esforço de autorreflexão, ela lista 46 vantagens não merecidas, coisas como “vou ao supermercado com a convicção de que não serei perseguida pelo segurança”, “tenho certeza de que o material didático que meus filhos usarão terá representantes da sua raça” e “posso me atrasar numa reunião sem que meu atraso seja atribuído a alguma característica da minha raça”.
Todas as 46 situações listadas apontam para
efeitos insidiosos do racismo na vida cotidiana. Mas McIntosh faz uma espécie
de inversão de perspectiva, transformando direitos negligenciados em
privilégios. Na chave do Direito, considera-se que pessoas negras têm o direito
de entrar numa loja sem ser tratadas como potenciais ladrões. Nessa nova
abordagem, da ótica do privilégio, os brancos é que deveriam estar cientes de
que não ser tratados como ladrões potenciais é uma “vantagem não merecida”.
Nesse movimento, troca-se a aspiração por um direito pela culpa. Troca-se
também o destinatário do discurso: enquanto a conquista do direito é orientada
a negros e brancos, o privilégio é orientado apenas aos brancos. Em resumo,
saímos de um discurso universal por direitos para um de autoculpabilização dos
brancos (e dos homens).
McIntosh estava ciente da inversão de
perspectiva que promovia. Logo no começo do artigo, diz que foi educada para
ver o racismo como algo que põe os negros em desvantagem, mas não foi ensinada
a ver o corolário — isso a põe numa situação de vantagem, de usufruir um
“privilégio branco”.
Nada ilustra melhor os efeitos danosos dessa
inversão de perspectiva que uma dinâmica muito difundida nos meios
progressistas, conhecida no Brasil como “jogo do privilégio” e nos Estados
Unidos como “privilege walk”. Funciona assim: todos se colocam
atrás de uma linha como se estivessem na largada para uma corrida — que
representa a busca pelo sucesso na nossa sociedade. Quem conduz a dinâmica
começa a orientar os participantes:
— Dê um passo atrás se seus pais não
concluíram o ensino médio.
— Dê um passo à frente se você aprendeu uma
língua estrangeira num curso pago.
— Dê um passo atrás se, para estudar ou
trabalhar, você se desloca por mais de uma hora no ônibus ou metrô.
E assim por diante. Ao fim do jogo,
privilegiados e oprimidos estarão separados por dezenas de passos, demonstrando
as iniquidades estruturais que organizam a corrida antes da largada.
O jogo deveria servir para conscientizar os
participantes da extensão de seu privilégio e torná-los mais sensíveis às
demandas de negros, mulheres e LGBTQIA+. No entanto, tendo já presenciado
algumas dessas dinâmicas, nunca vi que tenham produzido mais do que embaraço,
vergonha e autoconsciência culpada.
O discurso do privilégio se propõe a superar
as iniquidades sociais, mas é muito difícil entender como colabora para isso.
Afinal, fazer pessoas se sentir culpadas por não sofrer racismo ou machismo não
parece ajudar muito na promoção dos direitos. Alguns sociólogos começam a ver
essa gramática de culpa dos movimentos como uma espécie de substituto da
religião, que, na prática, está orientada a promover rituais que condenam,
fazem confessar e expiar os erros.
Não ganhamos nada fazendo com que o exercício
regular dos direitos seja entendido como privilégio e vivido de maneira
culpada. Precisamos, urgentemente, é que esse direito, hoje usufruído apenas
por alguns, seja universalizado para todos.
Excelente!
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