O Estado de S. Paulo
As décadas de relativa paz que sucederam à
grande guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar e é
preciso lembrar de onde viemos
Existiram um dia a Ucrânia, a Palestina,
Israel, e têm direito de continuar existindo? Como? São perguntas que afloram
ao ler A Ucrânia de cada um, livro organizado por Flávio Limoncic e Monica Grin
na emoção da guerra fratricida da Ucrânia, publicado agora à sombra da também
fratricida batalha de Gaza.
Não é um livro propriamente sobre a Ucrânia nem sobre as guerras, mas um conjunto de relatos e testemunhos de descendentes de judeus do leste europeu que sobreviveram ao holocausto e reconstruíram sua vida no Brasil e em outros países das Américas. São memórias pouco conhecidas, porque a velha geração preferia poupar os filhos das histórias de sofrimento e horror por que passou. E estes, estimulados a construir sua vida no novo mundo, olhavam para a frente, nem sempre com tempo e espaço interno para os relatos de seus pais. Agora, as décadas de relativa paz que sucederam à guerra parecem estar se esgotando, os fantasmas voltam a assombrar e é preciso lembrar de onde viemos.
Os velhos se foram, os filhos e netos
amadureceram e buscam nos fragmentos de memória, em velhos papéis e
fotografias, em registros e nas redes de internet as histórias de seus pais e o
sentido de suas origens. Para alguns, os documentos e as histórias familiares
foram mais preservados. Mas para a maioria o que resta são pouco mais que
referências desencarnadas de localidades e pessoas que mudaram de nomes ao
sabor das migrações, das diferentes línguas e dos poderes que se alternavam no
domínio de cada uma das antigas cidades e regiões – Vilna, Minsk, Volhynia,
Podolia, Lublin, Galicia, Edinet, Kishinev – quase todas hoje partes da
Ucrânia, da Moldova e da Polônia.
As histórias familiares fazem parte da
identidade de cada um, mas não determinam seu destino. Em razão do que passou,
é inevitável que os relatos de perseguições, guerras e estratégias de
sobrevivência sejam o que mais aparece. Mas existem outras histórias
importantes a ser contadas. A da persistência de uma forte cultura local,
baseada numa língua comum e em instituições comunitárias, de cunho religioso ou
não, que estruturavam a vida no dia a dia nas pequenas localidades da Europa
oriental; uma cultura do cotidiano que encontrou expressão numa importante
tradição literária que acompanhou as levas de imigrantes que partiram para as
Américas e que, aos poucos, vem desaparecendo com a perda de lugar do ídiche
como a língua franca destes povos. A do judaísmo renovado, seja pela volta à
tradição do messianismo religioso do hassidismo, seja no sionismo secular em
suas diferentes vertentes. Ou, finalmente, pela busca de identidades novas:
participar da cultura cosmopolita, profissional, universitária, científica e
empresarial que se desenvolvia na Europa e nas Américas, ou se filiar aos
movimentos políticos e sociais de esquerda que se formavam, pela militância nos
sindicatos e partidos socialistas e comunistas locais. Não fossem o
nacionalismo e o nazismo, a integração de parte dos judeus na sociedade e na
cultura de países europeus como Alemanha, Áustria e Polônia teria sido tão
bem-sucedida quanto o foi nos Estados Unidos e na Europa Ocidental.
A Ucrânia foi por muito tempo lugar de
coexistência de russos, ucranianos e judeus de diferentes identidades, da mesma
forma que a antiga Palestina tem sido, por séculos, lugar de coexistência de
árabes cristãos, judeus e muçulmanos. Nem sempre foi uma coexistência pacífica,
mas os historiadores falam mais dos momentos dramáticos de guerras e conflitos
do que dos longos tempos de paz, que também existiram e precisam ser
reconhecidos e apreciados.
Meu tataravô materno, no século 19, fazia
parte da próspera comunidade judaica de Varsóvia e decidiu, por razões
religiosas, terminar sua vida em Sfat, a cidade sagrada da Cabala. Era na
antiga Palestina, parte do Império Turco, para onde haviam ido muitos dos
sábios judeus expulsos pela inquisição espanhola, onde nasceu minha mãe. Meu
pai se dizia romeno, nascido numa das pequenas aldeias da Bessarábia, hoje
parte da Moldova, e recentemente soube que minha avó paterna pode ter nascido
em Vinnytsia, na Ucrânia. Os avós de minha mulher eram árabes cristãos, sírios
e libaneses, que mandavam as moças da família a uma escola católica em Haifa,
hoje parte de Israel, e nossos filhos são cidadãos do mundo.
Nada disso nos dá uma solução simples para as
guerras de hoje, mas fica, ao menos, um princípio moral que nos ajuda a pensar.
Na apresentação do livro, Flávio e Monica citam Bashevis Singer dizendo que, na
língua ídiche, não havia palavras para designar armas, munições, exercícios
militares ou táticas de guerra. Hoje, são estas as palavras que mais se ouvem
nos conflitos do Oriente Médio. Não parece que haja outro caminho para a região
senão a plena implementação dos acordos de Oslo, com a constituição de um
Estado palestino autônomo e viável. Pode ser que nunca se chegue lá, da mesma
forma que o nacionalismo e o racismo destruíram as esperanças de paz depois da
Primeira Guerra Mundial. Mas não podemos perder a lucidez que adquirimos ao
reencontrar as origens e possibilidades de cada um de nós.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira
de Ciências
Excelente artigo!
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