Folha de S. Paulo
Mexer nas regras do jogo para escapar de
punições por excesso de gasto causa o dano maior
Até o início da noite desta terça-feira (31),
os ministros mais envolvidos na querela do déficit zero não tinham ideia do que
o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
decidiria a respeito do assunto. Fernando
Haddad estava em reunião no Planalto. Na sexta-feira (3), deve haver
uma ou várias reuniões ministeriais com Lula. Talvez tratem também da mudança
da meta.
Mas esse sururu e tanta fofoca é o mais
importante? Discutir se a nova meta é 0,25% ou 0,5%? Não.
Ninguém sabia dizer se Lula mandaria emendar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO, onde estão definidas as metas dos próximos anos) até a semana que vem. Ou se pediria ao Congresso que fizesse a emenda mais tarde, a depender do destino da lei que manda cobrar imposto federal sobre parte das isenções de ICMS.
Parlamentares não gostam desse projeto, em
particular nos estados mais animados da guerra fiscal; governadores e empresas
amigas fazem lobby para derrubá-lo, assim como têm tentado barrar outros planos
de Haddad.
A nova meta de déficit primário vai ser de
0,25% do PIB ou
de 0,5% do PIB? Parte da "ala política" do governo queria 0,5% desde
a discussão da meta de déficit, no primeiro terço do ano. É o debate essencial?
Como se sabe, era quase geral a opinião de
que o governo dificilmente cumpriria a meta de déficit primário zero em 2024
(saldo primário: receita menos despesa, afora gastos com juros). Então, tudo
bem ajustar a meta? Não.
Primeiro, por motivos políticos. Relaxada a
meta, o Congresso vai estar ainda menos disposto a arrumar encrenca com gente
poderosa e rica, cobrando mais imposto.
Segundo, mudar a meta, permitir mais déficit
primário, diminui um tanto a chance de o governo descumpri-la. Não seria
preciso fazer tanto corte de despesa, tudo mais constante.
Mais importante, fica assim mais fácil
escapar das punições pelo descumprimento do objetivo, previstas pela lei do
"arcabouço fiscal". Por exemplo, se a meta é descumprida, o aumento
de gasto para o ano seguinte tem de ser menor, entre outras possíveis
restrições.
O problema maior é, pois, a mudança das
regras do jogo mesmo antes de o jogo começar, a fim de evitar as restrições de
excesso de gasto, que são a essência do arcabouço fiscal.
Assim, aumenta a expectativa de que a dívida
pública cresça ainda mais rápido. O primeiro efeito dessa degradação de
expectativas é o aumento das taxas de juros no mercado, o que eleva os custos
de financiamento do governo e de empresas.
É verdade que o governo tem de lidar com
problemas que não criou: isenções fiscais legais ou arrumadas na Justiça;
heranças da baderna criada pelas trevas de Jair Bolsonaro; queda inesperada de
receita. Mas o governo foi obviamente imprudente: aumentou despesa além da
conta. O gasto previsto para 2024 é de 19,2% do PIB.
Até junho deste ano, a receita líquida
acumulada em 12 meses caía 3,2%; a economia,
porém, o PIB, crescera 3,2%. É um resultado um tanto anormal. Em agosto, a
receita líquida equivalia a 17,6% do PIB (dado calculável mais recente). Antes
da epidemia (fevereiro de 2019), estava em 18,3% do PIB. Em agosto do ano
passado, em 19,2% do PIB. Inflações, preços de commodities etc. encheram as
burras do governo anterior.
Por ora, não há muito otimismo sobre o PIB do
ano que vem. De resto, sabe-se lá se a receita vai se recuperar, se vai ser
mais compatível com o ritmo do PIB (isto é, desconsiderados os aumentos de
impostos planejados). Sabe-se lá se os aumentos previstos de impostos vão
render tanto quanto a Fazenda imagina.
Tendo em vista tamanha barafunda de
problemas, talvez Lula esteja certo. O que é 0,25% do PIB? Em si mesmo, talvez
pouco, em termos fiscais. Em termos de despesa, em "obras", também
não vai fazer muita coceira no PIB, se alguma.
O problema maior, por ora, é chutar o pau que
segura o novo teto de gastos, o teto móvel de Lula, que já não era lá muito
firme ou rigoroso. Prejudica expectativas, taxas de juros, o crescimento
possível. É um tiro no pé.
Sei.
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