Carta Capital
A nova política industrial substitui os
“campeões nacionais” por nichos ou missões
Antes do fim do ano, o recriado
Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial pretende
entregar ao presidente Lula uma
proposta para o setor. Segundo o CNDI, será o primeiro projeto abrangente desde
a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior anunciada oito anos
atrás. De modo semelhante às iniciativas anteriores, a proposta procura
organizar um conjunto de ações, coordenadas entre os setores público e privado,
para ampliar a competitividade da indústria doméstica e impulsionar o
crescimento econômico, o emprego e o desenvolvimento, em sintonia com as
tendências contemporâneas.
A nova política industrial traz, contudo, diferenciais importantes em relação às formulações precedentes. Além da indispensável vinculação à digitalização e à descarbonização, há o objetivo de suprir necessidades prementes da sociedade. Outra novidade é a sua estruturação segundo o conceito de missões, em lugar de setores econômicos. A nova política industrial “traça o caminho do desenvolvimento de uma indústria nacional forte, inovadora, sustentável e inclusiva”, descreve a edição da newsletter de dezembro do Conselho.
Saúde, segurança alimentar, infraestrutura e
transformação digital entre as prioridades
Com o investimento público encurralado entre
a pressão permanente do sistema financeiro para o corte de gastos e
investimento público e a voracidade ilimitada das emendas parlamentares,
desvinculadas das prioridades públicas, seria ilusório esperar uma política
industrial ampla e profunda, mas vários economistas reconhecem virtudes nas
principais diretrizes da chamada neoindustrialização. “A grande diferença é o
formato. Ele visa endereçar os grandes problemas da sociedade, em lugar de
encaminhar políticas setoriais. É óbvio que setores importam, mas não definem
as prioridades”, esclarece Verena Hitner, secretária-executiva do Conselho. O
colegiado é formado por 20 ministérios, o BNDES e 21
representantes da sociedade civil, 16 deles oriundos de entidades industriais,
três de centrais sindicais, um da Embraer e um do Instituto de Estudos para o
Desenvolvimento Industrial.
Presente ao lado do vice-presidente, Geraldo
Alckmin, e do ministro da Casa Civil, Rui Costa, na primeira
reunião do conselho, em junho, Lula deverá participar do lançamento da nova
proposta. Neste semestre, foram criados grupos de trabalho vinculados a cada
uma das missões, para identificar gargalos, e outros dois grupos, um deles
responsável por coordenar ações de fomento e as linhas e os nichos considerados
prioritários. “O presidente Lula, no fim da primeira reunião, perguntou quais
nichos industriais o País quer desenvolver. Um pouco pensando na resposta a
essa pergunta, criamos esse grupo, aproveitando o momento em que o Congresso
aprovou a taxa de referência tanto para a Finep, a financiadora de projetos,
quanto para o BNDES”, ressalta a secretária-executiva.
A primeira das seis missões de política
industrial é constituir cadeias industriais sustentáveis e digitais para a
segurança alimentar, nutricional e energética. A segunda é consolidar um complexo
econômico e industrial da saúde resiliente, para reduzir a
vulnerabilidade do SUS em
relação ao suprimento externo e ampliar o acesso à saúde. A terceira abrange
infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para integração
produtiva e o bem-estar nas cidades. A quarta é a transformação digital da
indústria para ampliar a produtividade, e a quinta está centrada na
bioeconomia, descarbonização, transição e segurança energética para
garantir recursos às próximas gerações. A sexta missão visa o desenvolvimento
das tecnologias de interesse da soberania e defesa. Para cada missão estudam-se
linhas de fomento específicas, sempre a partir da lógica de promoção de
direitos da sociedade.
Um dos nichos prioritários tende a ser o
Complexo Econômico-Industrial da Saúde, que une a promoção do direito do acesso
à saúde ao desenvolvimento de setores e nichos industriais, da produção de
insumos farmacêuticos ativos a máquinas e equipamentos. Um dos objetivos é
assegurar a produção no Brasil de ao menos 60% do suprimento do SUS, que
realiza compras gigantes hoje abastecidas na maior parte por indústrias
localizadas no exterior.
Em ações que concretizam as novas orientações
de política industrial, o Ministério da Saúde abriu as consultas públicas do
Programa de Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo e o Programa de
Desenvolvimento e Inovação Local, que visam “expandir a produção nacional
de itens prioritários para o SUS, contribuir para a redução das
vulnerabilidades em saúde e viabilizar o acesso universal ao atendimento e aos
cuidados com a saúde”. Em novembro, foram lançados cinco editais do programa
Mais Inovação Brasil, com linhas de financiamento aprovadas pelo CNDI, voltadas
ao financiamento de projetos de transição energética, bioeconomia,
infraestrutura e mobilidade, em um investimento total de 20,8 bilhões de reais,
parte dos 60 bilhões de reais do programa. “Vejo com bons olhos a nova política
industrial e as políticas de neoindustrialização. Partem de um diagnóstico
amplo e correto e, dentro do possível, estão concatenadas, começam a sair do
papel. Guardam nexos entre si, estão bem relacionadas. Política industrial é de
longo prazo, a economia tem de crescer, mas não há crescimento nem
transformação estrutural sem investimento, e a política industrial fica muito a
reboque”, afirma Antônio Carlos Diegues, professor do Instituto de Economia da
Unicamp.
Entre a pressão do setor financeiro e a
voracidade do Congresso, seria ilusório esperar uma política ampla e profunda
É preciso entender, ressalta Diegues, que a
disputa de política industrial no mundo é muito forte, os volumes utilizados
pelos países situados na fronteira tecnológica são gigantescos. E neste
momento, infelizmente, com a correlação de forças políticas atual e dado o
baixo crescimento da economia brasileira, contar com volumes e recursos
proporcionais aos daqueles países é impossível. O economista acredita, contudo,
que há uma mobilização “bastante inteligente” de recursos em patamares não
desprezíveis para a política industrial. Há uma leitura de que uma parte
importante dos programas tem de ser feita por projetos que não necessariamente
passem pelo Congresso, onde o risco de desconfiguração por ações de lobbies é
real. Aquele encaminhamento permite que os programas sejam mais suscetíveis a
avaliações técnicas e a perdurarem por um tempo mais longo.
Um aspecto importante, diz Diegues, é o fato
de os operadores da nova política concordarem em colocar a inovação no centro
do debate. “Isso esteve menos presente, mesmo na Política Industrial,
Tecnológica e de Comércio Exterior, de 2004, na Política de Desenvolvimento
Produtivo, de 2008, e no Plano Brasil Maior, de 2011. Não há como manter um
crescimento sustentável sem investimento associado à inovação e à renovação
estrutural.”
O Programa BNDES Mais Inovação – Aquisição de
Bens Inovadores, acrescenta, tem essa leitura, pois financia tecnologias e
áreas, mas não necessariamente grandes empresas de campeões nacionais.
“Financia as áreas mais nobres. Claro que, na prática, vai acabar financiando
as grandes empresas, mas esse direcionamento consegue contornar uma resistência
grande da sociedade em relação a se financiarem os grandes campeões nacionais,
por conta de desdobramentos da Operação Lava Jato.” Ao colocar essas atividades
como de inovação, prossegue, o governo consegue contornar as limitações quanto
às taxas de juro dos empréstimos do BNDES. Financiamento para inovação pode ter
juros mais baixos, uma estratégia “bastante inteligente”.
Escapar do cerco do sistema financeiro e do
Congresso, dominado por interesses individuais, de modo a aumentar os recursos
para a neoindustrialização, é muito difícil, avalia Diegues. “O que é possível,
no atual contexto, é retomar marginalmente o crescimento. Isso vai dando uma
sustentabilidade política maior para o governo e cria espaço para gerar um
circuito gasto-renda que melhore um pouco as contas públicas.”
Diegues considera que os responsáveis pela
formulação da política industrial “entenderam bem” que reindustrialização
significa olhar para a desindustrialização brasileira e compreender os desafios
da transformação do paradigma tecnoprodutivo atual e da evolução da fronteira
tecnológica, associadas à indústria 4.0, assim como a necessidade de se ter
resiliência nas cadeias produtivas estratégicas, como aquelas da saúde e de
energia, entre outras. “Acho também que a ideia de neoindustrialização é
importante porque ela leva em conta a desindustrialização anterior, mas entende
que há coisas que se perderam e que são difíceis de retomar, ou que não devem
ser retomadas. É um reconhecimento de que o mundo mudou.”
O economista faz duas ressalvas. A primeira é
de que o programa Brasil Mais Produtivo, bem-sucedido, precisa ser
“consideravelmente ampliado”, ter escala, aumentar a produtividade e a inovação
nas pequenas e médias empresas. A segunda é de que o investimento para bens de
capital deveria, a seu ver, ser mais incentivado no sentido até de isenção
tributária para máquinas e equipamentos. •
Publicado na edição n° 1290 de CartaCapital, em 20 de dezembro de 2023.
Drummond...
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