Carta Capital
Neste primeiro ano, Lula viu-se obrigado a
lidar com as consequências da anormalidade bolsonaresca
O terceiro governo Lula começou sob
condições bem diferentes daquelas de sua primeira passagem pela Presidência,
entre 2003 e 2010. À época, Lula recebeu de Fernando
Henrique Cardoso um país, um governo e uma economia
organizados. As relações com o Congresso, o Poder Judiciário e os entes
subnacionais se davam tranquilamente, mediadas pela institucionalidade
democrática. A política externa andava bem, com o Brasil em posição de destaque
no cenário internacional, graças à manutenção das melhores tradições do Itamaraty e à atuante
diplomacia presidencial de FHC.
No atinente às políticas públicas, programas
governamentais haviam avançado nos últimos anos, dando seguimento ao esperado
aprimoramento incremental que permite consolidar e corrigir rotas – algo
possível em Estados política e administrativamente estáveis. Assim, Lula pôde
aprimorar e aprofundar programas iniciados pelo antecessor, como o Bolsa
Escola, convertido em Bolsa Família, ou o Fundef, transformado em Fundeb.
Sob Bolsonaro, o presidencialismo de coalizão converteu-se em um presidencialismo de abdicação.
Por isso, as menções lulistas a uma “herança
maldita”, deixada pelo tucano, eram peça de retórica da competição partidária
entre PT e PSDB, não descrição acurada do que se passava. As administrações
petistas puderam avançar a partir de base consistente que, a despeito de
divergências programáticas, permitiu ao novo governo implementar sua própria
agenda, modificando prioridades e estabelecendo novos rumos, sem ter, contudo,
a preocupação de apagar incêndios ou construir do zero as fundações da
governabilidade.
Resumindo: em 2003, sucedendo a um governo
normal, Lula deu início a outro governo normal.
A situação herdada de Jair Bolsonaro é, no
entanto, completamente distinta. Em 2023, teve início um governo normal
operando num contexto político e institucional transformado pela anormalidade
bolsonaresca. Lula recebeu
uma administração pública devastada e um Congresso empoderado e muito mais à
direita do que em qualquer momento posterior ao fim da ditadura. O Brasil
estava isolado internacionalmente, transformado em pária pela política externa
lunática de Ernesto Araújo e pela boçalidade diplomática do então presidente. O
suposto mago das finanças, Paulo Guedes,
deixou como herança um imenso passivo fiscal e uma população empobrecida, duas
coisas a serem corrigidas por um governo que, diferentemente do que acabava,
enfrentaria o preconceito ideológico de agentes do mercado financeiro.
Não bastassem tais devastações, a sociedade
se via mergulhada numa polarização assimétrica e radicalizada. Assimétrica
porque opondo uma extrema-direita, o bolsonarismo,
a uma esquerda democrática, representada pelo petismo. Até mesmo antigos
detratores das gestões petistas foram obrigados a reconhecer isso, mudando sua
forma de se referir ao partido, a Lula e a seu governo. Isso ficou
especialmente claro no novo tratamento dispensado à gestão petista pelos
veículos de mídia. O trauma gerado pela fúria antijornalística do extremismo
bolsonaresco, outrora normalizado, produziu notável mudança de abordagem.
Nesse contexto, a primeira tarefa do novo
governo seria reconstruir a administração e as políticas públicas, bem como as
relações entre os três poderes, com outras nações e com a mídia. Foi exatamente
o que se verificou durante o primeiro ano de Lula III. Políticas públicas
desmontadas ou desorganizadas foram retomadas: o Bolsa Família,
as políticas ambiental, indigenista e cultural, saúde, educação e direitos
humanos, a política externa e o PAC, para ficarmos apenas
em alguns exemplos. O governo foi com alguma frequência criticado por retomar
projetos do passado, como se nada de novo tivesse a apresentar e, assim, apenas
requentasse o velho. Há um equívoco nessa crítica. Não se trata de reciclar
velharias, numa abordagem saudosista de coisas superadas, mas de eliminar a
solução de continuidade que o bolsonarismo impôs a programas que governos
normais talvez alterassem, ajustassem ou aprimorassem, mas não descontinuariam.
O esperado de qualquer governo normal seria mesmo retomar o desfeito, cuja
continuidade é indispensável ao aprimoramento de políticas públicas no longo
prazo.
Outra face da reconstrução foi o desmonte do
autoritarismo infralegal bolsonarista, que, mediante decretos e portarias, sem
passar pelo Congresso,
desestruturou ou sufocou financeiramente áreas da burocracia pública (como o
meio ambiente, a saúde e a educação), espaços de participação da sociedade
civil (como diversos conselhos) e setores regulados dado seu caráter sensível
(como o do armamento). Sem que se revissem as normas infralegais, sob
responsabilidade direta do Executivo, seria impossível remontar a administração
governamental e suas áreas de políticas.
O “orçamento secreto” tomou nova forma e o
Congresso continua a definir o destino dos recursos públicos.
A propósito do Congresso, aliás, é na
interação com ele que dificuldades de tipo novo e bastante consideráveis
surgiram. Desde o primeiro ano do segundo governo de Dilma
Rousseff o Legislativo ganhou
poder. O primeiro passo nesse empoderamento foi, em 2015, a aprovação da Emenda
Constitucional 86, que tornou obrigatória a execução de emendas orçamentárias
individuais de deputados e senadores. Com isso, o Executivo perdeu um
instrumento de barganha com os parlamentares, importante na composição e
disciplinamento de sua base legislativa.
Não foi casual a aprovação dessa mudança
constitucional em 2015: uma presidente frágil, inapetente para a relação com o
Legislativo (e, por isso mesmo, removida do cargo pouco tempo depois), deixou
espaço aberto para o Congresso avançar sobre seus poderes. Bolsonaro, de outra
maneira, abriu espaço para novas investidas de mesmo teor.
Se Dilma não tinha apetite ou habilidade para
a negociação legislativa, Bolsonaro dela abdicou ao fazer duas coisas: 1
desistir de tentar construir uma coalizão parlamentar e 2 de liderar sua base
legislativa. Como verbalizou mais de uma vez, após enviar propostas
legislativas ao Congresso, Bolsonaro entendia que sua apreciação era problema
apenas dos congressistas, não mais dele. Ora, mas o sistema presidencial
brasileiro supõe que o chefe de governo assuma o papel de principal articulador
político e líder de uma base congressual. Ao se desincumbir dessa
responsabilidade, Bolsonaro trocou o presidencialismo de coalizão por um
presidencialismo de abdicação.
Consequentemente, era previsível que o
Congresso avançasse sobre o novo espaço de poder desocupado, como de fato
aconteceu. Tomou forma um governo congressual, com os presidentes das duas
casas do Legislativo, em especial o da Câmara, assumindo o papel de principais
coordenadores e líderes do processo decisório, mais do que só definir a pauta
das casas que chefiavam.
Uma consequência foi a Emenda Constitucional
100, de 2019, criando a obrigatoriedade também da execução de emendas
orçamentárias das bancadas estaduais – reduzindo ainda mais a margem de
negociação do Executivo. Outro efeito, na sequência, foi a hipertrofia das
emendas do relator do orçamento (RP9), aumentando o controle parlamentar sobre
os gastos, originando o famigerado “orçamento secreto”, que mesmo declarado
inconstitucional pelo Supremo, não desapareceu, assumindo formato dissimulado
com as emendas de despesas discricionárias do Executivo (RP2). Na prática, os
congressistas – em especial o presidente da Câmara – seguiram a definir onde o
Executivo deveria alocar o dinheiro, sem necessariamente enquadrar tais
dispêndios em prioridades de uma agenda governamental estruturada de políticas
públicas. É com a institucionalização desse tipo de relação
Executivo-Legislativo que Lula tem de governar em seu terceiro mandato.
Não bastasse a mudança estrutural resultante
das alterações institucionais, as eleições de 2022 produziram a legislatura
mais direitista desde 1986, complicando o trabalho de um presidente de
esquerda. Os partidos de adesão que compõem o Centrão mudaram de composição nos
últimos anos, em especial durante o quadriênio bolsonarista. Parte
considerável de suas bancadas tornou-se ideologicamente mais rígida,
abandonando o tradicional adesismo, que hipotecava apoio aos governos como
contrapartida do acesso a cargos e verbas. Isso obriga o governo a dispor
desses recursos sabendo que contará com o apoio de apenas parte das bancadas,
numa lógica de redução de danos.
Em contrapartida, Lula restabeleceu uma
relação respeitosa e republicana com governadores e com o Poder Judiciário.
O contexto, portanto, é de muita dificuldade
para Lula nas relações com o Congresso, devendo seguir inalterado durante todo
o mandato. Mesmo assim houve importantes sucessos legislativos, como a adoção
do novo marco fiscal e a reforma tributária, conquistas devidas principalmente
à habilidade política, antes pouco notada, do ministro da Fazenda, Fernando
Haddad.
Não menos importante, deve-se destacar uma
atuação mais respeitosa e cooperativa com os governos subnacionais e o Poder
Judiciário. Submetidos a constante estresse institucional durante o quadriênio
anterior, passaram a ter no Executivo Federal um interlocutor, sobretudo após a
intentona de 8 de janeiro.
Assim, ao menos até a próxima eleição presidencial, temos de volta a
normalidade, ainda que em tempos difíceis.
*Cientista Político na FGV-EAESP
Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital,
em 27 de dezembro de 2023.
Excepcional!
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