O Globo
Trump deseja vingança contra seus opositores
políticos, contra o cerco jurídico que se estreita
Sem querer estragar o Natal de ninguém, é bom ficar atento desde já: 2024 será o ano de Donald Trump. Seja como reeleito para a Casa Branca, seja como condenado num dos quatro processos criminais a que responde, ou ainda como figura que a toda hora ameaça atear fogo às vestes para dominar o noticiário. Neste último quesito, ele é imbatível. Em recente entrevista à emissora de maior audiência no país, declarou que atuará de forma ditatorial se reeleito — mas somente no primeiro dia de governo. Boa parte da grande imprensa deu-lhe o que ele queria: a manchete, seguida de incredulidade ou pouco-caso. David Brooks, o colunista conservador do New York Times, resumiu essa postura ao escrever que, desta vez , não levou as palavras de Trump a sério, pois eram mera brincadeira com seus seguidores. A claque, de fato, adorou.
Exímio comunicador que comandou 14 temporadas
de “O aprendiz” antes de se interessar por política, Trump está testando o
terreno. Desde a entrevista, faz questão de encaixar o novo epíteto “ditador
por um dia” em comícios aqui e acolá. O truque de repetir algo extravagante à
exaustão até que seja normalizado é velho, porém eficaz, pois entorpece a
crítica. Ele sempre recorreu ao expediente e, quando bate num muro de
resistência, sai-se com um “era só brincadeirinha para irritar a mídia”. Vale
lembrar que, antes de perder a eleição para o democrata Joe Biden em 2020,
Trump aventou a hipótese de ficar no poder muito além dos dois mandatos
permitidos pela 22ª Emenda Constitucional. Brincadeirinha...
O esboço de seu programa de governo para um
eventual segundo mandato destaca não só o que deixou inconcluso, como a
intenção de alargar todos os poderes federais, a começar pelo dele. O ponto de
partida seria a deportação em escala inédita de refugiados e imigrantes sem
documentação legal. Em seguida, facilitaria a demissão de servidores públicos
federais não trumpistas, instituindo um teste novo para 2,87 milhões de
funcionários com estabilidade. Prioridade também para o desmantelamento do
Departamento de Estado, da burocracia pantagruélica da Defesa e dos serviços de
inteligência que, no seu entender, impedem os Estados Unidos de voltar a ser
grandes.
— Em 2016, declarei que seria a voz de vocês.
Hoje — prometeu em comício recente — acrescento que serei o guerreiro, o
justiceiro de vocês. Todos os traídos e injustiçados terão em mim seu vingador.
Pela proposta de Trump, a ortodoxia
conservadora de Ronald Reagan, segundo a qual governo é problema, não solução,
será enterrada. Sob sua autoridade, o poder do Estado será ampliado e deverá
atuar em questões que historicamente sempre foram da esfera estadual.
Um dos projetos abandonados no primeiro
mandato por ter sido considerado inexequível foi ressuscitado com os mesmos
contornos exóticos: a abertura de uma licitação nacional para a construção de
dez cidades novinhas em folha, do tamanho de Washington (177 km2), erguidas em
terrenos federais sem uso. Essas cidades futurísticas, moldadas em projetos
urbanísticos de regimes repressivos como Emirados Árabes Unidos e Arábia
Saudita, seriam controladas. A segurança estaria em mãos de uma “superforça
policial”, informa o Washington Post.
No mesmo embalo, Trump estipulou que a
arquitetura urbana em cidades já existentes deverá seguir o “estilo clássico
americano”; ruas e escolas passarão a ter “nomes patrióticos, não de
comunistas”, e monumentos celebrarão os “verdadeiros heróis americanos”. Sua
visão sobre como solucionar o crescente problema dos dependentes químicos e
moradores de rua é simples: remoção forçada para cidades-tendas fora do
perímetro urbano. E reintrodução imediata da perversa abordagem e revista
policial conhecida como stop-and-frisk, que sempre resultou em perversa
filtragem racial.
Aclimatar a nação ao pulso autoritário,
expondo cedo e com frequência suas intenções, é a estratégia central do
candidato.
— Vou erradicar os comunistas, marxistas,
fascistas e radicais de esquerda que vivem como vermes dentro de nossas
fronteiras — prometeu em comício no mês passado.
O Trump 2.0 não é o mesmo que concorreu em
2016 com gaiatice — ele mesmo não acreditava que venceria. Tinha apenas duas
ideias fixas: acabar com a imigração e apoiar o protecionismo. Hoje, sustenta
David A. Graham, da Atlantic, o desejo de vingança contra seus opositores
políticos, contra o cerco jurídico que se estreita e a humilhação da derrota
eclipsam todo o resto.
Em essência, são apenas duas as instituições
que poderão barrar sua insensatez autoritária, se eleito: o Departamento de
Justiça e o comando das Forças Armadas. Trump 2.0 perdeu o direito ao benefício
da dúvida — ele é, de fato, candidato a usurpador do poder por eleição. Sem
brincadeirinha.
Perigo à vista.
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