O Globo
É imperativo computar na biografia de
Kissinger horrores praticados no Vietnã, Camboja, Laos, Timor-Leste...
“Eu não desejo que Henry Kissinger descanse
em paz”, fez saber ao mundo o dramaturgo de cidadania tripla
(argentino-chileno-americano) Ariel Dorfman. Em artigo sobre a morte
do artífice da realpolitik que moldou o mundo, Dorfman lamenta
Kissinger ter podido morrer em paz, ainda influente aos 100 anos, na Washington
que tanto o idolatrou e adulou, fora do alcance de qualquer tribunal
internacional. “Espero, ao contrário, que os fantasmas das multidões por ele
desgraçadas atormentem sua memória e persigam sua biografia”, escreveu o autor
de “A morte e a donzela”.
Formalmente, Kissinger comandou a política
externa dos Estados Unidos por
menos de dez anos (1969 a 1977), mas suas pegadas na cartografia
político-mundial são indeléveis. Primeiro como assessor de Segurança Nacional,
depois como secretário de Estado nos governos Richard Nixon e Gerald Ford,
dedicou seu formidável intelecto e exercitou todo o seu poder na busca de ordem
entre as grandes potências. O mundo ao sul do Equador lhe foi meramente
acessório.
— Não tenho qualquer interesse, tampouco
tenho conhecimento da porção do mundo situada abaixo dos Pirineus — comentou em
1969 por ocasião de uma recepção em embaixada sul-americana.
A um diplomata chileno, explicou por que
pouco entendia do país do interlocutor:
— Nada de importante pode vir do Sul. O eixo
da História começa em Moscou, passa por Bonn, cruza o Atlântico até Washington
e segue para Tóquio. O que acontece no Sul não tem importância.
Essa dicotomia fez com que ele conseguisse
analisar de perto o mundo que lhe interessava. Manteve até o fim da vida
clarividência sobre grandes questões como o futuro da Europa, a questão Rússia x Ucrânia, China x Taiwan, até
mesmo Israel x
palestinos. Em contrapartida, nunca estendeu sua visão realista da História
para além do nariz. Kissinger considerava movimentos de protesto uma ameaça à
estabilidade global, justificando assim seu apoio a regimes e métodos ignóbeis
de repressão mundo afora.
— Não vejo por que devemos ficar parados e observar um país se tornar comunista pela irresponsabilidade de seu povo — foi seu resumo à derrubada do presidente chileno, democraticamente eleito, Salvador Allende.
Até hoje, passados 50 anos, ainda não se tem
rastro de 1.162 desaparecidos no Chile, sem contar os mortos e torturados no
arrastão empreendido pelos militares vitoriosos. No lado B da biografia de
Kissinger, é imperativo computar horrores praticados no Vietnã, no Camboja e Laos, no Timor-Leste e
Chipre, no Uruguai e Argentina, na
Nova Guiné e Bangladesh,
na África
do Sul e Angola...
A lista é extensa. As vítimas, sempre cidadãos do Sul global, não tinham peso
moral ou político no “eixo da História” que interessava a Kissinger.
De início, sua corresponsabilidade nesses
horrores respingou só de leve em sua extraordinária trajetória. Com o passar
dos anos, porém, e à medida que documentos sigilosos do governo americano foram
se tornando públicos, as manchas deixadas por suas pegadas aumentaram. Hoje
tornaram-se indissociáveis de seu legado.
Data de 2001 a publicação do mais contundente
livro-libelo contra o personagem. Intitulada “The trial of Henry Kissinger”, do
polemista britânico Christopher Hitchens, a obra pretende demonstrar que o
estadista mais relevante do século XX é, também e sobretudo, um criminoso de
guerra. Na escrita ácida de Hitchens, sua realização maior e mais singular “foi
conseguir ser chamado de doutor por meio mundo”. Data também de 2001 o primeiro
sinal de limites à vida do ex-estadista tornado consultor da elite global. Na
manhã de 29 de maio daquele ano, hospedado numa suíte do Hotel Ritz, em Paris,
recebeu uma indigesta intimação judicial. O juiz Roger Le Loire o convidava a
comparecer como testemunha ao tribunal, a pedido do advogado de vários cidadãos
franceses desaparecidos no Chile da era Pinochet. Kissinger preferiu partir no
mesmo dia para a Itália e deixou a cargo da embaixada americana a tarefa de se
entender com a Justiça francesa. Por via das dúvidas, o célebre globetrotter
nunca mais pisou na Europa. Sempre que participava do convescote anual de
Davos, que a cada mês de janeiro reúne líderes mundiais, aspirantes à fama e
elenco variado, se fazia presente via Zoom.
Ariel Dorfman, que acaba de publicar novo
romance intitulado “The suicide museum”, uma investigação fictícia da morte de
Allende, lamenta: “Eu sustentava um sonho impossível: ver Kissinger atrás das
grades, responsabilizado por tanta dor. Com sua morte, meu sonho foi varrido”.
Ele conclui que agora é o momento de a opinião pública fazer seu julgamento.
Que cabe a cada um de nós, viventes, em nome da Humanidade, ouvir os murmúrios
das vítimas de Kissinger em meio ao inevitável dilúvio de louvores e homenagens
que falarão alto.
Que assim seja.
Kissinger é um criminoso de guerra por ter participado e coordenado crimes de guerra dos EUA. Que jamais serão julgados no Tribunal Penal Internacional, onde apenas Putin e inimigos dos EUA e da Europa, bem como outros criminosos menos poderosos, são julgados. Nem o carniceiro Netanyahu teme ser julgado lá, pois os EUA apoiam incondicionalmente os CRIMES DE GUERRA DE ISRAEL contra os civis palestinos de Gaza.
ResponderExcluirBelo artigo.
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