O Globo
A ditadura venezuelana, possivelmente também
a nicaraguense, a chinesa, a iraniana, pode ser só uma narrativa
Este foi o ano da relativização geral (não
confundir com a teoria desenvolvida por Einstein). Seu pressuposto é não haver
referencial ético absoluto — ou, parafraseando Pirandello, o primado do “assim
é (se lhe convém)”.
A mais completa tradução de 2023 pode ter sido dada por Liz Magill (então presidente da Universidade da Pensilvânia), Claudine Gay (presidente da Universidade Harvard) e Sally Kornbluth (reitora do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, MIT). Questionadas se manifestações pedindo a morte de judeus violariam as regras de bullying e assédio em seus campi, as três tergiversaram: “Depende do contexto”. Haveria providências se o discurso antissemita fosse “generalizado e severo”. Se os militantes deixassem de apenas clamar pela extinção de um povo e partissem para as vias de fato.
Teria Claudine Gay — negra — dado a mesma
resposta se a pergunta fosse sobre atos racistas? Teriam elas, mulheres, sido
tão evasivas a respeito de ataques misóginos? Seriam as microagressões — tão
enfaticamente combatidas no meio acadêmico — mais relevantes e perigosas que
ameaças à vida? Pelo jeito, depende de quem sejam o agressor e o agredido.
Aliás, esses são conceitos que também
dependem do contexto.
— A decisão da guerra foi tomada por dois
países, Rússia e Ucrânia —
afirmou nosso autocandidato a Nobel da Paz quando da ofensiva de Moscou contra
Kiev.
E triplicou a meta, equiparando a reação
israelense à barbárie terrorista do Hamas e pedindo bom senso, salomonicamente,
tanto à usurpadora Venezuela quanto
à usurpada Guiana.
Não é mais líquida e certa a culpa ser do criminoso, não da vítima. Depende.
A ditadura venezuelana — possivelmente,
também a nicaraguense, a chinesa, a iraniana — pode ser só uma narrativa.
Afinal, democracia é uma coisa muito relativa, não? Quase tanto quanto a
ciência — louvada quando das vacinas, objeto de desprezo ao definir sexo em
termos biológicos.
Depois da desastrosa gestão ambiental entre
2018 e 2022, a agenda climática finalmente ganhou relevância no programa de
governo, agora empenhado em geração de energia limpa, redução das emissões de
gases de efeito estufa, busca da neutralidade de carbono — certo? Depende: ela
dura até soar o canto da sereia da Margem Equatorial ou o convite para
participar da Opep. Economia verde e ecoeficiência, sim — mas... depende.
Outro que depende do contexto para existir é
o Tribunal Penal Internacional, em Haia. Existia em abril, quando Lula queria o
antecessor julgado naquela instância; cinco meses depois, o mesmo Lula jamais
tinha ouvido falar do TPI — porque aí se tratava do julgamento de um parceiro,
o ditador russo Vladimir Putin.
E dá-lhe relativizar as falas preconceituosas
ou irresponsáveis. São apenas deslizes, ruídos, gafes, falhas de comunicação.
São escorregões (quem nunca?), vacilos, pisadas na bola. O absurdo se torna
“polêmico”; o indefensável, “controverso”. Pau que dá em Chico não dá em
Francisco — e é comovente o esforço de parte da mídia para salvar Lula de si
mesmo.
Foi em 2023 que a esquerda mundial — tida como mais educada e esclarecida que a nossa — mostrou sua verdadeira face. Tomara que em 2024 comecem a surgir alternativas a essa esquerda e àquela direita que não aprendem nada nem esquecem nada. Alternativas que nos lembrem de que há valores inegociáveis.
CAdê o Daniel? MAM
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