sábado, 16 de dezembro de 2023

Eduardo Affonso - Sem vigiar nem punir

O Globo

Nenhum deles precisou fugir da cadeia para voltar a roubar, estuprar, matar. Estavam soltos por decisão judicial

Reynaldo Rocha Nascimento, que confessou ter estuprado, tentado degolar e, por fim, enforcado a sobrinha — Kemilly, 4 anos de idade — em Nova Iguaçu, já tinha sido preso em flagrante por assaltos violentos. Foi solto três dias depois.

Vitor Hugo de Oliveira Jobim, que espancou e roubou Marcelo Benchimol — empresário, 67 anos — em Copacabana, tinha nove anotações criminais por roubo, furto e tráfico de drogas.

Carlos José de França, suspeito de matar a facadas, em Búzios, Florencia Aranguren — 31 anos, argentina, acrobata —, tinha sido condenado a 15 anos de prisão por estupro e roubo.

Jonathan Batista Barbosa (currículo: tráfico, duplo homicídio, violência doméstica, furto, roubo e posse ilegal de arma de fogo) foi preso por mais um roubo numa sexta-feira, solto no sábado e, no domingo, matou Gabriel Mongenot Santana Milhomem Santos — estudante, 25 anos — com uma facada numa praia da Zona Sul. Seu comparsa, Anderson Henriques Brandão, tinha 14 anotações criminais e já fora abordado 56 vezes por policiais, no bairro.

Reynaldo, Vitor, Carlos e Jonathan não são a exceção, mas a regra. Todos cometeram vários crimes, todos foram presos, e nenhum deles precisou fugir da cadeia para voltar a roubar, estuprar, matar. Estavam soltos por decisão judicial.

Num mundo ideal, teriam passado por ressocialização antes de recuperar a liberdade. Passaram foi por um aprendizado de impunidade, com a certeza de poderem continuar a delinquir sem maiores consequências.

A culpa não é do juiz, que faz o que a lei manda (e a lei diz que bandido bom é bandido solto — em regime semiaberto — depois de cumprido 1/6 da pena). O Estado é que deve (precisa) ser responsabilizado — pela inépcia da polícia (no Brasil, apenas um em cada três assassinatos é esclarecido — no Rio, um em cada seis...). Pela lentidão do Judiciário (uma alavanca para a prescrição). Por não garantir o mínimo previsto na Constituição (direito à vida, à segurança). E todos pagamos a conta: o SUS gastou, em 2022, R$ 41 milhões no atendimento a quase 50 baleados por dia. (Se não é uma guerra civil, é um bom trailer.)

Não adianta aumentar as penas se elas não forem aplicadas — e cumpridas. Se a polícia continuar investigando (salvo exceções) precariamente. Não adianta inventar categorias (feminicídio, lesbocídio, crime hediondo) e ter legislação mais dura no papel se, na prática, ela for letra morta. Nem prender só para punir, sem recuperar.

No vácuo do Estado, milícias e tráfico já dominam vastos territórios. Agora, surgem os bandos de “justiceiros”, com um código penal próprio, à base de soco-inglês. (Pode não ser ainda a barbárie, mas é uma boa amostra grátis.)

Se as leis fossem mais justas, e sua aplicação efetiva, é provável que Marcelo não tivesse tido de arriscar a vida para defender uma desconhecida na rua. Que Florencia, Kemilly, Gabriel — e cerca de 40 mil brasileiros que morreram vítimas de violência neste ano — pudessem comemorar mais um Natal, mais um Réveillon.

Quanto a Reynaldo, Vitor, Carlos, Jonathan e tantos outros, terá sido apenas mais uma anotação na ficha criminal. E — ao contrário do que sentiram suas vítimas — possivelmente nem dói.

 

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