quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Hélio Schwartsman - Flertes constitucionais

Folha de S. Paulo

Caso chileno mostra que empenho dos principais atores políticos em jogar pelas regras da democracia importa mais que conteúdo de Cartas

Constituições são um negócio intrigante. Elas podem não passar de um pedaço de papel sem maior significação, como era o caso da Constituição soviética, linda na forma, mas vazia nos conteúdos, como também podem ser efetivas mesmo sem existir como um documento escrito, que é o que ocorre no Reino Unido.

Os chilenos tentaram e fracassaram em seu esforço de adotar uma nova Carta política, mas isso está longe de ser uma tragédia. O impulso de substituir a Constituição vigente, herança da ditadura de Augusto Pinochet, fazia sentido. Símbolos importam, e a origem autoritária do atual documento é um incômodo.

Essa foi uma das razões por que quase 80% dos chilenos, quando consultados em 2020, votaram a favor da instalação de uma assembleia constituinte exclusiva. E acabou aqui o consenso possível.

A assembleia eleita veio com um forte sabor de esquerda, e os constituintes produziram um documento de acordo. A Carta sugerida mencionava a palavra "gênero" 39 vezes, entre outros exageros. O texto foi submetido à população em 2022, que o rejeitou pelo eloquente placar de 62%.

Os chilenos partiram então para uma segunda tentativa. Desta vez, a comissão encarregada de redigir a Carta saiu com fortes inclinações à direita, que transpareceram no documento proposto. Submetido aos eleitores, o projeto foi agora rejeitado por 56%.

Os chilenos entenderam o recado e não farão uma terceira tentativa. Vão ficar com a Constituição pinochetista, mas que já foi emendada (em governos de esquerda) para livrá-la dos piores vícios. A má origem da Carta não impediu o Chile de tornar-se uma democracia estável e de crescer mais do que os outros países da região.

Constituições importam, mas o fator realmente decisivo é o empenho dos principais atores em jogar pelas regras da democracia. Se ele existe, Cartas ruins não são um empecilho. Se não, nem os melhores documentos evitam a autocratização.

 

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