Valor Econômico
As demolições simbólicas dos marcos de épocas históricas não mudam a realidade do presente porque não mudam o passado de que resulta
A Câmara Municipal do Rio aprovou lei que
veda “manter ou instalar monumentos, estátuas, placas e quaisquer homenagens
que façam menções positivas e/ou elogiosas a escravocratas; eugenistas; e
pessoas que tenham perpetrado atos lesivos aos direitos humanos, aos valores
democráticos, ao respeito à liberdade religiosa e que tenham praticado atos de
natureza racista”.
A lei determina que os monumentos “já
instalados em espaço público deverão ser transferidos para ambiente de perfil
museológico, fechado ou a céu aberto, e deverão estar acompanhados de
informações que contextualizem e informem sobre a obra e seu personagem”.
No Brasil tem crescido a hostilidade contra os marcos da memória, como esses, um fenômeno social, político e cultural que expressa grandes e significativas mudanças na mentalidade da população e o desenvolvimento de uma consciência de identidade social inconformista e até mesmo insurgente.
A depredação da escultura de Borba Gato, em
São Paulo, em 2021, por um grupo que age em nome de uma suposta revolução
periférica, é mais reacionária do que revolucionária.
Na relação entre a lei do Rio e o ato contra
a estátua de Borba Gato há uma distância enorme quanto ao que significam as
estátuas de praça pública à luz das diferentes mentalidades desta sociedade.
Propõem tanto uma consciência crítica do processo histórico quanto negam a
possibilidade dessa consciência crítica.
Situar historicamente o presente em relação
ao passado iníquo é uma coisa. Demolir um marco do passado iníquo é negar a
coisa que o representa sem negar o que é representado. A opção do Rio é a de
propor a superação do inaceitável. A opção de São Paulo foi a da tosca e
alienada intolerância.
Há variantes antissociais dessa modalidade de
ação em outros episódios brasileiros. Como o da depredação do monumento em
memória dos 21 camponeses do MST mortos em 1996 pela Polícia Militar do Pará em
Eldorado de Carajás, quando iam a Belém pela desapropriação de uma fazenda
ocupada por 3,5 mil famílias de sem-terra.
Banimentos de monumentos não são movimentos
sociais, os de afirmação dos historicamente excluídos da sociedade. São reações
contra os resíduos de diferentes modalidades de autoritarismo social e
politicamente excludentes. As vítimas são as da demora no reconhecimento do
direito à igualdade social e de que o presente não lhes tem sido senão um tempo
de carências e desconsiderações.
São atos que expressam modalidades primitivas
de reação contra as contradições, injustiças e anomalias deste modelo de
sociedade. Remetem ao movimento dos quebradores de máquinas na Inglaterra da
Revolução Industrial, os Ludditas, que se opunham às inovações tecnológicas
poupadoras de mão de obra na indústria têxtil. O movimento não se orientava
pela superação social das inovações econômicas, mas por sua simples recusa.
No Brasil são ainda comuns movimentos contra
as injustiças sociais baseados na mera negação dos seus fatores e causas. São
reações e recusas de situação e não práxis socialmente transformadora.
As demolições simbólicas dos marcos de épocas
históricas não mudam a realidade do presente porque não mudam o passado de que
ele resulta. Apenas inviabilizam, porque ocultam em vez de revelar o
desenvolvimento de uma consciência crítica da herança de causas de nossos
problemas de hoje e das condições para superá-los.
Consciência crítica, porque científica. E não
simploriamente a mera recusa de um Brasil que foi sem constituir ela
consciência fundamentada do país que pode ser e não é, bloqueado pelo passado
vivo da realidade social, não pelas estátuas.
A lei aprovada pela Câmara do Rio difere do
primitivismo da demolição simbólica ao propor lugar apropriado para a colocação
das obras, com a nota de esclarecimento sobre a identidade do desomenageado que
a consciência crítica do presente despeja para novo e pedagógico endereço.
O sociólogo francês Henri Lefebvre é
referencial estudioso da cidade e do urbano e neles da função da
monumentalidade simbólica das estátuas públicas. Elas são mais do que sua
estrutura física. São a compreensão que delas podem ter aqueles cuja vivência do
atual lhes revela o invisível do possível que a sociedade contém para superar o
que foi e é, e já não quer nem pode ser.
Expressões do passado vencido, monumentos
tornam-se meios de crítica política do inaceitável, fazem de Caxias um
subversivo da pós-modernidade.
Tudo o que socialmente somos é consequência
de ações e circunstâncias desses estatuados, mesmo as “erradas”, que não
subscrevemos hoje, e que, pelo caminho que hoje considerados torto, nos
trouxeram ao que somos. Erro não é o monumento, é continuar na tortuosidade.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor
Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar,
da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador
Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é
autor de “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp,
São Paulo, 2023).
O colunista tentou abordar a questão, mas acho que não foi feliz, tendo escrito um texto pouco claro. Qual é mesmo a FUNÇÃO (ou as funções) dos monumentos nos espaços públicos? Sem esclarecer isto, ficam comprometidas as análises sobre propostas e ações que o autor mencionou.
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