Correio Braziliense
Responsabilizar os veículos e,
consequentemente, os seus jornalistas, por eventuais mentiras de entrevistados
deve ser um fato inédito nas democracias, mas corriqueiro nas autocracias
Quando Dario III, rei da Pérsia, soube que
seu exército havia sido derrotado por Alexandre da Macedônia, com raiva, mandou
matar o mensageiro. Executou Charidemos por não ter gostado das notícias. Além
de narrar a derrota para o governante, o embaixador ousou dizer que a culpa
pelo desastre diante de Alexandre Magno passava por erros estratégicos do
último Aquemênida. Dario III teve um reinado turbulento, seu grande império em
decadência entrou em colapso no seu reinado. De nada adiantou matar o mensageiro.
Jornalistas são como mensageiros de Dario III, vivem sob risco permanente entre os poderosos. Todo dia é um recomeço, por maior que seja o prestígio profissional; sempre se pode cometer um erro involuntário; certas fontes mentem ou falam o que não deve e se arrependem. Conversas em off, inclusive com ministros do Supremo Tribunal Federal, são pura nitroglicerina, porque podem ser desmentidas quando divulgadas e virar um processo, no mínimo uma grande aporrinhação, mesmo quando a sentença é favorável.
Em 1985, fui processado por calúnia e
difamação pelo herdeiro de uma famosa fábrica de fechaduras e cadeados, por ter
noticiado que o jovem havia exibido as nádegas para o piquete de operários
postado à porta da empresa, durante uma greve, na coluna "Doa a quem
doer", que escrevia aos domingos no antigo Diário Popular, de São Paulo, o
rei das bancas. A informação me foi passada na hora do fechamento pelo
sindicalista João Carlos Gonçalves Juruna, então diretor do Sindicato dos
Metalúrgicos de São Paulo.
O chargista do jornal fez uma ilustração
muito engraçada, para uma nota de cinco linhas, intitulada Coração valente, por
causa do filme, então em cartaz, que influenciou o gesto juvenil do jovem
patrão. No julgamento, o juiz fez uma proposta de conciliação: trocar a
indenização do reclamante por uma retratação. Não aceitei a proposta e fui
questionado: "Por que o réu não aceita?". Respondi de pronto:
"Meritíssimo, tenho um compromisso com a verdade". O juiz ficou
vermelho e irritado, teria que dar prosseguimento às oitivas das testemunhas.
Meia dúzia de operários tremiam de medo, mas confirmaram tudo.
Entretanto, eu havia cometido um erro crasso:
na hora do fechamento, não consegui ouvir o outro lado e publiquei a nota assim
mesmo. Só fui absolvido porque a verdade estava do meu lado. O episódio faz
parte da vida banal dos jornalistas, numa situação que nem se compara às
grandes coberturas de escândalos e crises políticas, muitas vezes provocados
por uma entrevista bombástica, como foi a de Pedro Collor contra seu irmão
presidente da República, Fernando Collor de Mello, que acabou renunciando ao
mandato para não sofrer um impeachment.
Principalmente quando se faz coluna de notas,
"o outro lado" acaba ficando para o dia seguinte, porque jornalista
não briga com a notícia, e o tempo ruge. Vive-se o risco.
Repercussão geral
Tudo pode mudar, porém, com a decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF) desta quarta-feira, que fixou a tese que
possibilita a responsabilização de veículos de imprensa pela publicação de
entrevistas que imputem de forma falsa crimes a terceiros: "A plena
proteção constitucional à liberdade de imprensa é consagrada pelo binômio
liberdade com responsabilidade, vedada qualquer espécie de censura prévia,
porém admitindo a possibilidade posterior de análise e responsabilização,
inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas,
difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e
morais", diz o acórdão de repercussão geral.
O texto ressalva que a responsabilização só
se dará em casos em que há "indícios concretos de falsidade" ou em
que o veículo não observou o "dever de cuidado" na verificação dos
fatos. A tese foi elaborada no âmbito do julgamento de recurso extraordinário
de um pedido de indenização do ex-deputado Ricardo Zarattini Filho contra o
Diario de Pernambuco, por uma entrevista publicada em 1995, em que o
entrevistado acusava o político de ter participado de um atentado a bomba no
Aeroporto de Guararapes, em Recife, durante a ditadura militar.
Em 25 de julho de 1966, uma bomba explodiu em
pleno Aeroporto dos Guararapes e tirou a vida de duas pessoas, ferindo outras
14. Em 1968, mesmo sem ninguém assumir a culpa pelo atentado, duas pessoas
foram acusadas pelo Departamento de Ordem e Política Social (Dops) como os
autores do crime, o professor e engenheiro Edinaldo Miranda e o ex-deputado
federal Ricardo Zarattini, então militante do Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR), que sequer foi considerado réu no processo. Edinaldo foi
condenado pela Justiça Militar e, depois, inocentado pela Comissão da Verdade.
O episódio segue sem elucidação, com autores não identificados, cinco décadas
depois.
Em decisão de agosto deste ano, o plenário
virtual do Supremo havia mantido a condenação do veículo, mas não decidira se a
tese seria válida para outros casos parecidos. Agora, tem repercussão geral e
será adotada nos 119 casos que estão para ser julgados no momento, além de
outros que deverão surgir às pencas, sempre que alguém se sentir prejudicado
por uma entrevista.
Todas as associações de profissionais de
imprensa advertem que a tese do STF poderia gerar "graves impactos
negativos — e quem sabe irreversíveis — no cotidiano das redações e no direito
de toda a população a ter acesso à informação".
Responsabilizar os veículos e,
consequentemente, os seus jornalistas por eventuais mentiras de entrevistados
deve ser um fato inédito nas democracias representativas, mas corriqueiro nos
regimes autocráticos.
Verdade.
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