quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Malu Gaspar – As lealdades de Gonet

O Globo

Um dos maiores focos de críticas a Jair Bolsonaro foi a instrumentalização do Ministério Público que ele promoveu com Augusto Aras. Em quatro anos de gestão, o ex-presidente teve no procurador-geral da República uma blindagem poderosa contra acusações que poderiam lhe tirar o mandato — da flagrante omissão na pandemia de Covid-19 às tentativas de sabotar a credibilidade do sistema eleitoral.

Sem Aras, Bolsonaro não teria ido tão longe em sua autoimposta missão de destruir nossas instituições. Mas é verdade que o sistema político também não tem do que reclamar, uma vez que, sob Aras, muito pouca gente com foro privilegiado foi incomodada com investigações, processos ou eventuais acusações.

Com a desculpa de ser contra a “criminalização da política”, Aras vilipendiou a função constitucional do MP de proteger o interesse público.

Mas eis que, depois de meses de indefinição, finalmente tivemos a sabatina com seu substituto, o subprocurador-geral da República Paulo Gonet, escalado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Apadrinhado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, Gonet foi amavelmente recebido por todas as correntes ideológicas e conquistou aprovação acachapante no plenário — 65 votos dos 77 senadores presentes.

O resultado era esperado — tanto que a própria sabatina foi feita com a de Flávio Dino, para diminuir as oportunidades de ataques de bolsonaristas ao ministro da Justiça de Lula.

Mas, enquanto Dino se saiu relativamente bem, sem se furtar a responder a questões sobre quase tudo — evitando antecipar como votará no Supremo, como fazem todos os candidatos, mas pelo menos dizendo claramente o que pensava —, Gonet atravessou a sabatina da mesma forma que a atriz Glória Pires na inesquecível transmissão da festa do Oscar.

O futuro PGR passou as dez horas de sabatina dizendo não ter condições de opinar sobre quase nada. Foi especialmente escorregadio quando perguntaram como agiria em relação ao inquérito das fake news — aquele em que os ministros do Supremo são ao mesmo tempo vítimas, investigadores e juízes —, uma vez que o tribunal desconsiderou todas as manifestações do MP até agora.

“Não sei o que está acontecendo ali”, afirmou Gonet, alegando que parte dos inquéritos está em segredo de Justiça. “Não me caberia buscar conhecer esse inquérito antes de merecer a confiança de Vossas Excelências e de ser nomeado”.

Ocorre que o PGR de Lula conhece o inquérito, ou pelo menos parte dele, porque, quando atuava no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), teve de analisar provas compartilhadas pelo Supremo numa ação que pedia a cassação de Bolsonaro.

Lá em 2021, Gonet considerou que não havia prova de que as empresas de marketing digital que fizeram a campanha de 2018 haviam sido pagas para fazer disparos de fake news via WhatsApp.

Na época do parecer, Bolsonaro estava no poder, e Gonet já tinha até sido o candidato da deputada Bia Kicis (PL-DF) para substituir Raquel Dodge na PGR — que já havia tentado arquivar o inquérito das fake news, mas fora solenemente ignorada pelo relator, Alexandre de Moraes.

Por uma dessas ironias da política, quem acabou indicando Gonet foi Lula, e um dos grandes padrinhos da nomeação é justamente Moraes. Só essa circunstância, porém, pode não ser suficiente para explicar a performance. O mais provável é que a certeza da aprovação também o tenha levado a “fazer a Glória Pires” para não arriscar perder voto.

O futuro PGR só foi enfático ao defender seu outro padrinho político e ex-sócio, o ministro do Supremo Gilmar Mendes. Quando o senador Alessandro Vieira (MDB-SE) se referiu a Gilmar como “alguém aparentemente carente do mínimo pudor ético” que “não vê o menor constrangimento em juntar no mesmo festim investigados, julgadores e partes interessadas em processos em curso na Corte Superior”, Gonet se abalou:

“O ministro Gilmar Mendes é um nome honrado, é um nome de pessoa dedicada ao bem e é uma pessoa que não merece especulações totalmente desfundamentadas sobre seu modo de agir”.

No resto do tempo, o que se viu foi um show de tergiversação sobre assuntos que exigirão de Gonet uma posição — não só o inquérito das fake news, mas também a descriminalização das drogas ou o marco temporal para as terras indígenas.

Por causa desse desempenho, senadores andavam pelos corredores chamando Gonet de “vaselina” e “ensaboado”. Para quem sabe ler nas entrelinhas, foi bem o contrário. Em que pese tudo o que escondeu, o futuro PGR foi claríssimo sobre a quem hipoteca sua lealdade. Sobre isso não deve haver surpresas. Talvez aí esteja o problema, não apenas para a oposição, mas também para o governo.

 

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