Folha de S. Paulo
Unasul foi levada pelo refluxo da onda rosa;
Mercosul agoniza à espera da UE
Se o Brasil tivesse sido representado pelo
vice, Geraldo Alckmin, na posse de Javier Milei, o governo teria dado resposta
adequada às ofensas chulas ao presidente Lula, disparadas pelo argentino ao
longo de sua campanha. E teria reiterado que são de Estado as relações que unem
os dois vizinhos —mais importantes, por serem permanentes, do que os humores
políticos dos dirigentes de turno.
Vinte anos atrás, os cientistas políticos
rio-platenses Roberto Russell e Juan Gabriel Toklatian publicaram um estudo,
hoje clássico —"El lugar de Brasil en la política exterior argentina"—,
em que reconstruíam diferentes épocas de uma relação cheia de altos e baixos,
balizados por circunstâncias mundiais e domésticas que travavam a aproximação
bilateral.
Concluíram que as visões acentuando a cooperação e a amizade entre os dois países nunca chegaram a amadurecer sob a forma de políticas duradouras: foram "pouco mais do que desejos não realizados".
Oito anos depois da criação do Mercosul, os
autores apostavam que o bloco ensejaria uma associação estratégica entre Brasil
e Argentina,
aberta aos países do Cone Sul e âncora de outras iniciativas.
No mesmo ano da publicação do estudo, Lula
chegou pela primeira vez ao governo —e o Mercosul se tornou um dos pilares de
sua política regional. Esta se baseou na convergência política proporcionada
pela chamada "onda rosa", por ter alçado ao poder na vizinhança
forças de distintos matizes de esquerda.
Sobre ela se construiu a Unasul (União das
Nações Sul-americanas), outro sustentáculo da política exterior brasileira.
Foi um sonho, e só: nenhum dos dois pilares
resistiu às forças dominantes da economia e
da geopolítica internacionais, à crise fiscal e aos solavancos políticos de
cada nação, que marcaram a segunda década do século.
A Unasul foi levada pelo refluxo da onda rosa
e o Mercosul agoniza, pendurado ao frágil fio de esperança de um acordo com a
União Europeia.
Assim, redefinir a presença do Brasil
na América
do Sul —em especial, com "los hermanos", nossos maiores
vizinhos e grandes parceiros comerciais—, por ser faceta importante da volta do
país ao mundo, pode ser tudo, menos trivial.
Requer deixar de lado a ideia de lastrear as
relações entre nações na eventual afinidade política entre governos; buscar uma
agenda compartilhada —infraestrutura, transição energética, regras comerciais,
proteção das florestas— e ainda soluções técnicas para problemas de interesse
comum.
E dispor de uma diplomacia profissional que
trabalhe com a contenção que nem sempre os presidentes cultivam.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Quem sabe,sabe.
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