domingo, 17 de dezembro de 2023

Merval Pereira - Tradição e modernidade

O Globo

O embaixador francès Alexandre Conty, ao doar o Petit Trianon para a ABL, destacou o parentesco latino da França e do Brasil, dizendo que o palácio carioca seria um símbolo

Segundo o filósofo espanhol Ortega y Gasset, “o homem é o homem e suas circunstâncias”. Quando Machado de Assis, o fundador da Academia Brasileira de Letras em 1897, a definiu como uma “torre de marfim”, afirmando que a história se fazia fora dela, estava refletindo sua época, assim como, em 1923, quando o governo francês doou o Petit Trianon para ser a sede da ABL, tratava-se de uma política de Estado, “ precursora do que chamamos “soft power”, na qual a cultura, e em especial a literatura, a história, a filosofia e as artes plásticas, assumiam um papel fundamental para manter a presença e a influência francesa no Brasil e na América do Sul”, na definição do historiador e membro da ABL Arno Wehling na palestra comemorativa do centenário do Petit Trianon como sede da ABL.

Era patente, disse, que essa política se voltava “contra a extensa influência econômica inglesa no país, que vinha do século XIX e que, após a Primeira Guerra Mundial, já começava a ceder terreno ante a expansão do comércio norte-americano”. O embaixador Alexandre Conty destacou o parentesco latino da França e do Brasil, dizendo que o Petit Trianon carioca seria um símbolo: “Sua arquitetura do século XVIII, época da razão pura, de fina crítica e de sabedoria fresca e seca, tornar-se-á para vós uma fortaleza contra a escola da retórica que ameaça todos os descendentes dos latinos”.

As circunstâncias mudaram nesses cem anos, a torre de marfim não se justifica mais, embora a ABL mantenha sua postura de não fazer política partidária, mas de defesa de valores humanísticos. Internamente ao Brasil, o prédio reiterava a preeminência do Rio de Janeiro como capital federal, e eixo da vida política do país, o que é uma verdade relativa hoje em dia. O Rio continua sendo a capital cultural do país, mas o Centro, onde está erguido o Petit Trianon, já não representa mais a pulsação criativa da cidade do Rio, necessitando uma revitalização, como admite a própria Prefeitura.

A retórica da latinidade brasileira, criticada por Conty, transformou-se em nosso “soft power” cultural, através da música, da literatura, da culinária, do futebol. A Academia Brasileira de Letras, (ABL) também se transformou através de seus 126 anos, acolhendo em seus quadros representantes da diversidade brasileira, abrigando uma elite cultural que se distingue pela visão ampla da sociedade, não pelo isolacionismo. Mas cultiva as tradições, conciliando-as com a modernidade necessária.

A doação do prédio tem também um lado histórico importante, especialmente nos dias de hoje de polarização política. O historiador e acadêmico Arno Wehling especula que, após a consolidação da República Francesa, a partir de 1789 e as comemorações do centenário da Revolução, em 1889, as diferenças ideológicas estavam aplainadas e, portanto, podiam emergir as realizações francesas que tornaram o país no século XVIII o líder da “Europa das Luzes”.

Objetos como o Petit Trianon, explica Arno Wehling, foram dessa forma ressignificados, sobretudo como monumentos arquitetônicos de determinados padrões estéticos, como o Neoclássico, desligando-se de suas origens políticas. A reforçar a hipótese, ele lembra que lideranças diretamente envolvidas na participação francesa e na doação, como Raymond Poincaré, presidente do Conselho e Alexandre Millerand, presidente da República, embora de origens políticas diversas, caracterizavam-se àquela altura como “republicanos moderados”.

O primeiro transitou da centro-esquerda para a centro-direita, enquanto o socialista Millerand rompeu com as lideranças radicais e fundou um Partido Socialista Independente, de conciliação entre a direita e a esquerda. O historiador Arno Wehling classifica o estudo desse tipo de fenômeno como “um dos mais ricos exercícios da análise histórica, pois considera as sucessivas representações sobre o passado procurando compreender seus significados, sem incidir em maniqueísmos fáceis e afastando o historiador de seu principal fantasma – o anacronismo”.

 

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