O Globo
O embaixador francès Alexandre Conty, ao doar
o Petit Trianon para a ABL, destacou o parentesco latino da França e do Brasil,
dizendo que o palácio carioca seria um símbolo
Segundo o filósofo espanhol Ortega y Gasset,
“o homem é o homem e suas circunstâncias”. Quando Machado de Assis, o fundador
da Academia Brasileira de Letras em 1897, a definiu como uma “torre de marfim”,
afirmando que a história se fazia fora dela, estava refletindo sua época, assim
como, em 1923, quando o governo francês doou o Petit Trianon para ser a sede da
ABL, tratava-se de uma política de Estado, “ precursora do que chamamos “soft
power”, na qual a cultura, e em especial a literatura, a história, a filosofia
e as artes plásticas, assumiam um papel fundamental para manter a presença e a
influência francesa no Brasil e na América do Sul”, na definição do historiador
e membro da ABL Arno Wehling na palestra comemorativa do centenário do Petit
Trianon como sede da ABL.
Era patente, disse, que essa política se voltava “contra a extensa influência econômica inglesa no país, que vinha do século XIX e que, após a Primeira Guerra Mundial, já começava a ceder terreno ante a expansão do comércio norte-americano”. O embaixador Alexandre Conty destacou o parentesco latino da França e do Brasil, dizendo que o Petit Trianon carioca seria um símbolo: “Sua arquitetura do século XVIII, época da razão pura, de fina crítica e de sabedoria fresca e seca, tornar-se-á para vós uma fortaleza contra a escola da retórica que ameaça todos os descendentes dos latinos”.
As circunstâncias mudaram nesses cem anos, a
torre de marfim não se justifica mais, embora a ABL mantenha sua postura de não
fazer política partidária, mas de defesa de valores humanísticos. Internamente
ao Brasil, o prédio reiterava a preeminência do Rio de Janeiro como capital
federal, e eixo da vida política do país, o que é uma verdade relativa hoje em
dia. O Rio continua sendo a capital cultural do país, mas o Centro, onde está
erguido o Petit Trianon, já não representa mais a pulsação criativa da cidade
do Rio, necessitando uma revitalização, como admite a própria Prefeitura.
A retórica da latinidade brasileira,
criticada por Conty, transformou-se em nosso “soft power” cultural, através da
música, da literatura, da culinária, do futebol. A Academia Brasileira de
Letras, (ABL) também se transformou através de seus 126 anos, acolhendo em seus
quadros representantes da diversidade brasileira, abrigando uma elite cultural
que se distingue pela visão ampla da sociedade, não pelo isolacionismo. Mas
cultiva as tradições, conciliando-as com a modernidade necessária.
A doação do prédio tem também um lado
histórico importante, especialmente nos dias de hoje de polarização política. O
historiador e acadêmico Arno Wehling especula que, após a consolidação da
República Francesa, a partir de 1789 e as comemorações do centenário da
Revolução, em 1889, as diferenças ideológicas estavam aplainadas e, portanto,
podiam emergir as realizações francesas que tornaram o país no século XVIII o
líder da “Europa das Luzes”.
Objetos como o Petit Trianon, explica Arno
Wehling, foram dessa forma ressignificados, sobretudo como monumentos
arquitetônicos de determinados padrões estéticos, como o Neoclássico,
desligando-se de suas origens políticas. A reforçar a hipótese, ele lembra que
lideranças diretamente envolvidas na participação francesa e na doação, como
Raymond Poincaré, presidente do Conselho e Alexandre Millerand, presidente da
República, embora de origens políticas diversas, caracterizavam-se àquela
altura como “republicanos moderados”.
O primeiro transitou da centro-esquerda para
a centro-direita, enquanto o socialista Millerand rompeu com as lideranças
radicais e fundou um Partido Socialista Independente, de conciliação entre a
direita e a esquerda. O historiador Arno Wehling classifica o estudo desse tipo
de fenômeno como “um dos mais ricos exercícios da análise histórica, pois
considera as sucessivas representações sobre o passado procurando compreender
seus significados, sem incidir em maniqueísmos fáceis e afastando o historiador
de seu principal fantasma – o anacronismo”.
Um Merval diferente,digamos.
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