O Estado de S. Paulo
A PEC 8/2021 é tão somente um aceno da presidência do Senado aos senadores e mineiros bolsonaristas
Por iniciativa da então presidente Rosa
Weber, o Supremo Tribunal Federal (STF) promulgou a Emenda Regimental 58 de
dezembro de 2022 para solucionar a questão relativa ao excesso de decisões
monocráticas, visando a promover a colegialidade. Assim, disciplinou-se que, em
caso de urgência, para a proteção de direito suscetível de grave dano, pode ser
liminar concedida monocraticamente pelo relator, mas cumpre submetê-la de
imediato ao plenário ou à turma, para referendo.
De outra parte, buscou-se limitar o tempo para o processo retornar a julgamento após pedido de vista de ministro. Estabelece-se, então, que ministro, ao solicitar vista dos autos, deve apresentá-los em 90 dias para continuidade do julgamento. São ambas as medidas adequadas e suficientes para solucionar duas questões que prejudicavam gravemente a Corte como ente coletivo.
Todavia, revitalizou-se neste semestre a
Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/2021, de autoria do senador Oriovisto
Guimarães, agora aprovada pelo plenário do Senado, que, em grande parte,
tratava – e de forma pior – das matérias objeto da Emenda Regimental 58/2022 do
STF, acima lembrada. Três medidas constavam da proposta original da PEC:
proibição de decisão monocrática para suspensão de lei; proibição de decisão
monocrática para suspender ato normativo do presidente da República; e
limitação do tempo do pedido de vista, a ser concedida de forma coletiva.
Para obter aprovação, as duas últimas
propostas foram retiradas do texto, limitado à vedação da concessão de liminar
por decisão monocrática que suspenda a eficácia de lei, a ser outorgada apenas
com o apoio de seis ministros.
Ao ressuscitar esta emenda constitucional,
era perceptível a intenção do Legislativo de ditar regras sobre o funcionamento
do STF e de estabelecer a supremacia do Congresso. Essa intencionalidade ficou
patente ao aprovar o projeto de emenda desidratado, limitado tão somente a
proibir decisão monocrática liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI), matéria já versada no artigo 10 da Lei n.º 9.868/1999 e na Emenda
Regimental 58/2022. Esta PEC é, portanto, tão somente um aceno da presidência
do Senado aos senadores e mineiros bolsonaristas.
O fim de impor a supremacia do Legislativo em
face do Judiciário está refletido na opinião de Michel Temer, que antes de
presidente da República foi por três vezes presidente da Câmara dos Deputados.
Disse Michel Temer, meu colega de Academia
Paulista de Letras, em debate promovido por este jornal (publicado em
15/11/2023, A6): “O STF pode decidir, mas o Legislativo pode vir depois e
editar emenda constitucional, dizendo que o sistema é tal a partir de hoje.
Nesse caso a decisão do Supremo vigora durante um breve período e, quando vem a
nova normativa, perde eficácia a decisão. É assim que se compatibiliza a
atuação dos dois poderes”.
Não se trata de compatibilização, mas de
superposição, como se dispositivo reputado inconstitucional pelo STF, guardião
da Constituição, se torna constitucional por se o incluir na própria
Constituição. Olvida-se que emenda constitucional pode ser declarada
inconstitucional.
O poder derivado de emendar a Constituição,
ao contrário do poder constituinte, é limitado, pois não pode afrontar as
regras pétreas constantes do artigo 60, § 4.º, da Constituição, segundo o qual
“não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (III) a
separação dos Poderes”.
Por essa razão, o STF já decidiu que emenda
constitucional, emanada de poder constituinte derivado, incidindo em violação à
Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional pelo STF (ADI 939,
relator ministro Sydney Sanches).
Em outra decisão, bem se distingue: a
eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte
(redundantemente chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação
normativa, porque provém do exercício de um poder de fato ou suprapositivo. Já
as normas produzidas pelo poder reformador têm sua validez e eficácia
condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional, por obediência
às cláusulas pétreas (ADI 2.356-MC e ADI 2.362-MC, relator ministro Ayres
Britto).
Uma das regras pétreas consiste no respeito à
separação dos Poderes. Pretender disciplinar a forma de proceder do Supremo
Tribunal Federal, por via de emenda constitucional, vem a ser patente invasão
do Poder Judiciário. Igualmente, criminalizar, por exemplo, o aborto por meio
de norma constitucional não desfaz a contrariedade dessa incriminação em face
da Constituição, se tal tipificação se julgou violadora de direito fundamental.
Desde 2011, a direita e a esquerda, descontentes com decisões do Judiciário, propuseram limitar ou até mesmo anular a atuação da Suprema Corte, como já examinado em artigo nesta página em 2/7/2022. Este confronto é um equívoco, a ser superado ao se reconhecer que o direito é fruto da interpretação, sendo impossível a aplicação estrita e automática da letra da lei, razão pela qual o STF não legisla quando apenas adequa a norma aos ditames constitucionais.
*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça
Muito bom o artigo.
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