Por Ruy Castro /Folha de S. Paulo
A morte do músico, que estava internado desde
quinta no Rio de Janeiro por causa de uma febre, foi confirmada pela mulher
Morreu Carlos Lyra, um dos precursores da
bossa nova, aos 90 anos neste sábado. Ele havia sido internado na quinta-feira,
dia 14, com febre e teve uma infecção, segundo sua mulher. Lyra será velado no
Crematório Memorial do Carmo, em uma cerimônia restrita a familiares e amigos.
De 1958 a 1965, Carlos Lyra,
em parceria com Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e poucos mais, produziu
maravilhas como "Primavera", "Minha Namorada", "Marcha
da Quarta-Feira de Cinzas", "Coisa Mais Linda", "Canção que
Morre no Ar", "Lobo Bobo", "Saudade Fez um Samba",
"Se É Tarde me Perdoa", "Feio Não É Bonito", "Samba do
Carioca", "Samba da Legalidade", "Aruanda", "Quem
Quiser Encontrar o Amor", "Influência do Jazz", "Sabe
Você", "Você e Eu", "Maria Ninguém", "Maria
Moita" e muitas mais —gravadas por João Gilberto,
Nara Leão, Sylvia Telles, Astrud
Gilberto, Elis Regina, Billy Eckstine, Brigitte Bardot e incontáveis
grupos instrumentais.
Dele, disse Tom Jobim que "Carlinhos é o
maior melodista da bossa nova".
Se Jobim falou, estava falado —embora, para o
resto do mundo, o maior melodista da bossa nova fosse o próprio Jobim, com Lyra
pagando um honroso placê. Seja como for, esse corpo de canções, produzido em
tão pouco tempo, foi suficiente para sustentar Carlos Lyra pelos 50 anos
seguintes —período em que, por vários motivos, sua produção não se comparou à
dos tempos heroicos da bossa nova.
O que fez com que seu mais antigo parceiro —e
cordial desafeto— Ronaldo Bôscoli o definisse, dizendo "Carlinhos Lyra é o
contrário do vinho". "Quanto mais moço, melhor."
Bôscoli sabia o que dizia. Os dois juntos, e mais uma plêiade de garotos por volta dos 20 anos, compunham uma turma que, naquela época, passava as noites no apartamento da quase adolescente Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana, para tocar violão, trocar acordes, cantar suas composições, rir muito e filar o uísque do dono da casa, pai de Leão.
No futuro, diriam que a bossa nova nascera no
apartamento de Leão. Mas Lyra, que vinha da pré-história do novo ritmo, sempre
negou que tivesse sido assim. E acrescentava "nem a Nara nasceu no
apartamento da Nara".
Embora tenha sido um dos criadores do
movimento, Lyra foi quem mais procurou discutir o gênero —o que, às vezes,
resvalou em posições contraditórias.
Exemplos? Cerca de 1961, por motivos
ideológicos —pertencia ao Partido Comunista e atuava no CPC, o Centro Popular
de Cultura—, se afastou de Jobim, Bôscoli e outros que considerava de
"direita" e chegou a propor um novo nome, "sambalanço",
para sua música.
O nome não pegou e ele voltou à denominação
original. Em 1962, se insurgiu também contra o que considerava um excesso de
influência do jazz na bossa nova, principalmente a praticada no Beco das
Garrafas —donde o seu samba-manifesto, "Influência do Jazz".
Mas, já em 1963, gravou um disco, "The
Sound of Ipanema", com o saxofonista americano Paul Winter e, em 1964,
viajou pelos Estados Unidos com o principal jazzista da bossa nova, o também
saxofonista Stan Getz. E foi também talvez o único a praticar explicitamente
uma variedade rítmica dentro da bossa nova —sua obra é composta de boleros,
como "Maria Ninguém", marchas-rancho, como "Marcha de
Quarta-Feira de Cinzas", e sambas-canções, como "Minha
Namorada".
Naturalmente que, vindo de quem vinha, era
tudo "bossa nova".
Lyra pertenceu a uma extraordinária geração
de compositores dos anos 1960 que incluiu, entre outros, os americanos Henry
Mancini, Burt
Bacharach, Neil Hefti, Cy Coleman e Stephen Sondheim, o italiano
Nino Rota, o francês Michel Legrand, o mexicano Armando Manzanero e, claro,
Antonio Carlos Jobim.
Todos fizeram música para cinema, televisão e
teatro, sem prejuízo de canções avulsas, para seus cantores favoritos. Durante
toda aquela década, eles foram, em escala internacional, a grande alternativa
ao rock que já começava a impor sua ditadura ao mercado.
Uns mais, outros menos, eles chegaram ainda
fortes aos anos 1970, mas, dez anos depois, todos tinham sido varridos das
paradas de sucesso por um tipo de música que já não exigia melodia e harmonia
sofisticadas.
Nesse interregno, Lyra se interessou por
astrologia, aliás, pela "astrologia sideral", que propunha uma nova
ordem para os signos do zodíaco, e escreveu um livro a respeito. E começou
também uma longa carreira de shows baseados em seu repertório clássico.
As pessoas se perguntavam por que ele nunca
mais compôs coisas como "Primavera" ou "Minha Namorada". Se
a pergunta fosse dirigida a mim, eu respondia não é que ele não queira ou tenha
perdido a inspiração. O mercado é que não quer saber mais dele ou de quem faça
música bonita.
A prova de que a inspiração não abandonara
Carlos Lyra está nas quase 20 grandes canções —com fabulosas letras de Aldir Blanc—
que ele compôs para "Era no Tempo do Rei", um musical brasileiro que,
por três meses de 2010, lotou o teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, e saiu
de cartaz sem que nenhum cantor se interessasse por elas. Foi pena —muitas
mereciam ter ganhado vida própria, fora do palco. Mas você nunca o ouviria se
queixar de que, muito antes disso, ele já fora varrido pelo mercado.
É possível que, ao falar da morte de Lyra,
outros veículos o deem como nascido em 1936, 1938 e até 1939 —confusão criada
por ele próprio, numa tentativa de deter a passagem dos anos, e ratificada em
seu livro "Eu & a Bossa", cheio de imprecisões, lançado há 15
anos. Mas a data certa é 11 de maio de 1933.
Data que, no passado, Lyra admitia com
tranquilidade —quando não apenas a bossa ainda era nova, mas ele também, e, em
1963, a admirada Jacqueline, a mulher do presidente John Kennedy, passava o dia
cantarolando "Maria Nobody" pelos corredores da Casa Branca.
Na verdade, a única dúvida seria quanto ao
seu signo —touro, pela astrologia tradicional; áries, pelos novos cálculos que
ele tinha feito pela "astrologia sideral".
Ele deixa a mulher e uma filha, Kay Lyra.
A verdade é que a bossa nova nunca foi popular,a música de qualidade sempre foi pra poucos.
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