Folha de S. Paulo
O enigma dos personagens tóxicos na política
Para quem estancou a queda da nação no
abismo, são fracos neste fim de ano os índices de popularidade de Lula. Fracas
também as explicações. A campanha governamental "O Brasil é um só
povo", recém-lançada, não desautoriza uma hipótese de natureza patafísica:
existiriam dois Brasis. No primeiro, real, Lula é legítimo presidente da
República, com dezenas de milhões de seguidores. No segundo, irreal, o outro
perdeu a eleição, mas ainda não lhe caiu a ficha nem a de seus aderentes, o que
pavimenta o caminho patafísico dos absurdos.
Patafísica é a "ciência" das soluções imaginárias, uma invenção de literatos franceses para jogar criativamente com distorções da realidade. Nesse país distorcido por hipótese, sombra projetada sobre o real, o portador da caveira de burro nada em seco, o pão lhe caindo com leite condensado para baixo. Ainda assim, trafega nos índices e nas barricadas da direita. Aos contratempos: na posse de Milei, tentou bancar o papagaio de pirata numa foto de presidentes, foi por eles repelido. Um vexame, que não pareceu constrangê-lo.
Mas a hipótese deixa intocado o enigma dos
personagens tóxicos na política: Bozo teratológico, Milei que diz ter
"filhos de quatro patas", Maduro em colóquio com passarinhos, Trump
que prega abertamente a ditadura etc. Nenhuma doutrina salvífica explica as
bizarrices, apenas o traço comum de uma tirania prometida e, religiosamente,
aguardada.
É que existe um laço íntimo, místico entre
tiranos e escravos: "O grande segredo do regime monárquico consiste em
enganar os homens, travestindo com o nome de religião o temor com que os mantém
acorrentados; de maneira que lutam por sua servidão como se tratassem de sua
salvação" (Espinosa, "Tratado Teológico-Político").
Para o filósofo, isso se deve à paixão
triste, "um complexo que reúne o infinito dos desejos, a perturbação da
alma, a cupidez e a superstição". O tirano, para triunfar, precisa da alma
triste e vice-versa, pois o que os une é "o ódio à vida, o ressentimento
contra a vida".
A palavra tirania, obsoleta, retorna na
afirmação da vice-presidente argentina de que é preciso um arrocho tirânico
para repor nos eixos o seu país. É um toque sombrio e mais opressivo do que
autocracia, com a qual os analistas políticos vestem as inclinações da
ultradireita.
Mas tirano e autocrata rezam pela mesma
cartilha da violência antidemocrática, atrativa para o sujeito do
ressentimento, adulto ou jovem, que faz da estreiteza vingativa seu único
afeto. Uma besta triste, de tocaia no pior. Não com volátil estado de ânimo,
mas com tristeza como paixão profunda, afecção contagiosa da alma que faz
cadeia com medo, inveja, ódio e crueldade. É uma negação da alegria vital, da
qual não dá conta nenhum psicologismo, nenhuma política. A patafísica, quem
sabe.
*Sociólogo, professor emérito da UFRJ, autor, entre outras obras, de “Pensar Nagô” e “Fascismo da Cor”
fascinante. MAM
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