quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Nilson Teixeira* - Triste captura do Estado pela elite

Valor Econômico

A sociedade é pouco vocal contra o desperdício de verbas e a concessão de renúncias tributárias, refletindo aparente fantasia de que os recursos públicos são ilimitados

Um erro fatal na análise fiscal é a ausência de foco no desperdício gerado pela concessão de excessivas vantagens para grupos de interesse tanto do setor público como privado. Não há como esperar uma sólida consolidação fiscal sem que a sociedade ajuste o desequilíbrio no uso dos recursos públicos. Será igualmente impossível, sem a redução desses privilégios, garantir uma sociedade mais justa, com melhor distribuição de renda e um sistema tributário menos regressivo. A população, porém, não tem, por ora, essa demanda, o que desestimula a revisão dos excessos por parte dos representantes da sociedade.

A população vê o Estado como um provedor universal de bem-estar e serviços, não havendo, portanto, resistência contra a oferta de benefícios para grupos específicos. Até a camada mais rica clama por mais serviços e melhor atendimento para si, desconsiderando que não é possível obter essas benesses sem trazer custos para os demais membros da sociedade. O desejo não é o de controlar as vantagens dos outros e, sim, ampliar os seus direitos. Assim, essa abordagem justifica o crescimento contínuo das distorções nas contas públicas.

A dinâmica é clara quando se analisa as demandas do serviço público e de grupos privados. A busca é sempre a mesma: capturar benefícios já obtidos por outras classes, bem como garantir novos direitos vistos como merecidos e vendidos enganosamente como estímulos à atividade ou à conservação e criação de empregos. Esse processo termina na oferta de privilégios para poucos em detrimento do bem-estar da maioria da população, que é incapaz de coordenar uma ação refratária à captura do Estado.

A contínua obtenção nos últimos anos de vantagens por algumas carreiras do funcionalismo público, tanto no âmbito federal como regional e notadamente no Judiciário, é um dos exemplos desse processo. O ano de 2023 foi marcado por muitas decisões de instâncias superiores do Judiciário e do Ministério Público a favor da concessão para parte de seus servidores de benefícios - ajuda de custo, auxílio-moradia, auxílio-alimentação, auxílio escola, prêmios por produtividade, indenizações por férias não gozadas, gratificações por exercício cumulativo e jetons - que não são sujeitos a limites legais para os salários mensais. O impacto nas contas públicas dessas medidas é pouco visível, mas é perverso para a sociedade.

Os representantes da elite dessas categorias criam teses, julgadas pertinentes por seus órgãos, para gerar pagamentos extraordinários todos os anos para seus servidores. Um absurdo recente foi a concessão por um tribunal de justiça estadual de auxílio-alimentação especial de R$ 6,9 mil em dezembro para todos os seus funcionários, com aumento do benefício mensal para R$ 1,9 mil a partir de janeiro.

A conquista de direitos questionáveis se propaga em várias frentes. O STF julgou favoravelmente o pleito de pagamento retroativo de quinquênios extintos em 2006 a juízes federais que ingressaram no serviço público antes dessa data, gerando despesas da ordem de R$ 1 bilhão. Caso a decisão não seja derrubada, outras carreiras que tinham direito a esses quinquênios conquistarão, mais cedo ou mais tarde, o mesmo benefício, gerando um passivo expressivo.

Também é chocante a recente decisão de premiar suposta carga de trabalho excessiva de algumas categorias do Judiciário com uma folga de um dia para cada três dias do mês e a autorização para que esse prêmio seja convertido em remuneração adicional não tributável. Se esse privilégio for mantido, é provável que outras categorias do funcionalismo, inclusive de outros Poderes, demandem e obtenham a mesma vantagem nos próximos anos, com custos ainda mais elevados.

A concessão de privilégios sem grande oposição é uma importante razão dos problemas fiscais

A inexistência de crítica por participantes de mercado a esses privilégios é a norma geral, inclusive no âmbito do orçamento anual. A peça de 2024 voltou a aumentar os recursos para os diversos tipos de emendas parlamentares. Além dos cerca de R$ 53 bilhões dessas emendas, o fundo partidário e o fundo eleitoral fazem com que o montante de verbas sob controle de políticos alcance quase R$ 60 bilhões no próximo ano - total supera 0,5% do PIB e é maior do que os investimentos do PAC. Como parte crescente dessas emendas tem obtido caráter obrigatório e prazo máximo de desembolso definido, não há como garantir o direcionamento e o monitoramento eficiente dos recursos e, muito menos, o enquadramento das transferências em programas bem avaliados. No fim, grande parte das emendas tem impacto nulo para melhoria das condições de vida da população, com parcela relevante sendo sujeita a superfaturamento e à malversação dos recursos.

A recente aprovação da Reforma Tributária confirmou a captura do Estado pela elite sem que tenha ocorrido uma reação mais contundente da sociedade. Como consequência, a reforma exigirá elevada alíquota padrão por conta das danosas exceções concedidas para poderosos grupos de interesse.

Do mesmo modo, o volume de privilégios fiscais tem crescido todo ano, apesar de seguidas gestões do Ministério da Fazenda manifestarem contrariedade com sua evolução. A sociedade é pouco vocal contra o desperdício de verbas e a concessão de inúmeras renúncias tributárias, refletindo uma aparente fantasia de que os recursos públicos são ilimitados.

A concessão de privilégios sem grande oposição é uma importante razão dos problemas fiscais, sendo um dos fatores que induzem a gradual diminuição do crescimento do produto potencial. Enquanto os participantes de mercado não se manifestarem fortemente contra os excessivos privilégios fiscais concedidos à elite, não será possível dirimir dúvidas sobre a solidez das contas públicas.

Nesse caso, a população, notadamente os mais pobres, continuará a conviver com impostos altos e com a captação crescente de fundos privados a juros altos para financiamento da dívida pública de forma a preservar as enormes e injustificáveis vantagens de uma minoria de privilegiados.

*Nilson Teixeira, Ph.D. em economia

 

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