domingo, 10 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Recuo aparente de Maduro traz chance de diálogo com Guiana

O Globo

Movimento resultante da intervenção de Lula abre a esperança de uma solução pacífica para investida venezuelana

Depois de conversar ao telefone com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ditador venezuelano Nicolás Maduro esboçou seu primeiro recuo na pretensão de invadir a Guiana. “A Guiana e a ExxonMobil [petrolífera americana que explora a costa guianesa] terão que sentar e conversar conosco, o Governo da República Bolivariana da Venezuela. De coração e alma, queremos paz e compreensão”, escreveu numa rede social. Em resposta, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, afirmou “não se opor” a dialogar sobre Essequibo, área de seu país reivindicada pela Venezuela. Ficou marcado para a semana que vem um encontro entre os dois.

É essencial que Maduro dê provas de que suas intenções são mesmo pacíficas, mas seu aparente recuo afasta por ora o cenário de conflito e traz a esperança de resolução diplomática para a tensão decorrente dos movimentos do ditador nas últimas semanas. Em plebiscito, 95% dos eleitores venezuelanos apoiaram a anexação do Essequibo, região correspondente a mais de dois terços da Guiana, rica em petróleo e recursos minerais. Na terça-feira, Maduro nomeou um general como “autoridade única” do território reclamado e apresentou um novo mapa da Venezuela, desafiando decisão da Corte Internacional de Justiça, em Haia.

Vários movimentos diplomáticos tentaram dissuadir Maduro. Antes do plebiscito, o Brasil enviou a Caracas o assessor internacional de Lula, Celso Amorim, para manifestar a necessidade de resolver pelo diálogo a disputa que data do século XIX. Mesmo sem citar Maduro, Lula afirmou na quinta-feira, no discurso de abertura da cúpula do Mercosul no Rio, acompanhar com “crescente preocupação o desdobramento relacionado à questão do Essequibo”. Ao final do encontro, os líderes do Mercosul pediram, em nota conjunta, que a América do Sul continue um “território de paz”. Em seguida, Lula convocou a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para promover o diálogo entre Venezuela e Guiana. O Conselho de Segurança da ONU deu prioridade ao debate sobre a questão.

Diante da escalada na tensão, Ali pediu também ajuda aos Estados Unidos. Aviões da Força Aérea americana sobrevoaram a Guiana, de acordo com o governo americano em sinal da cooperação “econômica e de segurança” entre os dois países. Como o caminho menos custoso para tropas venezuelanas invadirem Essequibo passa por Roraima, o Exército brasileiro anunciou ter reforçado a presença na região da fronteira com os dois países com soldados e blindados.

O governo brasileiro tem razão em insistir na solução diplomática do conflito e, ao mesmo tempo, fez bem em se preparar para o pior cenário. O Brasil não pode aceitar sob nenhuma circunstância o uso de seu território, por isso precisa continuar a lançar mão de todo o seu arsenal diplomático para demonstrar a Maduro o custo de uma aventura militar. O conflito poderia ser descartado se prevalecesse a racionalidade. Infelizmente, nem sempre é assim. Como todo autocrata, Maduro explora o nacionalismo como arma política e não se furtaria a levar seu país à guerra, mesmo sabendo da catástrofe que causaria ao próprio povo. Não é preciso buscar referências históricas longínquas para ilustrar o risco. Basta lembrar a invasão da Ucrânia pelas tropas do russo Vladimir Putin — justamente aquele a quem Maduro foi recorrer em busca de apoio.

Vandalismo no Rio demanda campanhas de conscientização

O Globo

Prejuízos para todos os cidadãos somam R$ 220 milhões em 20 meses na região metropolitana

Tornou-se comum no Rio o cidadão procurar uma lixeira e não encontrá-la onde deveria estar. Algum vândalo passou antes e levou a peça para vendê-la. Infelizmente, essa é apenas uma das muitas faces do vandalismo, que se revela também no furto frequente de cabos, na destruição de ônibus e trens, na deterioração de monumentos que guardam a memória da cidade e em tantas outras práticas do tipo. Como mostrou a série de reportagens “Um crime contra todos”, publicada no GLOBO, não se pode achar normal esse comportamento criminoso contra a própria cidade. O prejuízo não é apenas do poder público, mas de todos os cidadãos. Privados de usar os equipamentos urbanos, ainda têm de pagar pela reposição do material.

Apenas na capital e nas cidades de Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Niterói, na Região Metropolitana do Rio, os prejuízos do poder público e de concessionárias somam R$ 220 milhões em 20 meses. Dinheiro que poderia ser empregado em áreas prioritárias como educação, saúde ou transporte. De janeiro de 2022 a outubro deste ano, a Prefeitura carioca desembolsou R$ 98 milhões para reparar estragos causados por vândalos. Daria para comprar 31 ônibus. No mesmo período, foram furtados 1.015 quilômetros de fios da Rioluz e 140 quilômetros de cabos, além de 194 controladores de sinais da CET-Rio. Num único cruzamento na Zona Norte, o sinal foi furtado 55 vezes neste ano. A Light contou em nove meses de 2023 o furto de 11,6 quilômetros de cabos. Metade das latas de lixo espalhadas pelo município precisou ser reposta. Cada uma delas custa R$ 150.

Ônibus são alvos preferenciais. Neste ano, mais da metade da frota carioca (2.350 veículos) sofreu algum dano. Isso significa que o veículo precisou ser retirado de circulação para ficar ao menos 24 horas na oficina. Desde janeiro de 2022, 70 ônibus foram incendiados na Região Metropolitana do Rio, prejuízo de quase R$ 60 milhões. Em algum momento, o custo aparece na tarifa.

Governos e concessionárias têm adotado estratégias contra o vandalismo. Ralos de ferro têm sido trocados por outros de material menos cobiçado. Fios de cobre, substituídos por alumínio. A Rioluz concretou caixas de passagem. Câmeras de segurança têm sido instaladas para vigiar monumentos. A prefeitura instalou 50 aparelhos de GPS em peças públicas para tentar descobrir o caminho até os ferros-velhos. Pretende colocar mais 50. São iniciativas positivas, mas insuficientes para deter o vandalismo.

A polícia também precisa agir, sobretudo em pontos de receptação. É importante que poder público e concessionárias façam campanhas para conscientizar a população de que o custo do vandalismo é repartido entre todos. E os danos não são apenas financeiros. A falta de sinal num cruzamento perigoso ou o furto de uma tampa de bueiro podem resultar em acidentes graves. Não se trata de problema menor. Poder público e sociedade precisam se mobilizar para reverter o descalabro. Zelar pelo patrimônio é tarefa coletiva. De nada adianta exaltar as belezas da cidade e tratá-la como um troglodita.

Saliente e impopular

Folha de S. Paulo

Autocontenção e colegialidade ajudariam a melhorar imagem e efetividade do STF

Vale para os magistrados e as cortes a máxima esportiva de que bom árbitro é aquele cuja atuação mal se nota ao final da partida. O Supremo Tribunal Federal tem sido um juiz saliente no entrechoque institucional brasileiro. Sua mão pesada não passa despercebida.

Em boa medida não poderia ser de outro modo, dado o nível elevado de truculência e exigência do jogo e dos jogadores. O Supremo foi colocado pela Constituição, e por incidentes subsequentes, no vértice da agenda nacional.

Além de praticar a arbitragem de temas constitucionais clássicos, sua vocação, o tribunal atua como uma espécie de quarta instância de ações comuns, foro de juízo penal de altas autoridades, desaguadouro de petições de derrotados no conflito parlamentar e central de habeas corpus.

De 2019 a 2022 os ministros viram-se confrontados por um presidente da República autoritário, situação agravada na pandemia de coronavírus. Seguidores do líder bonapartista vandalizaram as sedes dos três Poderes no início deste ano. Tudo isso justificou respostas firmes da corte.

Uma parcela considerável do estrelismo do STF, contudo, é inadequada porque se deve ao modo de agir de seus próprios integrantes. Há desmesura na concentração de poder individual e no hábito de tagarelar fora dos autos e de imiscuir-se em lobbies da política.

Penas duríssimas contra peixes pequenos da depredação de Brasília contrastam com a flexibilização das punições à corrupção das elites. Relativizam-se direitos de expressão e imprensa e invadem-se atribuições do Legislativo. A jurisprudência dá reviravoltas.

A saliência do Supremo em período de normalidade institucional não é bem vista pela maioria da população. A diferença entre quem considera ruim ou péssima (38%) a atuação do tribunal e os que a julgam ótima ou boa (27%) subiu 11 pontos percentuais desde dezembro de 2022.

A pesquisa, realizada pelo Datafolha entre brasileiros de 16 anos ou mais (aptos a votar, portanto), também mostra que a polarização político-ideológica que dividiu o país nas últimas eleições repete-se na avaliação da corte, muito mais apreciada hoje por lulistas do que por bolsonaristas.

Tornar-se popular no sentido perseguido pelos mandatários jamais deveria ser o objetivo de uma organização que distribui justiça. A aprovação desejável da corte precisa derivar da percepção de que atua com equidistância, proporcionalidade e estabilidade.

Privilegiar a autocontenção, a discrição, a colegialidade e a segurança jurídica ajudaria a melhorar a imagem do Supremo, bem como a sua efetividade institucional.

Vestibular feminista

Folha de S. Paulo

Expandir leitura de escritoras é louvável, mas política não deve superar cânone

É inegável que mulheres historicamente enfrentaram preconceito para adentrar no campo artístico. Nas últimas décadas, tem havido esforço louvável para valorizar a produção feminina, mas é preciso cuidado para não cair em novos radicalismos sectários.

Um exemplo recente é o das listas de leituras obrigatórias para as provas do vestibular da Universidade de São Paulo (USP) a serem realizadas entre 2026 e 2028, que, pela primeira vez, serão constituídas apenas por obras escritas por mulheres, conforme a Folha revelou.

De fato, há disparidade de gênero notável nas leituras exigidas pelas cinco instituições de ensino superior mais bem colocadas no Ranking Universitário da Folha (RUF) que fazem uso de listas do tipo —USP, Unicamp, UFSC, UFRGS e UFPR.

Segundo levantamento feito por este jornal, das 178 obras pedidas desde o final dos anos 1980, 146 foram escritas por homens e somente 29 por mulheres.

A USP é a instituição com maior predomínio masculino no período pesquisado, não tendo adotado parcela de obras de escritoras maior que os 22,2% do próximo ano. Já a UFSC foi a primeira a escolher 50% de livros de mulheres, em 2017 —igualdade repetida em 2020, 2021 e 2023. Também a UFRGS mantém 50% desde 2021.

O fato é que a saudável busca por maior diversidade de autores e autoras não justifica retirar das listas de leitura apresentadas aos estudantes nomes do cânone literário —como, para ficar em um exemplo óbvio, Machado de Assis, o maior escritor brasileiro.

Cânones são construções históricas, decerto, que mudam ao longo do tempo não por imposição militante e sim por meio de análises da crítica e da academia, que devem observar aspectos estéticos.

A lista da USP revela um fenômeno problemático em voga na pesquisa universitária: a valorização de abordagens políticas, em detrimento da propriamente literária.

Pesquisadores como o americano Harold Bloom e o italiano Italo Calvino apontam a importância da contemplação estética para o estímulo da imaginação e do autoconhecimento do indivíduo —e também o papel dos clássicos, obras que perduram por séculos e influenciam gerações por conterem alegrias e dores universais.

Uma lista de leituras que não leve em conta tais aspectos desvaloriza ferramentas fundamentais para a formação literária e humanística dos estudantes brasileiros.

A esquerda não pode viver de STF

O Estado de S. Paulo

O Supremo é cada vez mais visto pela esquerda como o lugar da realização de seus projetos mais caros, sem ter que se dar ao trabalho de convencer a população e o Congresso a apoiá-los

No mesmo fôlego em que atacou o Congresso, acusando-o de atuar como “raposa” que toma conta do “nosso galinheiro”, o presidente Lula da Silva acabou confessando que a pauta dita “progressista” não tem votos e, por isso, depende do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em Dubai, falando à sua claque de militantes, Lula disse que “ninguém de bom senso” imaginava que fosse possível “ganhar no Congresso” o debate sobre o marco temporal para a demarcação das terras indígenas. “É só olhar a geopolítica do Congresso”, disse Lula, referindo-se, obviamente, à forte presença de parlamentares conservadores. Por isso, admitiu o presidente, “a única chance que a gente tinha era a que foi votada na Suprema Corte”.

Eis então que o presidente da República reconheceu, sem qualquer constrangimento, que o Supremo se tornou instância eminentemente política, à qual os derrotados no Congresso recorrem para disputar um “terceiro turno” e ganhar na toga o que perderam no voto. E tudo fica ainda pior para um governo com capacidade cada vez menor de cooptar parlamentares, pois estes estão bem menos dependentes do governo para angariar fundos, em razão das emendas obrigatórias individuais e de bancada, além do “jeitinho” dado por Executivo e Legislativo para contornar a declaração de inconstitucionalidade do orçamento secreto.

Essa dependência que a esquerda passou a ter do Judiciário ajuda a explicar por que razão o presidente Lula escolheu o ministro da Justiça, Flávio Dino, para o lugar de Rosa Weber no STF. Para um governo sem base sólida no Congresso, seria bastante útil uma composição do STF simpática, ao menos em tese, a ideias e projetos do Executivo nos campos da economia e das políticas públicas – matérias disciplinadas, com algum excesso, na Constituição. Exemplo recente da sintonia do STF com as teses do Executivo foi a autorização dada a este para regularizar o estoque de precatórios represado pela chamada “PEC do Calote” do governo Bolsonaro.

Além disso, considerando a orientação ideológica prevalecente no Legislativo, também é conveniente para o governo uma composição do STF simpática a pautas associadas a direitos individuais (descriminalização do aborto e do porte de drogas para consumo próprio), a ações igualitárias (cotas) e ao meio ambiente (marco temporal).

Ainda mais porque, neste novo mandato, o presidente da República encontra sua base social mais diversificada e aguerrida. Vieram dela as muitas ações em favor da indicação de uma mulher negra para a vaga de Rosa Weber no STF, especialmente após Lula ter indicado seu advogado, Cristiano Zanin, para a vaga de Ricardo Lewandowski. Diante da frustração com a indicação de Dino, restou aos descontentes o fato de que o ministro da Justiça é um quadro afinado com pautas da esquerda e um reconhecido combatente do bolsonarismo.

Aí reside outra “vantagem” da indicação do atual ministro da Justiça: apoiar o STF em sua resposta ao bolsonarismo mais destrutivo. Nos últimos tempos, a crítica ao protagonismo do STF se intensificou, seja ante a concentração de processos sob sua jurisdição, seja por suas ações heterodoxas no combate a malfeitos do governo anterior. Nessa equação, ao mesmo tempo jurídica e política, a presença de um ministro articulado e articulador como Dino é também muito bem-vinda ao governo.

Em resumo: Lula tem no Supremo um elo imprescindível à governabilidade, ao possível sucesso das pautas abraçadas por sua base social e à responsabilização do bolsonarismo anti-institucional e antirrepublicano.

Mas isso não revela apenas a importância do STF na atual conjuntura de governo ou sua reiterada, malgrado indevida, condição de ator político. A indicação de um ministro político para o Supremo mostra como a esquerda vê na Corte o lugar da realização de seus projetos para o País, sem a necessidade de se dedicar ao trabalho árduo de convencer a população a apoiá-los – tarefa inglória, porque em geral esses projetos são estranhos, quando não francamente hostis, ao interesse comum da maioria dos eleitores. A propósito da capacidade de persuasão que parece faltar à esquerda, vale recordar Lincoln: “O sentimento público é tudo. Com ele, nada fracassa; sem ele, nada triunfa. Quem molda o sentimento público vai mais fundo do que quem promulga estatutos ou profere decisões judiciais”.

O status do trabalho por aplicativos

O Estado de S. Paulo

O Legislativo precisa regular essa modalidade de trabalho. Mas ao determinar o que ela não é, um vínculo empregatício, o STF contém o ativismo contraproducente da Justiça Trabalhista

APrimeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que motoristas que prestam serviço por aplicativos não são empregados nos moldes da CLT. O caso deve ser apreciado pelo plenário nos próximos dias. Assim, o Tribunal dá um importante passo para pacificar controvérsias surgidas com uma nova modalidade de trabalho e criar condições para que ela prospere, em benefício das empresas, dos trabalhadores e dos consumidores.

A chamada economia freelance ou gig (dos “bicos”, em tradução livre), em que prestadores são contratados para serviços pontuais via plataformas digitais, tem desafiado governos de todo o mundo. Na raiz desse desafio está o rompimento da dicotomia entre empregado e autônomo.

No novo modelo, os trabalhadores são livres para oferecer serviços em diversas plataformas, aceitar ou não demandas dos consumidores e regular suas jornadas. Sem as condições de subordinação, habitualidade e exclusividade, não há que falar em vínculo de emprego. Ao mesmo tempo, não é um trabalho puramente autônomo. As plataformas recolhem parte do pagamento pelos serviços e impõem certas regras aos prestadores.

A tendência no mundo tem sido conferir a esses trabalhadores um status intermediário entre subordinados e autônomos. Em contrapartida ao bônus da flexibilidade e liberdade, eles têm o ônus de não gozar de todas as proteções garantidas a empregados padrão. Mas diversos países têm estabelecido algumas proteções mínimas e encargos por parte das plataformas, como remuneração condicionada ao valor/hora do salário mínimo, vinculação à Previdência Social, seguros contra acidentes ou doenças e incentivos financeiros à manutenção dos equipamentos de trabalho, tudo de modo proporcional aos serviços prestados.

O Brasil ainda precisa estabelecer uma legislação apropriada a esse novo modelo de trabalho. Há projetos no Congresso. Uma solução seria uma simplificação do regime CLT ou uma ampliação do Microempreendedor Individual (MEI). O STF não determinou, como não lhe compete, a forma jurídica desse modelo. Determinou, sim, aquilo que ele não é. Ao fazê-lo, atuou para disciplinar a Justiça Trabalhista, que persistentemente vem contrariando liminares e decisões monocráticas da Corte, tentando fazer com que o trabalho por aplicativos seja o que ele não pode ser: um emprego nos moldes da CLT.

À custa de buscar condições de trabalho dignas aos trabalhadores por aplicativo, enquadrando-os no modelo incompatível do emprego da CLT, os juízes trabalhistas ameaçam a viabilidade dos negócios das plataformas, e, por consequência, a fonte de renda desses trabalhadores, a liberdade e flexibilidade prezadas por eles, e, finalmente, os serviços valorizados pelo consumidor.

Além de atribular o mercado, a insubordinação da Justiça Trabalhista prejudica a própria ordem jurídica. “É um péssimo exemplo de descumprimento de decisão judicial partindo do próprio Poder Judiciário”, disse o ministro Luiz Fux. “Temos um trabalho insano com essas resistências dos tribunais do Trabalho em não aceitar a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.”

De fato, desde a reforma trabalhista, em 2017, as reclamações contra decisões do Tribunal Superior do Trabalho se avolumaram e hoje respondem por 54% das ações no STF, que virou um balcão de recursos para impor limites ou corrigir decisões da Justiça do Trabalho sobre pontos incontroversos da lei ou controvérsias já pacificadas pelo próprio STF. No caso da controvérsia sobre o vínculo entre trabalhadores por aplicativo e as plataformas, a decisão do plenário será importante para consolidar um entendimento e conter o ativismo dos tribunais trabalhistas.

Ainda não é a solução definitiva para estabelecer uma relação equilibrada de direitos e deveres entre os trabalhadores, as plataformas e os consumidores. Isso cabe ao Legislativo. Mas, ao corrigir distorções e incertezas criadas pelo próprio Judiciário, a Corte cumpre seu papel e garante que os debates e negociações das partes envolvidas na busca por esse equilíbrio sigam o seu curso natural, conforme a dinâmica democrática.

A calamidade da geração nem-nem

O Estado de S. Paulo

10,9 milhões de jovens não estudam nem trabalham; para a maioria, não por escolha

A estratificação dos dados do IBGE sobre a chamada “geração nem-nem”, jovens entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham, confirmou o que já se esperava: quanto mais pobre o segmento, maior é a parcela de jovens nesta condição, fato agravado quando incluídos os critérios de cor/raça e gênero. Os nem-nem são, ao todo, 10,9 milhões de brasileiros (22,3% da população dessa faixa etária), sendo 6,7 milhões deles pobres e, destes, quase metade (48%) mulheres pretas e pardas. A cada fracionamento, mais nítido se torna o triste retrato da desigualdade brasileira.

Triste e inquietante – afinal, adolescentes e jovens adultos deveriam ter garantido o direito à formação intelectual, técnica e profissional. Pela fragmentação dos dados estatísticos, é possível inferir que, para a grande maioria dessa população, fazer parte da classificação “nem-nem” não é uma escolha, ao contrário do que provavelmente acontece entre os “nem-nem” que pertencem à fatia dos 10% mais ricos. Nesse topo da pirâmide, 7,1% dos adolescentes e jovens estavam fora dos bancos escolares e do mercado de trabalho em 2022, índice que cai ano a ano – em 2012 eram 8,4%.

Já para os 10% mais pobres, o porcentual se aproxima velozmente da marca de 50%. Eram 41,9% em 2012 e, dez anos depois, chegaram a 49,3%. Principalmente para as jovens mais pobres, grande parte delas mães adolescentes, o caminho mais adotado tem sido o da porta da escola para fora, em direção aos cuidados da casa, dos filhos e dos pais, como constatou o IBGE na Síntese dos Indicadores Sociais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).

O Brasil caminha para três décadas de levantamento sistemático de dados da população “nemnem”. O caso brasileiro não é isolado. O termo, por exemplo, surgiu na década de 1990 na Inglaterra, sob a sigla NEET´s (not in employment, education, or

training – sem emprego, educação ou treinamento, em tradução livre). O problema é que, por aqui, as estatísticas permanecem em patamar perigosamente alto, sem um sinal claro de reversão.

Embora o resultado de 2022 tenha sido o terceiro menor da série (em 2012, o melhor resultado foi de 21,8% e em 2013, de 22%) a proporção ainda é altíssima. É inaceitável verificar que um em cada cinco jovens não estuda nem trabalha. Assim como não há justificativa plausível para o fato de o Brasil não ter constatado qualquer avanço na meta de universalização da educação infantil entre 2019 e 2022.

Os caminhos para reverter essa triste realidade não são desconhecidos, e o fortalecimento do ensino técnico é certamente um deles. O Ministério da Educação diz que essa é uma prioridade. Pois então que acelere essa marcha. Não há desculpa para protelações. Capacitar os jovens não é favor do poder público. Disso depende não apenas o futuro de cada um deles, mas o aumento da produtividade de um país que há muitos anos também é “nem-nem”: nem cresce nem se desenvolve.

O preconceito é motor da desigualdade

Correio Braziliense

Quando falamos dos diversos fatores de opressão na sociedade, como racismo, sexismo, capacitismo, homofobia, transfobia e outros, é preciso estar consciente da interseccionalidade

Não existem problemas isolados em um país com uma desigualdade tão gritante. Quanto mais desigual e quanto mais preconceituoso, maior o abismo que separa as diversas camadas e extratos da população — e toda ela deveria ter acesso aos mesmos direitos básicos e constitucionais.

Não podemos falar dos problemas de transporte público apenas do ponto de vista da mobilidade, por exemplo. É preciso mostrar que o direito de ir e vir é ainda mais comprometido para mulheres, que são frequentemente assediadas, e para a população LGBTQIAPN , como mostramos em uma série de reportagens agraciada na semana passada com o Prêmio CNT de Jornalismo.

Os jornalistas Talita de Souza, Pedro Grigori e Aline Brito receberam o prêmio pela série Viagem cancelada: o preconceito que limita o ir e vir da comunidade, que apresentou um levantamento inédito feito a partir de dados do Ministério dos Direitos Humanos sobre casos de violação dos direitos humanos com membros da comunidade LGBTQIAPN em transportes públicos, como ônibus e metrôs, e em veículos por aplicativo.

O trabalho teve apoio do repórter multimídia Benjamin Figueredo, responsável pelos vídeos e pelas imagens da primeira reportagem, e os textos foram editados por Mariana Niederauer, editora do site do Correio Braziliense. Um parêntesis: a jornalista Adriana Bernardes, coordenadora de reportagem do Correio, também foi homenageada por sua atuação ao longo da carreira como setorista de trânsito.

Quando falamos dos diversos fatores de opressão na sociedade, como racismo, sexismo, capacitismo, homofobia, transfobia e outros, é preciso estar consciente da interseccionalidade. Ou seja, a desigualdade se revela ainda pior para determinados grupos e comunidades, a depender de gênero, cor, credo etc. Porque as violências e formas de opressão não são independentes.

Ser uma mulher preta no Brasil, por exemplo, é fazer parte do maior grupo de vítimas de feminicídio, conforme os últimos dados do Atlas da Violência. Outro exemplo: a mortalidade por agressão é 41% mais elevada para negros do que para não negros.

Por isso, devemos reconhecer e combater aquilo que é estrutural: machismo, racismo e todas as formas de preconceitos. Desde a infância, com educação, com políticas afirmativas. Só assim teremos um país mais justo e menos desigual..

Novos rumos na Argentina

Correio Braziliense

Para o Brasil, é importante que a Argentina retome o caminho do crescimento econômico. Mas sem confrontos ideológicos e, sim, como dois parceiros estratégicos e maiores sócios do Mercosul

O ultradireitista Javier Milei toma posse, hoje, como presidente da Argentina em meio a um clima misto de otimismo e apreensão. Durante toda a campanha que o levou à Casa Rosada, ele se apresentou como um anarcopolítico, prometendo medidas radicais, como a dolarização da economia e o fechamento do Banco Central. Contudo, às vésperas de assumir o poder na terceira economia latina, o integrante do partido La Libertad Avanza (LLA) deu sinais de que colocou os pés na realidade, ante os desafios gigantescos que tem pela frente para dar início a um novo tempo para os argentinos. Há mais de duas décadas, eles convivem com constantes crises econômicas, inflação descontrolada e aumento da pobreza.

A meta de Milei, amanhã, é anunciar um pacote de 14 medidas que incluem cortes de gastos, retirada de subsídios às tarifas de energia elétrica, liberação dos preços dos combustíveis, da cesta básica e dos planos de saúde, aumento dos impostos de importação, desvalorização do peso e privatizações. A expectativa é de uma redução das despesas do governo equivalente a 5,5% do Produto Interno Bruto (PIB), ou US$ 25 bilhões (R$ 122 bilhões). Se tal arrocho se concretizar, a Argentina será empurrada para uma forte recessão, com a inflação saltando dos atuais 140% para 200% ao ano, por conta dos ajustes de preços.

É nesse ponto que se verá até onde vai a liderança de Milei junto à população. Não é uma tarefa fácil para qualquer governante, independentemente da ideologia política, lidar com um aperto tão expressivo da economia, sobretudo, em um país tão machucado quanto a Argentina, onde um em cada quatro cidadãos está na pobreza. Maurício Macri, que apoia o ultradireitista, não teve coragem de fazer o arrocho de uma única vez. Optou pela gradualidade das medidas, o que, na visão de analistas, foi o resultado de seu fracasso, a ponto de não ser reeleito. A Argentina, lembram, já está mergulhada na estagflação.

A liderança de Milei será testada, também, na relação com o Congresso. A maior parte do pacote de medidas depende de aprovação parlamentar, mas o presidente argentino ficou longe de garantir uma maioria. Dos 72 senadores, apenas sete são do partido dele. Na Câmara, dos 257 eleitos, somente 38 pertencem ao La Libertad Avanza. O sucesso do novo governo argentino, portanto, dependerá de diálogo e soluções inclusivas. Resta saber se o radical Milei, que prometeu acabar com a classe política tradicional, conseguirá descer do palanque e priorizar, realmente, os interesses da população tão sofrida.

A ala de economistas e empresários que se mostra otimista acredita que o pior momento para o governo será o primeiro trimestre de 2024, quando o arrocho será sentido com toda força. Mas, a partir do momento em que a inflação e o câmbio se estabilizarem, a confiança voltará e a atividade sairá do fundo do poço. O peso, de imediato, deve passar, no câmbio oficial, dos atuais 350 para 650 por dólar, dando fôlego às exportações. O pior da seca extrema que destruiu o setor agrícola ficou para trás, o que também resultará em mais vendas ao exterior. As receitas provenientes dessas operações permitirão arrecadação maior, ajudando na missão de reduzir o deficit público, de 15% do PIB, no ano que vem — Milei fala em zerar o rombo.

Enfim, a sorte da Argentina está lançada. No Brasil, o principal parceiro comercial do vizinho, a percepção é de que o trabalho a ser feito por Milei exigirá bom senso, algo muito distante dos arroubos da campanha eleitoral. O argentino prometeu romper os laços com o país, mas, logo depois do resultado das urnas, enviou a sua ministra das Relações Exteriores, Diana Mondino, para uma longa conversa com o chefe do Itamaraty, Mauro Vieira. Para o Brasil, é importante que a Argentina retome o caminho do crescimento econômico. Mas sem confrontos ideológicos e, sim, como dois parceiros estratégicos e maiores sócios do Mercosul.

 

 

 

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