domingo, 31 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

A agenda prioritária para 2024

O Globo

Atenção deve estar no corte de gastos, conclusão da reforma tributária, reforma administrativa e pauta ambiental

O ano de 2024 será desafiador para o Brasil. A conjunção de uma economia em desaceleração e eleições municipais exigirá do governo e do Congresso disciplina para não sucumbir ao populismo ou à complacência. Para o país garantir mais crescimento, mais trabalho, mais renda e mais equidade, Executivo e Legislativo terão de trabalhar duro.

A agenda prioritária deveria contemplar cinco itens: 1) controle dos gastos públicos para evitar uma crise fiscal; 2) votação de leis complementares à reforma tributária para garantir o mínimo de exceções e a simplificação do novo sistema de impostos; 3) aprovação da reforma administrativa para elevar a eficiência do Estado; 4) atenção à agenda ambiental, em especial ao mercado de carbono e ao combate ao desmatamento; 5) legislação para coibir manipulação por inteligência artificial na campanha eleitoral.

Que ninguém duvide. O maior desafio está na economia. A dívida pública brasileira estará perto de 75% do PIB quando saírem os números oficiais de 2023, percentual alto para um país emergente. Pelos cálculos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ao final de 2024 deverá estar perto de 80% do PIB nos governos federal, estaduais e municipais. Dívida alta significa mais gasto com juros, menos dinheiro para investimentos e menor capacidade de crescer.

Diante desse quadro, é urgente equilibrar as contas públicas. A estratégia do governo, demonstrada mais uma vez pelas medidas anunciadas na semana passada pelo Ministério da Fazenda, consiste em aumentar a arrecadação. Isso com certeza não bastará para cumprir a meta de zerar o déficit em 2024. O governo contempla duas opções, ambas ruins. A primeira é simplesmente mudar a meta para acomodar gastos maiores. A segunda é criar exceções para excluir os gastos da meta. Tanto uma como outra abalariam a credibilidade do novo arcabouço fiscal. Nas projeções da OCDE, ainda que as novas regras fiscais sejam seguidas, a dívida crescerá até 90% do PIB em 2047. Num cenário em que o arcabouço seja implementado de forma relapsa, atingirá 100% já em 2037. Cortar despesas, portanto, não é uma opção. É um dever. O governo precisa apresentar um plano consistente de cortes e aumento na eficiência dos gastos.

A aprovação da reforma tributária foi, sem dúvida, histórica, mas ainda há trabalho por fazer. Em 2024, o Congresso votará as leis complementares para regulamentá-la. Pelo que já foi aprovado, diversos setores serão beneficiados com alíquotas menores. Em consequência será maior a de todos os demais. O tamanho da “bondade” para alguns determinará o da “maldade” para a maioria. O Ministério da Fazenda estima a alíquota dos dois novos impostos criados pela reforma em torno de 27,5%, entre as mais altas do mundo. Há estimativas mais pessimistas. Outro ponto à espera de definição é a operação do novo sistema. A meta deve ser facilitar a vida do contribuinte, não do Fisco.

Os congressistas também precisam dedicar energia a outra reforma fundamental: a administrativa. É crônica a insatisfação dos brasileiros com o serviço público. As despesas com o funcionalismo consomem 13% do PIB, mais que em Portugal ou na França. O governo evita o assunto, mas modernizar a gestão pública é uma necessidade urgente. Há funcionários sobrando, a avaliação por desempenho é uma ficção, e uma elite recebe fortunas, enquanto a maioria ganha remuneração sofrível. Há propostas no Congresso facilitando a demissão de funcionários públicos por desempenho insuficiente, coibindo os supersalários e modernizando os concursos públicos. Seria apenas o início de uma mudança fundamental para o país. O projeto para reduzir o número de carreiras (na esfera federal há mais de 300 tabelas) foi postergado. Se o Executivo não apresentar sua agenda para a máquina pública, cara e ineficiente, o Congresso mais uma vez precisará tomar a dianteira.

No campo ambiental, 2023 ficará marcado como o ano de recuperação no combate ao desmatamento na Amazônia. Garimpeiros, madeireiros e pecuaristas ilegais voltaram a ser identificados e punidos. Em 2024, será preciso reverter a tendência preocupante na devastação do Cerrado. O governo já tem um plano de ação, mas, para transformá-lo em realidade, será fundamental contar com a cooperação de governadores e prefeitos, responsáveis pela emissão de permissões para o desmate legal.

No Congresso, é urgente a aprovação de um mercado formal para negociação de créditos de carbono. O texto aprovado em outubro no Senado não era perfeito, mas piorou na Câmara. É papel do Executivo e do Legislativo acelerar a aprovação para garantir segurança jurídica às iniciativas de descarbonização. Na exploração de petróleo, não deve haver dúvidas sobre a licença para pesquisar a Margem Equatorial, faixa do litoral que vai do Amapá ao Rio Grande do Norte. O Brasil deve saber o que existe na área, não pode se contentar com o desconhecimento. Depois, se decidir explorá-la, não deve abrir mão do compromisso ambiental, com rigor nas medidas de prevenção de acidentes.

Para as eleições municipais, o maior desafio está na campanha eleitoral. O Brasil carece de legislação explícita contra vídeos e áudios fraudulentos feitos com ferramentas de inteligência artificial. A recente eleição na Argentina demonstra os perigos da nova tecnologia. Assim como nos pleitos anteriores, os celulares serão o foco das campanhas. Por isso é urgente estender ao meio digital as proibições, já vigentes na propaganda por rádio e TV, a montagens, trucagens, efeitos especiais ou computação gráfica. Sem uma lei rigorosa, o equilíbrio democrático ficará em xeque.

Em 2024, o governo terá um ano decisivo para consolidar sua credibilidade. Os discursos em favor da responsabilidade fiscal, do protagonismo ambiental e do vigor democrático precisam estar ancorados em atos concretos. A queda dos juros e da inflação nos países ricos descortina um cenário de melhora global. Com as políticas adequadas, o Brasil poderá se beneficiar. Em jogo está não apenas o ano de 2024, mas também os próximos.

Ano de alívio

Folha de S. Paulo

Com agro forte, exterior benigno e PT contido, economia supera expectativas

Encerra-se este 2023 com uma sensação de alívio quanto à evolução do bem-estar material e social da população brasileira —a não se confundir com a crença de que estão superados os riscos que pairam sobre a economia do país.

Medida da renda nacional, o Produto Interno Bruto repetiu o crescimento na casa de 3%, com ajuda relevante do agronegócio, acima do esperado e sustentando a criação de empregos. A inflação se manteve em queda depois do repique global que se seguiu à pandemia. A aprovação da reforma tributária criou uma oportunidade preciosa.

Exportações vigorosas garantiram o ingresso de divisas, e as cotações internas do dólar recuaram, contribuindo para o controle dos preços. Juros em tendência de queda aqui e lá fora animaram as Bolsas nos últimos meses.

Não são resultados espetaculares, mas vê-se um ambiente bem menos anuviado que o do início do ano, quando Luiz Inácio Lula da Silva (PT) semeava insegurança —e juros mais elevados— com ataques ao equilíbrio orçamentário, à autonomia do Banco Central e às metas de inflação.

O governo começou com a bandeira da gastança, promovida antes mesmo da posse por meio de uma emenda constitucional que elevou despesas permanentes a um patamar muito acima do necessário para acomodar a correta ampliação do Bolsa Família.

Felizmente, entretanto, o pragmatismo prevaleceu sobre outras das piores ideias do presidente da República e de seu partido.

De todo modo, parcela expressiva das boas surpresas do ano esteve desvinculada dos impactos diretos da política econômica doméstica. Exemplo mais evidente é o da safra recorde de grãos, que provocou um salto de 12,5% no PIB agropecuário no primeiro trimestre.

Esse impulso se espalhou pelas ramificações industriais e de serviços do competitivo agronegócio brasileiro, que responde por cerca de 25% da renda do país e independe de proteção estatal.

No exterior, dissiparam-se temores de onda recessiva resultante das medidas contra a alta inflacionária global. Preços de matérias-primas caíram, mas o volume de compras manteve o bom desempenho das exportações brasileiras. O Fed, banco central americano, anunciou recentemente a perspectiva de queda mais rápida de suas taxas.

Por aqui, o avanço institucional do BC autônomo evitou o descontrole de expectativas e facilitou o controle da inflação em meio às tensões da troca de governo. A Selic, ainda muito elevada, iniciou trajetória de queda em agosto.

Da parte do governo, a principal inovação foi o advento de uma nova regra fiscal em substituição ao já desfigurado teto de gastos, o que ao menos estabeleceu limites formais para a expansão das despesas.

A situação orçamentária, no entanto, está longe de confortável —e aqui começam as ameaças à saúde econômica e social do país.

O ano termina com grave deterioração das contas do Tesouro, e é evidente para todos que o novo regramento é insuficiente para sustar a escalada da dívida pública. Foi esse o sentido de um alerta recente da OCDE, que irritou Lula.

Espera-se desaceleração da economia em 2024, já notada no PIB do terceiro trimestre. Se confirmada a expectativa, tendem a acirrar-se, em ano de eleições municipais, as pressões do PT e da ala política do governo contra a já desacreditada meta de déficit zero.

O ministro Fernando Haddad, da Fazenda, segue como defensor solitário da racionalidade no partido. Ainda que tenha colhido vitórias importantes contra subsídios tributários iníquos, a insistência em basear todo o ajuste na arrecadação, sem revisão aprofundada dos gastos, está fadada a frustrações.

A alta da despesa pública produz não mais que espasmos declinantes na atividade econômica. O crescimento duradouro depende de investimento —que só fez cair no ano— e da produtividade.

O governo atua contra a eficiência empresarial ao recusar privatizações e insistir no aparelhamento das estatais. Ao menos não prosperaram, até aqui, ensaios de aumento do crédito subsidiado, reestatizações e retrocesso nas reformas trabalhista e previdenciária.

Daqui em diante, há que resistir à tentação de ganhos políticos de curto prazo. A regulamentação do sistema tributário exigirá trabalho persistente contra a ação de lobbies por privilégios. O Bolsa Família e a política social devem ser aperfeiçoados por maior eficácia no combate à pobreza. O país tem uma década perdida a deixar para trás.

A porta estreita para um mundo melhor

O Estado de S. Paulo

OCDE mostra que os custos da urgente transição energética recairão três vezes mais sobre países pobres do que sobre ricos; só reformas e novas tecnologias podem mudar essa equação

Em quatro anos o mundo foi surpreendido por uma pandemia, por duas guerras de impacto global e por uma irrupção disruptiva da Inteligência Artificial. Se é difícil prever como será o mundo em quatro anos, imagine em 40 anos? No entanto, há duas megatendências inexoráveis: o planeta está esquentando e os humanos vivem mais e têm menos filhos. A consequência é uma humanidade envelhecida, que luta para substituir sua energia fóssil por energias verdes.

O impacto destas transformações foi sopesado na mais recente projeção de cenários de longo prazo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um fórum das democracias ricas.

O cenário-base projeta a continuação da rota atual, sem maiores mudanças políticas e institucionais: mais do mesmo. Neste caso, para as nações da OCDE e do Grupo dos 20 (G-20) combinadas (ou 83% do PIB global), o declínio no crescimento da força de trabalho e da produtividade desacelerará o crescimento econômico, dos atuais 3% ao ano para 1,7% em 2060. Na maior parte das economias emergentes do G-20, o crescimento do PIB per capita será mais lento. Há exceções, como Brasil, Argentina e África do Sul, só porque seu desempenho atual é tão medíocre que é difícil piorar. Mas os padrões de vida destes países se aproximarão pouco do padrão de vida dos países desenvolvidos, menos que os da China, da Índia ou da Indonésia.

Até 2060, a pressão fiscal deve crescer no mundo cerca de 6 pontos porcentuais do PIB. Essa seria a quantia que um país médio precisaria aumentar em impostos para conter a escalada do endividamento público.

Se o envelhecimento populacional já é deprimente, as más notícias não param aí. O cenário-base não contabiliza a transição energética. Pela primeira vez, a OCDE estimou os custos dessa transição. Nesse cenário, todos os países acelerariam a descarbonização, eliminando o carvão e reduzindo o petróleo e o gás a 15% da matriz energética em 2050. A boa notícia é que isso alcançaria a meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5°C. A má notícia são os estragos sociais: mais fome, mortes e, consequentemente, violência.

De acordo com a OCDE, os custos cumulativos da mitigação consumiriam 8% do PIB global até 2050. Porém as perdas são desiguais. Os países ricos ficarão 3,7% menos ricos e os países pobres ficarão 11% mais pobres. O mundo já será mais velho; a transição energética o tornará mais pobre e desigual.

Não são tendências imutáveis. Projeções não são futurologia nem precisam ser um destino, se tomadas como uma advertência e um convite à ação política e à criatividade.

Inovações tecnológicas, seja na biotecnologia, seja na Inteligência Artificial ou na automação industrial, podem impulsionar a produtividade. Reformas que melhorem a eficiência dos sistemas de saúde e de previdência podem aliviar pressões fiscais. Para as economias emergentes do Brics, a OCDE projeta que melhorias na governança, no desempenho educacional e na abertura comercial têm o potencial de elevar seu padrão de vida de 30% a 50% em relação ao cenário-base.

A taxação do carbono pode gerar receitas adicionais, que podem ser empregadas para aliviar a carga tributária sobre o trabalho. Parte dessas receitas deveria ser investida em pesquisa e desenvolvimento de energias tão baratas e eficientes quanto as fósseis.

Por ora, é preciso lidar com a realidade como ela é. Com as tecnologias atuais, a aceleração da descarbonização impõe um peso ao bem-estar social e, inversamente, a elevação do bem-estar social impõe um freio à descarbonização.

O mundo precisa se empenhar em cálculos de custo-benefício para fazer escolhas racionais entre a preservação ambiental e o progresso social. E os países pobres precisam negociar com os países ricos transferências de recursos e/ou prazos dilatados para uma transição energética socialmente sustentável.

O custo da credibilidade

O Estado de S. Paulo

A Inteligência Artificial só será confiável se se basear em dados confiáveis. Mas a apuração desses dados custa muito suor e dinheiro a humanos que não estão sendo recompensados por isso

Se tudo o que amamos na civilização é um produto da inteligência, a criação de uma inteligência artificial (IA) capaz de realizar as operações mais complexas da inteligência humana em milésimos de segundo pode ser a maior invenção da história mundial. A euforia com as novas tecnologias de IA generativa são justificadas. Mas também o pavor: os humanos poderiam se tornar simplesmente obsoletos. Mas poderiam realmente?

A capacidade das novas máquinas de computar dados e sintetizá-los já supera em muito as capacidades humanas. Ainda assim, resta a questão: quem gera esses dados?

Um modo mais humilhante, mas realista, de descrever máquinas de IA é, na expressão da linguista Emily M. Bender, “papagaios estocásticos”. “Os amplos modelos de linguagem são impressionantes em sua habilidade de gerar uma linguagem realista, mas no fim das contas eles não entendem verdadeiramente o sentido da linguagem que estão processando”, diz Bender. Assim, as previsões realizadas por uma máquina que aprende sozinha estão essencialmente repetindo conteúdos dos dados. Em outras palavras, se uma máquina eficiente é alimentada com dados confiáveis, os resultados serão provavelmente confiáveis, mas, se os dados não são confiáveis, os resultados serão o inverso.

Os próprios programadores reconhecem isso. Uma pesquisa da News Media Alliance, que representa mais de 2 mil publicações, averiguou que as empresas de tecnologia utilizam “desproporcionalmente” as notícias online e conteúdos de revistas e jornais digitais para treinar seus softwares de IA. Uma análise do Washington Post revelou que as 10 principais fontes utilizadas para treinar os “modelos de linguagem grande” são veículos de mídia profissional. “Nossa própria presença (online) está dando credibilidade para essas plataformas que de outra forma seriam preenchidas por nonsense caça-cliques e informação desregulada”, resumiu Katie French, editora da Newsquest.

As empresas de tecnologia têm resistido a remunerar as fontes dessas informações com base na jurisprudência americana do “uso justo” (fair use), segundo a qual “o uso por inovadores de modos transformadores de materiais protegidos por direitos autorais não infringe esses direitos”. Pode-se questionar até que ponto isso se aplica à aprendizagem da máquina. Humanos utilizam obras protegidas por direitos autorais para aprender. Mas quando os robôs utilizam esses materiais para gerar conteúdo disponibilizado ao público e explorado comercialmente, parece inequívoco o dever de remuneração.

A prova de que as empresas de IA reconhecem isso é o acordo fechado com o grupo alemão Axel Springer pela OpenAI, que remunerará pelo uso de mídias como Bild, Politico e Business Insider.

Após meses de negociações frustradas para se fechar um acordo similar, o New York Times (NYT) se tornou a primeira grande empresa de mídia norteamericana a processar a OpenAI e a Microsoft sobre seus robôs, “por lucrar com a infração massiva de direitos autorais, a exploração comercial e a apropriação indevida da propriedade intelectual do Times”. O jornal alega que as empresas têm buscado “surfar livremente sobre o investimento massivo do Times em seu jornalismo, utilizando-o para construir produtos substitutivos sem permissão ou remuneração”. Até há pouco tempo, um internauta que quisesse, por exemplo, reproduzir a receita de macarrão com queijo do NYT teria de bancar o pagamento de uma assinatura. Hoje ele pode simplesmente pedi-la a um chatbot.

Uma opção para as mídias jornalísticas seria bloquear o acesso dos robôs aos seus websites. Isso evitará as perdas, mas não trará ganhos a ninguém. Máquinas treinadas com informação ruim, gerando conteúdos com informação ruim, só produzirão resultados ruins: mais desinformação e ameaças ao debate democrático.

Se os robôs das empresas de tecnologia geram conteúdos utilizando dados apurados por jornalistas profissionais e lucram com isso, nada mais razoável que parte desses lucros seja repassada a quem gerou esses dados. Isso, sim, será um uso justo e benéfico a todos.

A língua da Justiça

O Estado de S. Paulo

É bem-vindo o pacto do Judiciário para simplificar sua linguagem, hoje francamente excludente

Merece aplausos o ministro Luis Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao lançar no início deste mês o Pacto Nacional do Judiciário

pela Linguagem Simples. Seu desafio, porém, será converter uma boa ideia (adotar linguagem compreensível a qualquer pessoa) e um ato simbólico (construir um “pacto nacional”) em prática efetiva. A tradição do Judiciário desabona prognósticos muito otimistas, o que exigirá mais do que um protocolo de intenções.

O pacto proposto aponta bons caminhos práticos. Primeiro, reforça a recente recomendação do CNJ para a implementação de linguagem simples, clara e acessível, incluindo o uso, “sempre que possível”, de elementos visuais que facilitem a compreensão de suas decisões. Segundo, defende a criação de manuais para orientar a população sobre expressões técnicas dos textos jurídicos, o investimento na formação de magistrados e servidores para elaboração de textos mais concisos e claros e a criação do “Selo Linguagem Simples”, destinado a reconhecer e estimular boas iniciativas.

O problema vai além do incentivo a aproximar a Justiça da população ou da previsão de Libras e audiodescrição para ampliar sua acessibilidade. É uma questão de tradição e cultura que contaminam as esferas de poder desde que o Brasil é Brasil – essa tradição informa que linguagem hermética e inacessível é sinônimo de gente culta e bem formada, enquanto mensagens simples e breves nada mais são do que efeito da superficialidade e baixo nível de conhecimento. Desse mal não padecem apenas juízes: é marca universal entre operadores do direito, assim como na academia e na burocracia. Tanto que uma legislação de 2017 define que é direito de qualquer cidadão ser atendido em linguagem simples e compreensível, e não consta que tivemos grandes avanços desde então.

O cultismo é a norma. A coloquialidade, a exceção. Seja pela tradição ou pelo elitismo puro e simples, o fato é que vigora a obsessão pelo rebuscamento da forma e pela linguagem erudita. Em bom português: o gosto pelas palavras difíceis. Como afirmou o ministro Barroso, trata-se de um eficiente instrumento de poder e exclusão. Decisões excessivamente formais e extensas, cacoetes linguísticos e estrangeirismos desnecessários acabam separando o mundo em dois níveis – aqueles que compreendem e aqueles que não compreendem.

A história ensina a eficácia dessa lógica. No passado, líderes religiosos tradicionais impuseram controle do acesso a determinadas obras, confundindo o sagrado com o secreto para que suas determinações se mostrassem incontestáveis. Regimes autoritários se prolongam, entre outras coisas, pela restrição ao saber e à democratização do conhecimento. Ainda hoje intelectuais modulam sua reputação com base na capacidade de falar para poucos, deslegitimando acadêmicos com grande poder de comunicação.

Como lembrou Barroso, quase tudo o que o Judiciário decide pode ser explicado de forma acessível. No que convém acrescentar: que o pacto pela linguagem simples seja também compromisso com a lei, sem criatividades tortuosas que tanto dificultam sua compreensão.

Esperança renovada

Correio Braziliense

A população brasileira, sobretudo a mais carente, necessita que as divergências sejam colocadas de lado e um amplo projeto de reconstrução nacional saia do discurso para a prática

A esperança sempre foi a marca do brasileiro. Num país tão desigual, o sonho de uma vida melhor está presente na maior parte da população. A chegada de um novo ano sempre reforça esse desejo. A sensação de que um futuro promissor está próximo se torna mais forte. Pois que governo e sociedade se unam para a construção de um Brasil que, efetivamente, seja rico em oportunidades e não discrimine pessoas por questão de gênero, por opção sexual, pela cor e mesmo pelo viés político, desde que respeitadas as regras democráticas. É a pluralidade a maior riqueza de uma nação, por ser inclusiva e tolerante.

Nos últimos anos, o país mergulhou no escuro, em que o ódio e o desrespeito se tornaram marcas. O Brasil caloroso, simpático, cordial deu lugar à divisão, com famílias e amigos rompendo relações movidos pela ideologia. Não é esse o caminho para uma nação que tanto anseia pela prosperidade. Os desafios colocados tanto do ponto de vista econômico quanto do social são tão grandes, que não há espaço para a desunião. Muito pelo contrário. A população brasileira, sobretudo a mais carente, necessita que as divergências sejam colocadas de lado e um amplo projeto de reconstrução nacional saia do discurso para a prática.

O Brasil, como mostram todas as estatísticas, está envelhecendo rapidamente. As demandas da sociedade daqui por diante serão enormes na área da saúde. Não se pode permitir que gerações que contribuíram para o país que se tem hoje sejam empurradas para a vulnerabilidade, sem o mínimo de dignidade. Infelizmente, o Brasil perdeu o chamado bônus demográfico, período em que a maior parte da população está em idade ativa, com capacidade para gerar e acumular riqueza para o futuro. Cabe, portanto, a todos encontrar os caminhos alternativos e seguros que garantirão o tão propalado estado do bem-estar social.

Sabe-se que todo o percurso passa por uma educação de qualidade. O país precisa proporcionar às novas gerações um estudo transformador, em especial às meninas que, quando afastadas das escolas, acabam, muitas vezes, perpetuando a pobreza. A realidade está escancarada em relação a esse quadro dramático. A maior parte das crianças que nascerão nos próximos anos virá de famílias menos abastadas. Por isso, quanto melhor for a qualidade do ensino nos colégios públicos, maiores serão as chances de esses meninos e meninas ultrapassarem as barreiras impostas pelas desigualdades.

Há exemplos de sobra no mundo de que é possível se construir um país mais justo. Mas isso requer vontade política e, principalmente, uma sociedade que tenha a consciência de seus direitos e deveres. Os brasileiros não podem se contentar com o mínimo e normalizar as péssimas condições de vida, a falta de oportunidades, a violência que atinge, em especial, pretos e pobres. Ainda é possível virar as páginas do atraso, às quais os privilegiados se apegam, para que o fosso das diferenças sociais diminua. O impacto da melhor distribuição de renda sobre a economia é impressionante, pois beneficia consumidores, empresas e governo. É esse o Brasil do futuro.

O novo ano está batendo à porta de todos. E não se trata apenas da virada de página do calendário. É um momento de reflexão sobre tudo o que foi feito e sobre o que está por vir. Os erros devem servir de lição e não se repetirem. Os acertos são a base da estrutura que prevalecerá de um país em que todos tenham vozes e sejam ouvidos. O Brasil tem tudo para mostrar ao mundo que pode mudar a história para melhor. Basta seguir o bom-senso, com fortalecimento da democracia, preservação ambiental, melhor gestão dos recursos públicos, política econômica consistente e, claro, valorização de um povo esperançoso, criativo e com uma cultura riquíssima. Que 2024 seja um marco para o país. Feliz ano-novo!

 

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