segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

MEC acerta ao querer restringir abusos do Fies

O Globo

Fundo estudantil se tornou foco de inadimplência e meio de sustentação de faculdades de baixa qualidade

O ministro da EducaçãoCamilo Santana, pretende pôr um freio no descontrolado Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa de crédito a estudantes criado para facilitar o acesso às universidades privadas. Em entrevista ao GLOBO, Santana afirmou que o governo enviará até o fim do ano um projeto ao Congresso com propostas para adotar critérios mais rígidos de acesso e reduzir a inadimplência, dois problemas crônicos.

Um dos objetivos, diz Santana, é diminuir a abrangência para 100 mil inscritos. Hoje são 144 mil (em 2014, chegaram a 700 mil). A ideia é que o novo Fies seja menor e mais dirigido, destinado aos que mais precisam de ajuda para ingressar numa universidade particular. Diferentemente do que ocorre na educação básica, no Brasil estabelecimentos privados respondem por 85% do ensino superior. “Para atingir a meta do Plano Nacional de Educação, garantir 50% das matrículas dos jovens de 18 a 24 anos no ensino superior, o papel das universidades particulares será importante”, afirma Santana.

O Fies foi criado em 1999 com o objetivo de ampliar o acesso ao ensino superior. Estudantes sem condições de arcar com as mensalidades poderiam cursar universidades particulares quitando a dívida depois de formados. Em mais de duas décadas, o programa se transformou em muleta para o populismo de diferentes governos, que só se preocupavam em ampliar o número de beneficiados, a despeito da inadimplência. Houve uma explosão de vagas em faculdades particulares, interessadas no dinheiro fácil garantido pelo governo. A prova mais eloquente de que não deu certo é a quantidade de reformulações por que o programa já passou sem resultados satisfatórios.

O Fies virou uma fábrica de endividados. Hoje há 1,2 milhão de contratos inadimplentes, com saldo devedor de R$ 54 bilhões. Há casos em que não pagar a dívida se explica, mas estudos já demonstraram que parcela significativa dos inadimplentes teria condições de arcar com as mensalidades. O Fies se tornou, nas palavras de Santana, “política mais financeira que social”.

Os próprios governantes contribuem para o descrédito. Não pagou? Sem problema, o governo perdoa. Obviamente, rende votos. No ano passado, o governo Jair Bolsonaro deflagrou renegociações generosas depois que o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva acenou com perdão às dívidas. Promessa eleitoreira semelhante foi feita nos Estados Unidos por Joe Biden, hoje às voltas com dificuldades para passar pelo Congresso americano seu perdão a dívidas estudantis. Por aqui, Lula sancionou no início do mês uma lei que prevê renegociação com descontos generosos aos inadimplentes. Fica a sensação de que só os otários pagam, enquanto os espertos aguardam a anistia que cedo ou tarde oficializará o calote.

A intenção de facilitar o acesso ao ensino superior é louvável, mas o Fies não pode se tornar um subsídio disfarçado para universidades privadas de baixa qualidade, como infelizmente acontece. Não há dúvida de que o programa precisa ser reformulado e, considerando o histórico de fracassos, a reformulação tem de ser geral. Antes de tudo, ele deveria beneficiar os estudantes mais necessitados. Não se pode perder de vista que se trata de um contrato: estuda-se e paga-se depois quando empregado. Sem isso o fundo não se sustenta. Santana precisará provar que o novo Fies será realmente novo.

Crise na empresa que criou ChatGPT expõe necessidade de regular IA

O Globo

Fundador da OpenAI foi demitido e recontratado em dias, ao que tudo indica com base em temores incertos

Em novembro do ano passado, a americana OpenAI conquistou fama global ao lançar o ChatGPT, robô de bate-papo capaz de se comunicar de modo praticamente indistinto dos humanos. Foi o estopim para que, de uma hora para outra, a tecnologia promissora conhecida como inteligência artificial (IA) se tornasse assunto nas redes sociais, escolas, lares e bares. A façanha fez de Sam Altman, fundador e principal executivo da OpenAI, o rosto da nova tecnologia — e da empresa a startup mais badalada, valorizada e invejada do mundo.

Um ano depois, a OpenAI voltou a surpreender, desta vez pela confusão. Há pouco mais de duas semanas, o conselho de administração demitiu Altman sem dar explicações. Quatro dias depois, quando mais de 700 funcionários ameaçavam pedir demissão para acompanhá-lo noutro empreendimento, a empresa voltou atrás. Altman retornou ao comando e houve mudanças no conselho. Ninguém entendeu direito o que tinha acontecido.

Uma disputa de narrativas tenta explicar o imbróglio na OpenAI. Para alguns, foi um embate entre autoproclamados idealistas, preocupados com a segurança da tecnologia (os ex-integrantes do conselho), e quem está menos alarmado com potenciais efeitos negativos e deseja desenvolvê-la rápido (Altman e seus apoiadores). A valer uma versão plausível, a OpenIA avançou no desenvolvimento da inteligência artificial geral (IAG), meta teórica em que computadores executarão qualquer tarefa intelectual humana — e os conselheiros ficaram assustados.

Diante de uma nova tecnologia, é fácil se perder em debates sobre como é maravilhosa ou ameaçadora. Nessas horas, é importante lembrar que a humanidade já passou por situações semelhantes. Avanços que permitem a máquinas substituir trabalho humano são tão velhos como a história da indústria. A eletrificação a partir do início do século XX revolucionou a produção nas fábricas e a vida em sociedade. A exploração do petróleo transformou o transporte, a produção agrícola e o modo como vivemos. A própria tecnologia digital e de comunicação provocou mudanças radicais na organização da sociedade, com efeitos até na política.

A cada nova transformação, novas regras e instituições foram criadas para garantir que as tecnologias fossem usadas em benefício da maioria. Com a IA não poderá ser diferente. Algoritmos precisam ter o bem-estar humano como bússola, elevando a produtividade do trabalho, aumentando a qualidade de pesquisas ao sugerir parcerias entre acadêmicos de perfis complementares ou produzindo informações melhores para seres humanos tomarem decisões. Garantir que isso ocorra não é tarefa de idealistas, presidentes de startups como a OpenAI ou das gigantes do Vale do Silício. O lançamento do ChatGPT em 2022 mostrou ao mundo o potencial da IA. As empresas devem continuar a ter a liberdade e os incentivos para desenvolvê-la. Mas o drama da demissão inesperada e recontratação a jato de Altman também tornou evidente a necessidade de governos regularem o uso da tecnologia.

Legislativo garante sobrevida e subsídio a energias poluentes

Valor Econômico

O país dá sinais de que as energias limpas que estão sendo incentivadas não conseguem, por desejo do Legislativo e/ou do Executivo, se emancipar dos combustíveis fósseis, subsidiados

Projetos que ampliam ou criam fontes de energias renováveis entram de um jeito e saem de outro do Congresso - o novo é aprovado mantendo a sobrevida de velhas energias poluentes, exatamente as que se quer substituir. O projeto de lei que regulamenta a exploração de energia eólica em alto mar é o mais recente exemplo disso. Emergiu da votação da Câmara com um adendo que nada tem a ver com seu objeto, garantindo a manutenção das térmicas a carvão até 2050 com garantia de preço, cujos contratos estão em vias de extinção ou expirariam em 2028. Os “jabutis” do setor de energia criaram seu próprio sistema interligado: a obrigatoriedade de construção de térmicas a gás nos locais onde não há gás e de PCHs, inseridas na privatização da Eletrobras, foram pousar, modificadas, no PL 11247-18, que agora retorna à Câmara dos Deputados.

Um pouco antes, a oposição de entidades do setor elétrico conteve no nascedouro a gestação de uma MP que concederia mais 36 meses às usinas que deveriam produzir energia renovável com direito a subsídio de 50% nas tarifas de transmissão e distribuição, mas que até agora não têm acesso ao sistema. A benesse custaria R$ 6 bilhões e iria, como é praxe no setor elétrico, para a conta dos consumidores. Uma usina de subsídios aumentou a conta de desenvolvimento energético (CDE) a R$ 30 bilhões até novembro. E, pela forma distorcida com que o sistema opera, quanto mais sobra energia, mais cara ela se torna.

As energias renováveis, que ampliaram sua fatia rapidamente, são parte da solução, mas também do problema. O anúncio do fim do prazo para inscrição de usinas com direito a subsídios levou a 3.987 outorgas, que, em operação, elevariam o estoque das renováveis a 169,4 gigawatts (GW), nada menos que 80% da capacidade instalada do país, de 211,7 GW. “Não pode colocar mais energia do que é consumido porque vai dar problema”, avisou o diretor-geral do Operador Nacional do Sistema (ONS), Carlos Ciocchi, que tem barrado o acesso das usinas às redes. “Lá atrás, o agente ficava ‘sentado na cachoeira’, marcando o local para receber a usina. É como quem compra ingresso antecipado de um show para vender mais caro lá na frente. Por isso, tem que ter critério, não dá para aprovar projeto que só existe no ‘power point”, disse ao Valor (27 de novembro).

Ao mesmo tempo, pressões sobre deputados e governo conseguiram contornar a aprovação de mais uma barragem de subsídios que adviriam do projeto 2308/23, que incluiu o hidrogênio verde na matriz elétrica nacional, aprovado pela Câmara em 29 de novembro sem os enormes incentivos pretendidos. Em simulação, se 100 MW de energia eólica fossem destinados à produção do novo combustível, o desconto no uso da rede de transmissão chegaria a R$ 35 bilhões (Edvaldo Santana, Valor, 23 de novembro), praticamente dobrando a conta que hoje é paga pelos consumidores.

Uma conjunção de fatores tornou o mercado de energia sobreofertado. Além das chuvas abundantes, que encheram os reservatórios, a oferta está crescendo a um ritmo que é o triplo da demanda e quase todo o investimento nas energias renováveis é feito por empresas privadas. Isso derrubou os preços no mercado livre, por enquanto um clube fechado e reservado a poucos. Em 27 de julho, por exemplo, as distribuidoras compravam energia a R$ 270 o MW, enquanto a mesma energia valia R$ 60 o MW no mercado livre. Na conta do consumidor, o preço triplicava, considerando-se todos os subsídios e penduricalhos adicionados.

O problema do projeto que regulamenta a exploração da energia eólica offshore não está na energia em si, mas nos jabutis, apesar de, no atual quadro de suprimento, ela não ser necessária até 2045, calcula Edvaldo Santana, ex-diretor da Aneel e colunista do Valor. Com o baixo interesse nos 8.000 MW em térmicas a gás (em locais sem gás), eles migraram para o PL das eólicas. A fatia das PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) subiu a 4,9 mil MW, a um custo estimado de R$ 8,6 bilhões (Folha de São Paulo, 30 de novembro). Térmicas com oferta de 4,25 mil MW foram mantidas, com separação entre obras e fornecimento de gás, a um custo de R$ 16 bilhões anuais, quando entrarem em operação, por 15 anos. A aprovação do projeto incluiu ainda a permanência de mercado cativo para as 21 térmicas a carvão, que hoje custam R$ 1 bilhão por ano. Elas terão sobrevida garantida até 2050, o ano em que a maioria dos países participantes do Acordo de Paris promete zerar as emissões de carbono.

O país dá sinais de que as energias limpas que estão sendo incentivadas não conseguem, por desejo do Legislativo e/ou do Executivo, se emancipar dos combustíveis fósseis, subsidiados. Também preocupante é o fato de que o Congresso ter aprovado projetos ruins como esses por folgada maioria (no caso do PL 11247, por 403 a 18). Os planos do Executivo para explorar a Margem Equatorial do Amazonas merecem mais discussões sobre as ressalvas para que não indiquem ainda mais contradições entre ações e discurso em um governo que pretende ter papel de primeira linha no combate ao aquecimento global.

Corrida à receita

Folha de S. Paulo

Vitórias do governo em tributação serão ineficazes sem controle das despesas

Nas semanas finais do ano legislativo, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) procura aprovar o restante do pacote que visa reduzir isenções fiscais e, assim, aumentar a receita e ao menos diminuir o déficit do Tesouro Nacional. Obteve-se algum sucesso na semana passada, mas ainda longe do necessário para o equilíbrio das contas.

O Congresso aprovou a nova forma de tributação de ganhos "offshore", de contas e empresas sediadas no exterior, e dos fundos de investimento chamados exclusivos, destinados a grandes investidores. Nos dois casos, a Fazenda buscava equiparar as normas dos tributos sobre tais rendimentos a aplicações equivalentes no Brasil.

Já os parlamentares diminuíram a carga de impostos almejada pelo governo, que estima obter cerca de R$ 20 bilhões em 2024, algo menos que 0,2% do PIB —caso os contribuintes não driblem as novas regras, deslocando seus haveres para outros negócios.

Nas três últimas semanas ativas do Congresso, a administração petista também espera aprovar a tributação federal sobre parte do ICMS que deixa de ser pago por empresas beneficiadas por isenções fiscais estaduais.

Foi instalada uma comissão para analisar a medida provisória que estabelece a cobrança do imposto, sob forte resistência de empresas e estados. O governo espera obter ao menos 0,3% do PIB com essa medida em 2024.

Na pauta ainda estão projetos menores, como a tributação sobre apostas esportivas; espera-se o anúncio da alíquota do imposto sobre importações de pequeno valor. Ademais, é possível que seja apreciada em 2023 a nova norma para juros sobre capital próprio, um modo de distribuição de lucros aos acionistas.

Neste ano a ofensiva arrecadatória também incluiu, entre outras providências, uma abusiva alteração das regras de solução de litígios, que devolveu ao governo o direito de desempatar votações no tribunal administrativo da Receita.

Tudo somado, porém, ainda não são visíveis na arrecadação de impostos os efeitos das propostas já chanceladas. A receita tributária diminui em relação a 2022.

Mesmo que venha a ser bem-sucedido nas propostas remanescentes no Congresso, o governo continuará com chances muito remotas de obter o suficiente para cumprir a meta de déficit zero no próximo ano —ainda mais com a esperada desaceleração da economia.

A necessidade de controle de gastos, evidente desde o início, tornou-se uma obviedade constrangedora com os maus resultados orçamentários deste ano. Eliminar privilégios tributários é correto, mas não se deve contar com o aumento de uma carga total já excessiva.

Sem força

Folha de S. Paulo

Carente de planejamento, operação de segurança federal no RJ é ineficaz até aqui

Como qualquer política pública, programas de segurança devem se basear em evidências, inclusive com análise do custo-benefício, cotejando ganhos para a sociedade e gastos públicos. Tome-se o caso da Força Nacional em operação no Rio de Janeiro desde outubro, em tese para lidar com a crise de segurança no estado.

A ausência de um plano estruturado que guie a atuação dos agentes começa a cobrar a sua fatura. Prorrogada pelo governo federal até janeiro, a presença da Força Nacional no Rio não será continuada devido a alguma constatação de sua eficiência. O cenário, na realidade, mostra-se o oposto.

Manter como vitrine um programa federal de segurança no estado parece ser o principal propósito do governador Cláudio Castro (PL) e do Ministério da Justiça, a despeito dos números.

Levantamento da GloboNews, com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, revela que a operação gastou R$ 10 milhões em 45 dias, resultando em 10 mil abordagens que não levaram a nenhuma apreensão de drogas ou armas —mesmo com 300 agentes deslocados de outros estados para patrulhar rodovias com esse fim.

As maiores despesas foram com novos equipamentos como fuzis e granadas (R$ 3,5 milhões) e pagamento de diárias aos policiais de outros estados (R$ 3,6 milhões).

Os números revelam a baixa eficácia de políticas de segurança fundadas apenas no policiamento ostensivo, e não em inteligência e investigações. Em um mês de atuação da Força Nacional, só sete caminhões foram revistados.

Deslocar para o Rio de Janeiro agentes de outras regiões sem conhecimento da realidade local, em vez de incrementar as forças de segurança no estado, inclusive a Polícia Rodoviária Federal, serve mais para maquiar o problema do que para de fato combater o crime.

Os próprios policiais estão entre os atingidos pelo amadorismo da política. Na terça (28), dois agentes da Força Nacional tiveram suas armas roubadas por traficante no Complexo do Chapadão, após entrarem no local por engano ao usar aplicativo de GPS.

No mesmo dia, outro agente foi assassinado na Vila Valqueire, ao intervir em uma briga entre vizinhos.

Cabem aos governos nas esferas estadual e federal explicitar objetivos estratégicos e corrigirem os rumos, diante das evidências de que a operação pouco resultado trouxe até o momento.

O silêncio obsequioso da esquerda identitária

O Estado de S. Paulo

Movimentos feministas e negros, geralmente barulhentos, apenas murmuraram seu descontentamento diante da mais nova traição de Lula à causa que ele prometeu abraçar quando tomou posse

Ao indicar o ministro da Justiça, Flávio Dino, para o Supremo Tribunal Federal, o presidente Lula da Silva causou considerável frustração entre os petistas, que não gostam de Dino, e, sobretudo, entre os militantes dos movimentos de esquerda que fazem das questões raciais e de gênero o centro de sua luta política – o chamado “identitarismo”. Dos petistas, é claro, não se esperam mais que queixumes, pois quem manda no PT, praticamente desde sua fundação, é Lula, e não é ajuizado enfrentar o demiurgo. Já da tal esquerda “identitária” se esperava uma reação barulhenta e raivosa, como é habitual para essa turma, mas eis que dela só temos notícia de um obsequioso silêncio.

Até a última segunda-feira, as convicções em torno da possível nomeação de uma mulher (e, preferencialmente, uma mulher negra) se ancoravam nos simbolismos da posse de Lula. Na festa organizada por Janja, sua esposa, o petista recebeu a faixa presidencial de oito brasileiros calculadamente escolhidos para representar a diversidade brasileira – estavam ali, entre outros, um indígena, um metalúrgico, uma criança, um professor, uma pessoa com deficiência e uma mulher negra. Não satisfeito com a força da imagem na subida da rampa, prometeu em discurso fazer uma convocação nacional para um “mutirão pela igualdade”.

Acostumados a interpretar como revelação mística a parolagem lulista, movimentos sociais que trabalham com causas de gênero e de raça acreditaram na promessa presidencial. Aos poucos, ao perceberem que o novo governo estava longe da prometida diversidade, passaram a empenhar-se numa campanha em favor da indicação de uma ministra negra para o Supremo. Artigos, declarações públicas, publicações nas redes sociais e até outdoors instalados em outros países, durante viagens do presidente, compuseram o arsenal da campanha, que envolveu ativistas, influenciadores digitais e personagens dedicados à causa. O primeiro desgosto logo chegaria com a nomeação de Cristiano Zanin, o ex-advogado de Lula durante o seu calvário na Lava Jato. A pá de cal veio nesta semana.

Como se sabe agora, se o recém-indicado passar pela sabatina no Senado, o STF terá somente a ministra Cármen Lúcia como mulher em sua composição. Desde a redemocratização, a Corte teve apenas três mulheres: Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber, indicadas respectivamente por Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff. O STF também exibirá a segunda menor representatividade feminina na América do Sul. A própria Rosa Weber afirmou que o déficit de representatividade feminina nos espaços de poder significa “um déficit para a própria democracia”. Para porta-vozes da campanha em favor de uma mulher negra, a política e o Judiciário reproduzem atributos da sociedade brasileira, marcadamente patriarcal, machista, sexista e, em vários níveis, racista – entre 171 ministros em mais de 130 anos, houve apenas três ministros negros no Supremo.

Se depender de Lula, isso vai demorar para mudar. O presidente escolheu 11 mulheres para um Ministério de 37 pastas, mas não tardaria a rifar duas delas no primeiro estremecimento da sua base de apoio no Congresso. Parte daquelas que restaram precisou enfrentar o esvaziamento das prerrogativas de suas pastas, incluindo Marina Silva (Meio Ambiente) e Sonia Guajajara (Povos Indígenas), ou, pela falta de recursos ou de iniciativas concretas do governo, resume suas atividades a eventos, grupos de trabalho e alguns esquálidos projetos – é o caso de Anielle Franco (Igualdade Racial) e Margareth Menezes (Cultura). Não raro Lula reforça, em derrapadas retóricas, seu apego a premissas machistas, e é bom lembrar que o PT apoiou uma anistia aos partidos que não cumpriram regras de cotas de candidaturas femininas.

Ou seja, para Lula, as demandas da esquerda identitária lhe servem na exata medida de seu potencial eleitoral, seja para conquistar votos, seja para constranger adversários. No mais, Lula só tem uma causa: o poder.

É hora de aprumar a PGR

O Estado de S. Paulo

Espera-se que, sob nova direção, a PGR volte à normalidade institucional, isto é, dedique-se à sua missão constitucional, e não à defesa de interesses outros que não o interesse público

Espera-se que o fim da entediante novela em que se tornou a escolha do futuro chefe do Ministério Público Federal, com a indicação do vice-procurador-geral eleitoral, Paulo Gonet, para a Procuradoria-Geral da República (PGR), represente a volta da PGR ao leito da normalidade institucional. Em condições normais de temperatura e pressão, esta seria uma aspiração modesta, para não dizer descabida. Mas, nesses tempos esquisitos, ter a PGR atuando novamente no estrito cumprimento de suas atribuições constitucionais, e não como um instrumento de ação política, já será um ganho e tanto para o País.

O Ministério Público, nunca é demais lembrar, tem sua independência funcional assegurada pela Constituição para exercer “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Nos últimos anos, porém, houve um completo desvirtuamento das prerrogativas do parquet, em particular da PGR, para levar a cabo essa nobre missão. Seja por abusos de poder, seja por omissões, a perversão da PGR em prol de interesses outros que não o interesse público levou a um quadro de descrédito para a instituição e de insegurança jurídica para o País.

O Brasil precisa de uma PGR normal, como já dissemos. Vale dizer, uma PGR que zele, de fato, por aqueles bens jurídicos que os constituintes originários resolveram incumbi-la de defender. Este jornal não espera muito mais do que isso do sr. Paulo Gonet como futuro procurador-geral da República, caso seu nome seja aprovado pelo Senado. Bastará exercer o papel do Ministério Público determinado pela Lei Maior para que entre para a história como aquele que resgatou a PGR da sarjeta em que foi atirada por alguns de seus antecessores no cargo.

Para recuperar o prumo, a PGR deve se afastar do estado de amorfia moral e funcional que marcou a gestão de Augusto Aras, cuja subserviência ao ex-presidente Jair Bolsonaro e ao atual mandatário, sobretudo ao primeiro, levou à omissão da PGR em alguns dos momentos mais dramáticos para a sociedade brasileira na história recente. Tampouco a PGR sob Gonet há de seguir a direção oposta, isto é, a onipresença desvairada que caracterizou o mandato de Rodrigo Janot. Os males causados por sua atuação messiânica e desafiadora da ordem jurídica à frente da PGR, no auge da Operação Lava Jato, em nome de uma suposta purgação nacional, ainda não foram plenamente superados.

É imperativo, portanto, que a PGR retome sua função primordial: ser a defensora intransigente das leis e da Constituição, independentemente de pressões políticas ou de agendas político partidárias. Nada mais do que isso. Como instituição republicana, a PGR não pode ser refém de interesses individuais ou corporativos nem tampouco pode ser transformada em arena de disputas de natureza ideológica ou pessoal.

Ao assumir posição tão crucial no arranjo constitucional brasileiro, Gonet deve eleger como prioridade a restauração da integridade institucional da PGR. Isso significa, na prática, conter os ímpetos ativistas de setores do Ministério Público ainda recalcitrantes em submeter suas “causas” ao que determinam as leis e a Constituição e, ao mesmo tempo, afastar a PGR da apatia deliberada quando essa inação do parquet decorre de arranjos antirrepublicanos.

A PGR não pode ser um braço do Poder Executivo, muito menos um instrumento de revanche ou proselitismo ideológico de quem quer que seja. Este jornal anseia por uma PGR que não só resgate a confiança na instituição, mas também reforce o seu compromisso inabalável com as leis, independentemente de quem elas venham a alcançar. Como defendemos nesta página não faz muito tempo, servirá bem ao País um Ministério Público que não seja “nem o algoz de políticos nem o seu servo – só um servo da lei, algoz daqueles que a violam” (ver Por uma PGR normal, de 25/9/2023).

A vigência do Estado Democrático de Direito depende fundamentalmente da autonomia e da integridade dos membros das instituições responsáveis por sua proteção. Gonet há de ter isso em mente à frente da PGR.

Cerrado em perigo

O Estado de S. Paulo

Plano contra desmate do bioma convoca o agronegócio a adotar práticas sustentáveis

O desmatamento no Cerrado cresceu 3% nos 12 meses encerrados em agosto na comparação com igual período anterior, concluiu o Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe). Foram dizimados mais de 11 mil quilômetros quadrados de áreas nativas, das quais 75% nos quatro Estados onde a fronteira agropecuária avançou mais aceleradamente nas últimas décadas, comumente designados como Matopiba. Ao divulgar esses dados no último dia 28, o governo teve o cuidado de ressuscitar o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Bioma Cerrado (PPCerrado). Desta vez, com o claro alerta ao agronegócio de que sua conversão aos padrões de sustentabilidade não só contribuirá para reduzir o desmatamento no bioma, como definirá seu futuro no comércio internacional.

Tanto quanto na Amazônia, o combate à devastação e aos incêndios no Cerrado tornou-se crucial para o Brasil cumprir, em 2030, sua meta de desmatamento zero. Os números apresentados pelo Inpe mostram, porém, que o País está na contramão desses esforços quando se trata do Cerrado. Entre 2019 e 2022, sob a gestão de Jair Bolsonaro, totalmente avessa à preservação ambiental, o desmatamento do bioma cresceu 40%. Justamente nesse período de desmonte dos órgãos federais de proteção ao meio ambiente, os planos voltados ao Cerrado foram revogados. Antes desse pico de negligência, porém, o bioma já se via comprometido. Prova disso foi a perda de 12% de sua vegetação nativa entre 2003 e o ano passado, uma área equivalente à do Estado de São Paulo.

As causas da destruição dessa vegetação nativa são há muito conhecidas, ampliadas e negligenciadas pelo poder público – especulação fundiária, ineficácia da gestão hídrica, manejo inadequado do fogo, desrespeito às unidades de conservação e dificuldades de monitoramento, além da própria expansão territorial da agropecuária. Ao diagnóstico, porém, o PPCerrado alinha um conjunto de iniciativas para cada raiz do desmatamento.

O plano, como assinalou a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi elaborado a “muitas mãos”, inclusive do agronegócio. A visão exposta sobre o impacto da agricultura e da pecuária, fontes inalienáveis do maior dinamismo econômico dos 13 Estados do bioma, felizmente escapou do dogmatismo ambientalista ao reconhecer elementos de segurança jurídica, como o direito de exploração de até 80% da área das propriedades rurais. Como contrapartida para o desmate não atingir tamanha dimensão, propõe um modelo “ganha-ganha”, ainda a ser detalhado, com estímulos e compensações.

A argumentação do PPCerrado traz os dois pés em uma realidade incontornável. A conversão sustentável de 100% da produção no Cerrado e a adoção de instrumentos de rastreabilidade e de certificação de grãos e carnes serão cruciais para o Estado brasileiro atingir a meta de desmatamento zero nos cinco biomas brasileiros até o fim desta década – um anseio, aliás, da sociedade brasileira. Igualmente fará do Cerrado e do Brasil referências no comércio global de alimentos “verdes”. A relutância em abraçar as tecnologias e os processos produtivos sugeridos pelo plano significará opção consciente pelo fracasso.

COP28 é importante, mas insuficiente

Correio Braziliense

Os eventos climáticos extremos estão aumentando tanto em frequência quanto em intensidade. Que o diga o Brasil, que enfrenta neste ano uma seca histórica na Amazônia, tornados e enchentes no Sul e ondas de calor no Sudeste e Centro-Oeste

Realizada em Dubai desde 30 de novembro, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 — mais conhecida pela sigla COP28 —, reúne mais de 200 países para discutir a crise climática e tentar buscar soluções para os graves efeitos que ela vem causando no mundo. Afinal de contas, o momento é crítico: 2023 foi confirmado como o ano mais quente no planeta desde o início das medições oficiais, e eventos climáticos extremos estão aumentando tanto em frequência quanto em intensidade. Que o diga o Brasil, que enfrenta neste ano uma seca histórica na Amazônia, tornados e enchentes no Sul e ondas de calor no Sudeste e Centro-Oeste.

Na conferência, vários discursos de autoridades — inclusive do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva — ressaltaram a gravidade do momento que o planeta atravessa, uma vez que a elevação das temperaturas globais vem afetando a economia dos países, causando uma perda acelerada de biodiversidade e interferindo profundamente na vida das pessoas. Também foram feitos anúncios relevantes, como a promessa de 110 países (Brasil incluído) de triplicar até 2030 a produção de energia renovável, o compromisso dos Estados Unidos (EUA) de parar de usar carvão — responsável por cerca de 40% das emissões de combustíveis fósseis — nas suas usinas até 2035 e a criação de um fundo bilionário para apoiar as regiões mais afetadas pela crise climática.

São iniciativas e medidas importantes. Mas o mundo verde das conferências e dos debates vem se mostrando muito diferente do real, que segue firme no uso dos combustíveis fósseis e não demonstra muita vontade de parar — pelo contrário. Um exemplo desse descompasso é a própria COP, que é realizada anualmente desde 1995, mas que provocou pouco ou quase nada em termos de ação efetiva para frear as emissões dos gases do efeito estufa. Outro exemplo do descolamento entre promessa e realidade é o Acordo de Paris, fechado em 2015 e que pretendia limitar o aumento da temperatura global a 1,5ºC. Oito anos depois, o mundo caminha a passos largos para um aumento entre 2,5ºC e 3ºC, o que representa um aumento nos eventos climáticos extremos de proporções ainda inimagináveis.

Os encontros e as cúpulas são importantes, claro. É na discussão aberta e na troca de ideias que surgem as soluções inovadoras. Na COP28, os representantes de diferentes países podem compartilhar conhecimentos, experiências e perspectivas, promovendo um entendimento mais profundo das complexidades envolvidas na mitigação dos efeitos da crise climática. Mas faltam ações,medidas sérias e obrigatórias que não estejam ao sabor do vento político de cada país, como a retirada, um tanto quanto abrupta, dos EUA do Acordo de Paris pelo ex-presidente Donald Trump em 2017. Por enquanto, ninguém assumiu, de forma clara e evidente, compromissos concretos e ações imediatas, como um plano com metas e um cronograma de curto prazo para a eliminação do uso de combustíveis fósseis, com uma punição severa para o país que descumprir o acordado.

Mas, como os problemas climáticos do Brasil deixaram claro, é urgente que a mudança comece para valer. Chegou o momento de os líderes mundiais deixarem de lado a retórica vazia e abraçarem a responsabilidade coletiva. A COP28 não pode ser apenas palco para discursos; deveria ser o catalisador para a transformação global. O futuro do planeta depende da capacidade de agir agora, de maneira decisiva e unificada, para garantir um ambiente sustentável para as gerações futuras. Não há mais tempo a se perder.

 

 

 

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