sábado, 2 de dezembro de 2023

Pablo Ortellado - Combo liberal-conservador

O Globo

Estamos vendo no Cone Sul a consolidação de uma nova direita

É impressionante a repercussão da eleição de Javier Milei na imprensa brasileira. Acompanhamos com atenção incomum a formação do gabinete e os primeiros passos do presidente eleito. Por trás de tamanha atenção, há uma espécie de pergunta subjacente: em que medida Milei é o Bolsonaro argentino? Uma pesquisa comparando apoiadores de Milei e de Bolsonaro sugere que há muitas semelhanças.

Na quarta-feira, O GLOBO publicou reportagem apresentando os principais resultados de uma pesquisa de opinião que meu grupo de pesquisa na USP conduziu com os apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro que se manifestavam na Avenida Paulista no último domingo. O coração da pesquisa era um questionário com nove afirmações liberais, populistas e conservadoras, em relação às quais perguntávamos se os entrevistados concordavam ou discordavam. Em parceria com colegas da Universidade de Lanús, na Argentina, aplicamos o mesmo questionário em Buenos Aires com apoiadores do então candidato Javier Milei reunidos no comício de encerramento da campanha do primeiro turno (os resultados também saíram no GLOBO).

O que havia nos levado a comparar a opinião de mileístas e bolsonaristas eram movimentos discretos que Milei tinha dado em direção ao conservadorismo. Embora seu discurso na campanha tenha sido predominantemente libertário (economicamente “ultraliberal”), ele havia também criticado a educação sexual nas escolas, acusando-a de fazer doutrinação de “gênero”; defendido a posse de armas pelos “cidadãos de bem”; e falado em redução na estimativa do número de vítimas da ditadura militar argentina, entre outras posições conservadoras. Além disso, alguns estudos sobre a nova direita argentina e o acompanhamento das mídias sociais sugeriam que a ascensão eleitoral do libertarianismo vinha acompanhada de uma cultura política conservadora, numa espécie de “combo liberal-conservador”.

Foi para testar se havia mesmo um combo e algum tipo de adesão maior ao componente liberal entre os mileístas e uma adesão maior ao componente populista-conservador entre os bolsonaristas que aplicamos o questionário aos dois grupos.

A primeira surpresa foi que a adesão às afirmações liberais era alta em quase todos os casos e igual nos dois grupos, com variação dentro da margem de erro (os dados são sempre primeiro de bolsonaristas, depois de mileístas):

— Auxílios do governo desestimulam as pessoas a trabalhar: 82% e 87%;

— Leis trabalhistas mais atrapalham o crescimento das empresas do que protegem os trabalhadores: 74% e 78%;

— O governo não deve pagar por todas as necessidades do povo: 71% e 70%; e

— O trabalho com carteira assinada tira a liberdade do trabalhador: 26% e 23%.

Duas observações sobre esse bloco. O discurso liberal realmente engaja, e isso parece contrariar a velha crença política de que o liberalismo econômico não tem apelo popular. É algo para o qual já deveríamos ter prestado atenção, pelo menos desde quando tivemos manifestação a favor da reforma da Previdência em 2019. Segunda observação: a carteira assinada é um valor consolidado, mesmo para os conservadores.

No bloco populista-conservador, tivemos mais diferença, mas a adesão foi alta nos dois grupos. Pelo menos em duas perguntas também ficou equiparada, na margem de erro:

— Os direitos humanos atrapalham o combate ao crime: 81% e 71%;

— Na escola se ensinam temas que contrariam os valores da família: 84% e 64%;

— Os artistas não respeitam os valores morais da nação: 78% e 49%;

— A internet permite descobrir verdades que os jornais e a TV querem esconder: 98% e 96%;

— O sistema de votação é confiável: 6% e 28%.

A observação mais importante sobre esse bloco é que o conservadorismo populista parece mais acentuado no Brasil que na Argentina. Mas, se observarmos que duas das cinco perguntas receberam adesão semelhante e que, na Argentina, a ascensão da nova direita é mais recente e concentrada no segmento jovem, a semelhança de opinião entre os dois grupos chama muito mais a atenção do que a diferença.

É preciso ressaltar que os dados se referem à opinião de ativistas mobilizados, e não de eleitores. Mas, se tomarmos os ativistas como uma espécie de vanguarda, tudo leva a crer que estamos vendo no Cone Sul a consolidação de uma nova direita bem assentada no combo liberal-conservador.

 

2 comentários:

  1. Também é preciso ressaltar que uma coisa é o que o CANDIDATO diz/promete durante a campanha, e outra é o que o GOVERNANTE faz ao assumir o Poder e ter que mostrar resultados e responsabilidade.

    Milei já mudou bastante entre o que dizia antes de ser eleito e o que diz/faz depois de eleito. Chamou Lula de corrupto e comunista, agora o convida para sua posse. Da mesma forma, suas manifestações contrárias e críticas à China e ao Papa antes da eleição já foram completamente mudadas após ter sido eleito. A "dolarização" que era tão óbvia e necessária já desapareceu de suas manifestações. E outras mudanças certamente virão em seguida...

    Bolsonaro prometia uma Nova Política, com técnicos competentes como ministros, e chamava o Centrão de ladrões! Aos poucos, colocou o chefe do Centrão na Casa Civil (o coração de qualquer governo), espalhou militares incompetentes em muitos ministério civis (Saúde, Meio Ambiente, Minas e Energia, etc.) e governou como todos da Velha Política, só inovando em nos transformar em párias no mundo, o que nenhum outro governo anterior tinha sequer se aproximado. Só tinha contato com Putin entre os maiores governantes, era execrado por todos os demais, que queriam distância dele.

    ResponderExcluir
  2. O pior é que a direita democrática se aliou à extrema-direita,tanto lá,quanto cá.

    ResponderExcluir