domingo, 28 de janeiro de 2024

Dorrit Harazim - Barbárie

O Globo

Pena de morte é incompatível com qualquer sociedade evoluída. Simples assim, apesar de toda a complexidade

É tudo muito louco. Em novembro de 2022, no dia marcado para ser executado por injeção letal, o condenado à morte Kenneth E. Smith, do Alabama, ficara amarrado à maca por quatro horas, enquanto agentes lhe perfuravam braços e pernas à procura de um acesso intravenoso para aplicar o coquetel de fármacos. Demoraram tanto que o prazo para a execução expirou, e Smith foi devolvido ao corredor da morte. Estava traumatizado. Já havia recebido as últimas orações, degustara uma refeição de sua escolha como parte do ritual, se despedira de lembranças. Em resumo, estava despreparado para voltar a ser vivente encarcerado há 34 anos.

Passaram 14 meses. Na quinta-feira passada, foi novamente conduzido à sala esterilizada para execuções na penitenciária Holman. Segundo as regras do Judiciário do Alabama (um dos 27 estados americanos onde a pena capital ainda é legal), foram-lhe dadas três escolhas do cardápio de métodos de execução: injeção letal, cadeira elétrica ou asfixia por gás nitrogênio puro. A primeira Smith já havia experimentado. A segunda evocava horrores do passado. Optou pela hipóxia com nitrogênio puro, que, segundo seus defensores, garantia a morte em pouco mais de um minuto e meio por falta de oxigênio no corpo.

Por meio de uma máscara que lhe cobria o rosto, o condenado respirou a própria morte. Segundo o testemunho de um dos jornalistas presentes (por lei, toda execução precisa ser registrada por pelo menos um repórter local, um estadual e um de agência noticiosa), tudo levou 22 minutos. Houve convulsões, tremores, agonia. Os próprios agentes penitenciários ficaram “visivelmente chocados pela forma como tudo deu errado”, contou o reverendo Jeff Hood, que acompanhou o condenado até o final.

— Tendo falhado na primeira tentativa de matar Smith, o Estado do Alabama desta vez o escolheu para servir de cobaia — sentenciou a juíza da Suprema Corte Sonia Sotomayor em seu voto contrário à execução.

O colegiado de nove membros se reunira de última hora para julgar um recurso. Sotomayor, junto a Ketanji Brown Jackson e Elena Kagan, foi voto vencido: 3 a 6. As três mulheres — uma de origem hispânica, uma negra, uma branca — foram indicações de Barack Obama e Joe Biden. A quarta mulher da Suprema Corte atual, Amy Coney Barrett, indicada por Donald Trump, votou a favor da execução.

Cabe mencionar que a sentença de Kenneth Smith não fora decidida pelos 12 jurados que analisaram o caso em 1988. Aquele tribunal do júri se pronunciara, por 11 votos a 1, pela aplicação da prisão perpétua, mas a sentença acabou revertida para pena de morte, monocraticamente, por um único juiz, o que hoje não seria mais permitido. Smith e um comparsa haviam sido contratados como matadores de aluguel por um pastor da Igreja de Deus local. Cada um recebeu US$ 1.000 para eliminar a mulher do mandante. Descoberto, o pastor se suicidou.

É tudo muito louco. Não faz tanto tempo assim que Ronnie Lee Gardner foi executado por pelotão de fuzilamento numa prisão do Estado de Utah. O preso foi amarrado a uma cadeira cercada de sacos de areia e dotada de uma bandeja de metal na parte inferior, para a coleta do sangue derramado, um capuz foi atado a sua cabeça e um círculo branco afixado no peito como marcador do coração. Em determinado momento, cinco atiradores de elite adentraram a sala da execução, postaram-se atrás de uma parede de tijolos a 7,5m de distância, apontaram seus rifles calibre .30 para o alvo através de pequenas aberturas. Quatro dos cinco rifles estavam carregados com uma única bala, e um disparou uma munição inócua, de forma a embaralhar a autoria do tiro fatal e proteger os executores da carga psicológica. Além de Utah, quatro estados americanos já reintroduziram o pelotão de fuzilamento como método de execução. Em Idaho cogita-se recorrer a disparos por controle remoto, visando a eliminar a carga emocional dos atiradores.

Está faltando algo? Ah, sim, a cadeira elétrica foi reintroduzida como opção no Alabama, na Flórida, no Kentucky, no Tennessee; outros três estados têm legislação pronta no mesmo sentido para a eventualidade de a injeção letal tornar-se inconstitucional ou inviável. Morte por enforcamento ou em câmara de gás cianeto também sobrevivem no papel, apesar de a Oitava Emenda da Constituição americana proibir “punições cruéis ou inusitadas”.

Chega-se, assim, ao paroxismo de haver altas autoridades do meio jurídico, médico e prisional analisando a forma mais cirúrgica e segura de matar um condenado. Antes de adotar a asfixia por gás nitrogênio puro, os legisladores do Alabama chegaram a consultar uma centena de especialistas. “É provavelmente o método de execução mais humano jamais concebido”, garantiu o Departamento Prisional do estado. O mesmo já foi dito um século atrás a respeito das horrendas câmaras de gás que mataram 600 condenados. Loas à eficácia dos métodos subsequentes também nunca faltaram.

Tudo inútil, pois não há como humanizar a pena de morte. Trata-se de uma barbárie incompatível com qualquer sociedade evoluída. Simples assim, apesar de toda a complexidade.


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